Atualmente ataques e atentados parecem se tornar relações públicas de si mesmos: buscam sempre a máxima repercussão e visibilidade. Dos “frames” escolhidos pelos fotógrafos até a própria tragédia, tudo é retoricamente tão saturado que entra no campo das mitologias midiáticas. A narrativa é sempre a mesma: o ataque de um “lobo solitário”; a ação que interrompe festas, prazer e diversão, o timing, o oportunismo e, finalmente, a morte/suicídio final do terrorista. O ataque em Nice mais uma vez repetiu o plot. Porém dessa vez acrescentou mais um elemento: a ambiguidade – ataque terrorista? Apenas um louco que odeia o mundo? Por isso no ataque em Nice podem ser encontrados elementos tanto de "Operação Bandeira Falsa" (“False Flag”) como do chamado “efeito Copycat” (imitação). E a coincidência da estreia do filme de ação “Bastille Day” (cujo plot é a luta para impedir um atentado em Paris) no dia do ataque reforça essa hipótese.
Se o semiólogo e linguística francês Roland Barthes estivesse vivo, certamente iria delirar com a foto acima que abre essa postagem. Barthes diria que isso não é mais um exemplar de fotojornalismo, mas uma composição tão retoricamente saturada (o "Cinegnose" chama isso de "canastrice") que passou para o plano das mitologias midiáticas.
Também certamente perceberia o espírito dos tempos atuais, bem diferente das suas análises das mitologias midiáticas dos anos 1950: se lá a retórica fotográfica da imprensa era triunfante e imperialista onde a França ainda pretendia manter a hegemonia sobre suas colônias do norte da África, agora a retórica é da vitimização, sobrevivencialismo e tragédia.
Mas tanto lá no passado como aqui, a saturação retórica é evidente: o “frame” escolhido pelo fotógrafo sobrepõe camadas de simbolismos a um acontecimento: o jovem arrasado, vitimado pela violência em um momento de lazer, a garrafa de espumante, a feliz coincidência da bandeira da França estar ao seu lado como que consolando-o diante de um incrível mar azul da Riviera francesa.
A presença de fotos como essas que ilustram uma tragédia já é um elemento suficiente para despertar aquela pulga atrás da orelha e nos fazer coçar: qual o porquê e o sentido desses acontecimentos que repetem o mesmos plot e canastrice fotográfica?
O filósofo Theodor Adorno falava que na atualidade objetos e fatos se tornam relações públicas de si mesmos. E em mais um caso de atentados, ataques e massacres, os fatos parecem se encaixar confortavelmente a um script pré-existente na grande mídia como se o próprio acontecimento fosse voltado em primeiro lugar para a repercussão e visibilidade máxima.
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Um “lobo solitário”, conhecido pela polícia, protagoniza um massacre (sempre em momentos de lazer/diversão – maratonas, uma revista de humor politicamente incorreto, casas noturnas como a Pulse e o Bataclan e agora as comemorações do feriado da Queda da Bastilha em Nice) e, no final, a pior ação para investigações futuras que desbaratassem possíveis células terroristas: o protagonista é sempre executado pelos policiais (ou se mata) como fosse uma sumária queima de arquivo.
Assim como no massacre em Orlando, esse em Nice de cara criou o elemento da ambiguidade que é o principal fator que impulsiona a massificação/viralização de um acontecimento: foi uma premeditada ação terrorista ou um ato desesperado de um louco que odeia o mundo?
Portanto, de um lado temos a hipótese do False Flag que se inicia com as seguintes perguntas: quem ganha? Qual foi o timing? Por que os elementos tão recorrentes? A ambiguidade foi proposital para a repercussão?
E do outro lado o chamado “efeito copycat”: se o protagonista é alguém instável psiquicamente com histórico de agressões e violência doméstica, seria facilmente vulnerável ao efeito de imitação imagens midiáticas de noticiários e filmes – episódios de atropelamentos deliberados por carros e caminhões foram recentemente noticiados e apresentados em obras de ficção. É o que sugere o pesquisador na área Loren Coleman.
