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Uma jornada antropológica, científica, histórica, mística e espiritual. E conduzida pelo animal de poder da serpente, simbolismo central na cosmologia xamânica. Ela desceu da Via Láctea, criou o mundo e está presente em cada um de nós, adormecida, à espera de algo que a desperte e nos faça deixar de ser instrumentos de morte. Esse é o tema central do filme “O Abraço da Serpente” (2015) que teve por base os diários de dois cientistas cujas expedições na região amazônica contribuíram para a compreensão dos povos indígenas. O diretor colombiano Ciro Guerra consegue tratar o tema do misticismo xamânico de forma a direta e crua numa selva onde o homem branco em busca da borracha extermina povos indígenas, seja pela arma ou pela catequese religiosa. E a última esperança para Karamateke, o último sobrevivente do seu povo, é fazer aqueles cientistas conhecerem um flor sagrada que os faça “abraçar a serpente” (a gnose através da destruição do Ego) e levem essa sabedoria cósmica para a civilização.
Na lista do Cinegnose dos 13 filmes mais aguardados para 2016 (clique aqui para ver a lista), O Abraço da Serpente aborda o tema do xamanismo, tema cada vez mais recorrente no cinema atual – Dead Man (1995), The Shaman (2015), Blueberry: Desejo de Vingança (2004), Apocalypto (2007), The Awakening Land (2010) entre outros. Sem falar nos filmes que abordam temas xamânicos de iluminação espiritual como argumento implícito em narrativas ambientadas em mundos modernos e urbanos.
Mas o diretor colombiano Ciro Guerra não pretendeu fazer uma narrativa apenas mística repleta de simbolismos e linhas de diálogos cheios de enigmas existenciais como costumam fazer as produções que se aventuram nessa área.
O misticismo xamânico funciona como uma moldura para os conflitos. Seus temas aparecem aqui e ali nos diálogos, está presente no título do filme e na simbólica cena dos créditos iniciais – “abraço da serpente” é uma expressão com forte simbolismo xamânico, assim como a serpente da abertura que vê seus ovos sendo rompidos por dezenas de serpentes filhotes numa suposta alusão à destruição do paraíso indígena pela chegada dos homens brancos.
Ciro Guerra coloca os conhecimentos xamânicos dos povos da selva amazônica no contexto histórico do seu extermínio pelos barões da borracha e pelos jesuítas (sob o pretexto civilizatório de acabar com o “canibalismo” e “selvageria”) no início do século XX nas fronteiras entre Brasil e Colômbia.
Os diálogos entre brancos e indígenas são sempre ríspidos, diretos, com poucas cenas de alívio cômico para o espectador. O protagonista Karamatake (o xamã e último sobrevivente do seu povo) sabe que tudo está perdido: as “cobras” tomaram conta do mundo trazendo doenças e mortes. Mas ele vê em dois homens brancos, dois cientistas (um etnógrafo e um botânico) separados 40 anos no tempo, a última esperança para que os brancos “abracem a serpente”: alcançem a iluminação espiritual por meio de uma rara flor sagrada perdida no meio da Amazônia (chamada de Yakruna) e deixar de transformar todo o conhecimento em morte.
O filme é pretensioso, mas Ciro Guerra conseguiu abordar o tema com um raro didatismo: decompôs o misticismo xamânico em uma série de subtemas que vão se sobrepondo até o desfecho final: a construção do contexto histórico; o tema da memória e da fotografia; o simbolismo da serpente no xamanismo; hermetismo gnóstico e, finalmente, a gnose.