A construção do super-herói amoral nas capas de "Veja" e "IstoÉ"

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Pela primeira vez em anos as capas as revistas “Veja” e “IstoÉ” escancaram sinceridade e franqueza: recursos semióticos como retórica, iconificação e analogia usados não mais para esconder, mas para explicitar aquilo que sempre essas publicações não ousavam admitir: o juiz de primeira instância Sergio Moro há muito deixou o campo do Direito para atuar como um líder político messiânico que não mais julga em posição equidistante entre promotoria e réu – assumiu uma batalha cujo ápice é o interrogatório de Lula no Fórum de Curitiba no dia 10/05. Que as revistas simbolizam como algo entre a luta livre mexicana ou uma contenda de box do século. Mas há algo mais nessas capas: o juiz Moro não é um herói que segue o modelo clássico (épico ou trágico), mas é o Super-Herói amoral das HQs e adaptações cinematográficas da Marvel e DC Comics: aquele que luta pela Justiça e a Verdade, acima do Bem e do Mal. Cimento ideológico necessário para a opinião pública se resignar ao ver a própria carne sendo cortada com as supostas “reformas”, como “efeito colateral” aceitável em nome da Verdade – se for necessário, o Super-Herói pode até destruir o mundo, mesmo que seja para derrotar vilões que também querem destruir o mundo.

Nesses últimos anos em que a grande mídia colocou em ação uma bem sucedida guerra semiótica (vazamentos/repercussão em jornais e revistas semanais nos finais de semana/replicação da pauta nos telejornais ao longo da semana), nunca tivemos capas de revistas informativas semanais tão sinceras, sem a necessidade de subterfúgios linguísticos e retóricos, como as da Veja e IstoÉ nessa semana.
Aliás, dessa vez, a retórica veio não para esconder mas para tornar explícito o que todo mundo já sabe: Sérgio Moro não se trata mais de um cidadão investido de autoridade pública para exercer uma atividade jurisdicional, julgando em uma posição equidistante entre o réu e a promotoria – como se espera no exercício do Estado de Direito.
As capas revelam alguém em cruzada messiânica (supostamente o herói) contra o vilão; o jovem contra o velho, o Bem contra o Mal, a moralidade contra a imoralidade. Alguma coisa parecida como o Juiz Dredd que prendia, julgava e executava os criminosos de uma megalópole no futuro – Dredd, 2012.
A revista IstoÉ  faz analogia com algo como “a luta do século” ou “a grande esperança branca” no box – como em 1910 em um EUA divididos racialmente no qual Jim Jeffreys (branco) enfrentaria o primeiro ídolo esportivo negro, Jack Johnson.

 
E o mais interessante, a analogia que a Veja faz com a luta livre mexicana – uma verdadeira paixão daquele país, na qual os lutadores mascarados se vestem como super-heróis: animais, deuses astecas e heróis antigos. Marcadas por movimentos aéreos, nas cordas e sopapos espetaculares, são narrativas maniqueístas e ponto alto de muitos pacotes turísticos.

Uma primeira leitura

IstoÉ é ainda mais direta: às 14 hora do dia 10/05 o fórum de Curitiba se transformará em um ringue de box. 
Enquanto a Veja associa o evento não apenas a um simples confronto: como uma luta livre mexicana, está envolvida com um rico simbolismo não só político, mas também mitológico.
 A leitura imediata dessas históricas capas oferece as seguintes conclusões mais óbvias:
(a) O ínclito juiz de primeira instância Sérgio Moro há muito deixou o campo do Direito para ingressar no campo do messianismo político. Afinal, para enfrentar uma figura igualmente messiânica e sebastiana como Lula, somente um oponente que o enfrente no mesmo terreno do imaginário e da mitologia. Todas as eletrizantes ações da Lava Jato que não precisaram seguir as regras dos processos comuns (com diziam, “problemas inéditos sugerem soluções inéditos”), chegam ao ápice onde todos os discursos, álibis e tergiversações do juiz e promotores  acabaram – agora se trata de “matar ou morrer”, como Gary Cooper no clássico filme western High Noon (Matar ou Morrer, 1952).
(b) Numa capa de revista a luta de box, na outra luta livre mexicana. De forma explícita, dessa vez vemos como os “aquários” das redações da grande mídia estão sintonizados e em contato permanente para unificar pautas e viés – uma verdadeira isonomia na aplicação semiótica.
(c) Até que ponto interessa à mídia corporativa a extrema polarização para interditar qualquer debate político – enquanto a opinião pública é clivada pelo Fla x Flu político, as reformas trabalhistas e previdenciárias são enfiada a fórceps como uma racionalidade econômica inevitável.  

 

Segunda leitura: o super-herói amoral 

Mas há algo ainda mais insidioso e preocupante: a polarização pela polarização por si só não teria o mesmo efeito sem uma espécie de cimento ideológico e imaginário – a construção da mitologia de um tipo de super-herói bem específico que toma as HQs e telas do cinema desde a Segunda Guerra Mundial – o super-herói amoral.
O discurso da moralização que parece dar sustentação imaginária a capa de Veja e IstoÉ é mero álibi, pretexto, para impor um novo modelo heroico.
Novo pelo menos por essas plagas: o modelo de heroísmo amoral: um herói  que não mais se orienta pelos princípios do herói épico grego: aquele que vive numa posição intermediária entre os deuses e os homens, em geral filho de um deus e uma mortal – Hércules, Perseu) reúne atributos que transcendem as condições do homem comum: fé, coragem, determinação, renúncia (martírio), paciência etc. Um herói tipicamente guiado por ideais nobres (liberdade, fraternidade, sacrifício, moral, paz) com atributos necessários para superar problemas de dimensões épicas.
E que também não mais se orienta pelo modelo trágico, também grego: aquele que encontra o infortúnio por um erro de julgamento. Vivendo entre o crime e o castigo, descobre que o a sua queda foi o resultado de suas próprias ações, e não por causa de acontecimentos aleatórios. Como um nobre estoico, aceita a queda com dignidade e aprende com ela.

 

Super-herói libertado

Mas não no caso do intocável juiz da primeira instância. Sérgio Moro é um herói libertado das coerções éticas e morais de uma ordem divina ou transcendente. Seja essa ordem Deus ou o Estado de Direito.
É agora o super-herói da “guerra total” (“extermínio e destruição em massa”) e do messiânico “destino manifesto” – o destino lhe concedeu uma missão que está além do Bem e do Mal. E acima do Bem e do Mal só existem a Justiça e a Verdade.
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