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(a) Ambiguidade
De imediato, após o caminhão ter sido jogado contra a multidão que terminava de assistir à queima de fogos em Nice matando 84 pessoas e ferindo mais de 200, o presidente François Hollande qualificou como um atentado terrorista: “temos um inimigo que vai continuar a atacar pessoas e países que têm a liberdade como fator fundamental”, declarou na TV.
Enquanto as imagens angustiantes do ataque de caminhão em Nice eram divulgadas, a identidade do motorista era descoberta: um cidadão franco-argelino que residia em Nice. Com histórico de violência doméstica e desequilíbrio psíquico.
Ao mesmo tempo em que o ministro do Interior da França Bernard Cezeneuve declarava que as investigações não encontravam qualquer evidência de jihadismo ou ligações com organizações terrorista como o ISIS, os presidentes Hollande e Obama se apressavam em qualificar o episódio como mais uma ofensiva islâmica. “Esses terroristas estão matando gente inocente de todas as religiões e países”, apressou-se em declarar Obama.
Por que as declarações dos chefes de Estado se apressam em confirmar mais um ato terrorista, enquanto as investigações apontam para outro lado?
O fator ambiguidade é o principal elemento que auxilia na disseminação a princípio de boatos como descreveram Gordon Allport e Leo Postman em 1947. Hoje, é a estratégia deliberada por trás da disseminação de muitas imagens e memes – sobre esse tema clique aqui.
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(b) Timing
Poucas horas antes da tragédia, o presidente Hollande disse na sua entrevista tradicional no Dia da Bastilha que não faria sentido o Estado de Emergência ser estendido indefinidamente. Uma declaração feita sob pressão de críticos e ativistas dos direitos civis. Principalmente depois de Hollande afirmar que a Constituição francesa deveria ser alterada a fim de se lidar melhor com a ameaça do terrorismo internacional.
Desde novembro do ano passado após o estado de emergência ter sido declarado, o presidente vem buscando abertamente formas de expandir seus próprios poderes e os poderes do Estado – políticas potencialmente draconianas e a expulsão de estrangeiros que supostamente fossem ameças.
Poucas horas depois da declaração de Hollande... Oh, não! Outro terrível ataque. Algo deve ser feito contra esses terríveis muçulmanos!
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(c) Quem ganha?
O atentado contra o jornal Charlie Hebdo no ano passado aconteceu em um momento politicamente crucial para François Hollande: pesquisas apontavam que 85% dos franceses declaravam que ele não deveria se candidatar à reeleição. Até antes daquele atentado, Hollande falava em “união” e “França Forte”.
Hoje, Hollande enfrenta greves e protestos contra a reforma trabalhista e a indefinição da sua candidatura à reeleição em 2017. Como provou o 11 de setembro nos EUA, medo e infelicidade são ingredientes importantes para a unificação diante de um inimigo externo.
A conveniência da tragédia em Nice é perfeita para François Hollande.
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(d) Peças soltas
Assim como em séries de TV como Lost que terminam com diversas peças da narrativa soltas sem dar explicações (o que no final só alimentam polêmicas benéficas para a mística da série), mais uma vez um suposto ataque terrorista termina com peças soltas pelo caminho: o motorista do caminhão teria gritado “Allahu Akbar” (Deus é Grande)? O motorista foi assassinado dentro ou fora da cabine do caminhão? – há diferentes testemunhos. Ele guiava e, ao mesmo tempo, disparava tiros contra a multidão? Como foi possível um caminhão de 19 toneladas furar as barreiras policiais? Dispositivo policial insuficiente em um país com estado de emergência declarado e em um evento de feriado nacional? Caminhões pesados são normalmente proibido nas estradas durante feriados nacionais e domingos.
Diante dessas peças soltas, o Ministro Cezeneuve se apressou em afirmar: “nesses momentos de luto devemos manter a dignidade e não cair em polêmicas que só alimentam falsidades”.
Tudo é tão conveniente...
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Filme "Guerra Mundial Z" |
Efeito Copycat?
A partir do seu livro The Copycat Effect, o pesquisador norte-americano Loren Coleman vem estudando o comportamento de suicidas e homicidas a partir do contagio através do sensacionalismo noticioso das mídias. Personagens, palavras ou narrativas podem adquirir força ao transformarem-se em verdadeiros arquétipos que, quando repercutidos pela mídia, adquirem poder de rápido contagio.
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