No filme "Spotlight - Segredos Revelados" um réquiem para o Jornalismo

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Mestre em Comunição Contemporânea (Análises em Imagem e Som). Jornalista e professor na Universidade Anhembi Morumbi nas áreas de Estudos da Semiótica e Linguagem Audiovisual. Pesquisador e escritor, co-autor do "Dicionário de Comunicação" pela editora Paulus, organizado pelo Prof. Dr. Ciro Marcondes Filho e autor dos livros "O Caos Semiótico" e "Cinegnose – a recorrência de elementos gnósticos na produção cinematográfica" pela Editora Livrus.
As representações do Jornalismo feitas por Hollywood sempre foram ambíguas, com uma tendência ao negativo. Isso deve ser levado em consideração ao analisarmos o Oscar de Melhor Filme para “Spotlight – Segredos Revelados”. O filme muda o foco sobre o escândalo do acobertamento de padres pedófilos pela Igreja Católica para mostrar o porquê de repórteres e editores do jornal Boston Globe terem ignorado essa pauta tão explosiva no passado. O filme é sobre a culpa de uma comunidade e do seu jornalismo por terem involuntariamente colaborado com o acobertamento de um escândalo e como “estrangeiros” (um editor judeu e um advogado armênio) sem laços com a comunidade terem conseguido perceber isso. “Spotlight” é um réquiem ao velho jornalismo local e comunitário, agora substituído pela Internet.
Ao lado da forte história sobre abusos de crianças acobertados pela Igreja por décadas (se não séculos), para quem é jornalista assistir ao filme Spotlight – Segredos Revelados provoca sentimentos nostálgicos: clippings de notícias pré-web, repórteres pesquisando em arquivos empoeirados e gastando a sola dos sapatos correndo pelas ruas atrás das fontes, jornalistas pendurados ao telefone, rotativas e caminhões levando pilhas de jornais recém-impressos cuja edição mostra na primeira página matéria resultante de longas investigações
Faltou apenas o grito “Parem as rotativas!” clássico do velho jornalismo analógico onde repórteres passavam mais tempo nas ruas checando informações do que nas redações “cozinhando” press-releases.
Muito comparado ao filme épico do jornalismo investigativo Todos Os Homens do Presidente (1972), Spotlight guarda uma diferença fundamental: enquanto lá nos anos 1970 filme tinha um ar documental e paradigmático do tempo ainda forte do Jornalismo, aqui o premiado Oscar de Melhor Filme transmite uma atmosfera de fim de época.

O Filme

O filme inicia com a chegada de um novo editor (Marty Baron – Liev Schreiber) ao jornal Boston Globe num diálogo com chefe da equipe investigativa chamada “Spotlight” , Walter Robinson – Michael Keaton. Há o medo da demissão e a preocupação da perda de leitores para a Internet. Sua missão é tornar o jornal “essencial para os leitores locais”. Baron torce o nariz ao saber que a equipe Spotlight demora meses para encontrar uma nova pauta e está preocupado com a perda dos classificados do jornal.
“Ele é judeu, não é casado e odeia beisebol”, como jocosamente comentavam os repórteres nos bastidores sobre o novo editor que claramente está ali para tentar salvar o Boston Globe diante dos novos tempos do século XXI.
A redação do jornal é formada essencialmente por jornalistas que cresceram, estudaram e vivem na cidade onde o tema das rodas conversas goram em torno do último jogo da temporada de beisebol ou sobre a consulta médica de um amigo. Baron sabe que esse provincianismo é uma barreira para o novo tempo global que a Internet prenunciava no início do século - a história se passa em 2001.
E ele confronta a equipe Spotlight com uma pauta que fora desprezada pelo jornal e que precisa ser retomada: a velha história de um padre (John Geoghan) sobre quem se multiplicam acusações de abuso infantil e que tem um potencial de se transformar em um escândalo global – os documentos podem revelar um esquema sistêmico da Igreja para acobertar padres pedófilos.
Para jornalistas que vivem em Boston e que cresceram com grande deferência à Igreja Católica, levar esse tema às últimas consequências é assustador: “Você que processar a Igreja?!?!”, exclama assustado um dos editores do jornal.

Hollywood e o Jornalismo

As representações que Hollywood faz sobre o Jornalismo nas telas sempre foram, no mínimo, ambíguas: o jornalistas são investigativos, ousados e aventureiros; mas também cínicos, inescrupulosos, alcoólatras e arrogantes.
Por isso, o Oscar de Melhor Filme a esse episódio real da revelação do sistemático acobertamento pela Igreja de inúmeros casos de pedofilia deve ser relativizado: com essa premiação Hollywood na verdade tocou um réquiem para o fim de uma era do jornalismo – a crise do jornalismo analógico, local e comunitário substituído pelo digital e global das novas tecnologias.
Ironicamente, aquilo que o filme consagra (a lenta e cuidadosa investigação, a precisão e checagem das informações) na verdade é um mundo que deixa de existir justamente pela urgência demonstrada pelo novo editor Marty Baron – paradoxalmente, tornar o jornal “essencial para os leitores locais” é trazê-lo para as pautas do mundo on line onde justamente esses valores jornalísticos que o filme consagra deixam de existir pela velocidade e imediatismo.

Mudança de foco

Diferente do documentário de 2012 Mea Maxima Culpa: Silence in The House of God (onde Alex Gibney sugeria que o Vaticano manteria registros sobre abuso de crianças por padres desde o século IV), Spotlight muda o foco. A Igreja é representada no filme de forma abstrata como “todo o sistema” e os choques do jornal com a instituição católica são apenas mostrados de passagem.
A narrativa concentra-se mais na questão de como uma comunidade inteira pode tornar-se cúmplice de crimes tão abomináveis. “Se toda a comunidade educa uma criança, toda a comunidade abusa dela ”, diz a certa altura o advogado Mitchell Garabedian (Stanley Tucci) cujos clientes enfrentam uma conspiração de silenciamento pelos membros da alta sociedade de Boston.
Spotlight quer mostrar como a própria força do jornal Boston Globe (sua redação formada por jornalistas que nasceram e vivem na própria cidade que lê o jornal) foi a sua fraqueza: silenciosamente a vida na comunidade fez ignorar uma notícia que há muito tempo deveria ter merecido uma primeira página.

Estrangeiros

O ator-diretor Tom McCarthy parece ter sido o nome certo para o projeto desse filme: ele é um especialista em personagens outsiders ou estrangeiros – Em O Agente da Estação (2003) um exilado se muda para uma estação de trem abandonada em busca de solidão e se torna o catalisador de mudanças inesperadas; em O Visitante (2007) um professor tem sua vida inesperadamente mudada quando descobre que em seu apartamento moram ilegalmente um casal de estrangeiros (uma senegalesa e um sírio).
Dessa vez em Spotlight temos um editor judeu e Garabedian, advogado armênio, que no filme são também catalisadores de mudanças numa comunidade em que segredos são abafados por festas e confraternizações sociais onde “uma mão lava a outra”. Tudo cimentado ideologicamente pelo fervor religioso e pela costumeiras missas de domingo. Como fala-se em uma linha de diálogo a certa altura do filme, só mesmo estrangeiros vindos de fora daquela comunidade poderiam enxergar algo que todos recusavam ver.
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