Em 2000, o cenário com Donald Trump presidente era o mais insano e ridículo que os criadores de “Os Simpsons” poderiam imaginar. Para o criador Matt Groening “estava além da sátira”. O episódio “Bart To The Future”, há 16 anos, mostrando uma Lisa Simpson adulta eleita presidenta para tentar consertar o país após um catastrófico governo Trump, viralizou nos últimos dias como uma estranha profecia. A lembrança desse episódio fez parte de uma série de reações tautistas (autismo + tautologia) ao inesperado terremoto Trump que parece ter desligado alguma espécie de Matrix: depois de toda uma geração viver no interior de um “efeito-bolha” liberal, globalizado e cosmopolita criado pelos algoritmos da Internet e grande mídia (cujos centro espiritual são as startups do Vale do Silício), de repente descobriu uma América profunda vivendo no deserto do real – “hillbillies”, “rednecks”, “Hicks” e toda sorte de “white trash”. E, como sempre, a grande mídia brasileira tautista tenta enxergar nos EUA a repetição da crise política brasileira que ela própria ajudou a criar.
De repente, parece que a Matrix foi desligada. Institutos de pesquisas viram seus cenários estatísticos caírem como castelo de cartas, celebridades de Hollywood e artistas mainstream e MTV ficaram perplexos juntamente com seus fãs. Veículos de imprensa e analistas políticos tiveram que fazer acrobacias cognitivas para explicar a catástrofe e, ao mesmo tempo, explicar porque o sistema democrático norte-americano é ainda o melhor do mundo Ocidental.
Um terremoto parece ter destruído a redoma dentro da qual todas as mentes liberais e bem pensantes têm vivido. A redoma de um mundo sofisticado, cosmopolita, globalizado, através da qual seus habitantes se orientam através de aplicativos, GPS e se relacionam por meio das redes sociais digitais. Uma redoma cujo centro espiritual e tecnológico são as startups do Vale do Silício e seus pais fundadores Steve Jobs e Bill Gates.
O crescimento, a manutenção e o fim dessa redoma, ou para muitos “bolha” (numa alusão à irrealidade especulativa criada pelos mercados financeiros) mantida pela grande mídia e indústria do entretenimento, apresenta todos os sintomas daquilo que a Teoria dos Sistemas chama de tautismo – autismo + tautologia.
O mal de todos os sistemas que de tão grandes e complexos, fecham-se em si mesmos (“fechamento operacional”, “auto-organização”) criando um mundo próprio com pouco ou nenhum contato com a realidade exterior que é descrito a partir de uma imagem que o sistema tem de si mesmo. O que torna o sistema auto-referencial, redundante e autista.
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Efeito bolha da Internet: tautismo |
Tautismo e choque cognitivo
Esse fechamento tautista criado, entre outras coisas, pelo “efeito-bolha” dos algoritmos de sites de busca e redes sociais da Internet que criam bolhas viciosas e virtuais impedindo o usuário de obter outras informações que supostamente não façam parte do seu interesse (sobre isso clique aqui), explodiu tal qual a bolha especulativa dos mercados imobiliários de 2008. Cujas ondas de choque ainda repercutem, como bem demonstrou a vitória de Donald Trump.
Mas mesmo no estouro da bolha que permitiu esse “choque cognitivo”, ainda assim as respostas do sistema são tautistas – mesmo diante de uma espécie de elefante invadindo uma sala de cristais, o tautismo ainda alimenta um mecanismo de defesa psíquico de negação e luto.
Tautismo da grande mídia brasileira
Para começar, na mídia brasileira. Acostumados com a redoma do monopólio das organizações Globo dentro da qual a grande mídia enxerga o País e o mundo, a vitória de Trump parece ter sido mais chocante do que para os próprios norte-americanos.
Os telejornais não conseguem esconder modus operandi tautista: repetem imagens de manifestações de rua anti-Trump, com destaque de cenas de fogueiras e faixas de protesto – uma alusão marota às manifestações de rua que, aqui no Brasil, culminaram com um golpe jurídico-parlamentar-midiático na frágil democracia brasileira.
Para a mídia brasileira, as ruas dos EUA estão incendiando. Sem perder o traquejo, alguns analistas ainda chegam a especular possibilidade de impeachment...
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Protesto anti-Trump nas ruas: o traquejo tautista da Globo |
Tal como zumbis, apresentadores e analistas repetem mecanicamente os mesmos clichês da crise política brasileira, repetidas por anos até culminar no impeachment de Dilma Rousseff.
Parecem acreditar que o mesmo script da grande mídia brasileira pode ser aplicado aos EUA e que Hillary Clinton possa se transformar em um novo Aécio Neves de saias, inconformado pela derrota, tentando por algum meio anular a eleição.
"Os Simpsons" e a América Profunda
Porém, a mais interessante resposta tautista ao inominável Donald Trump é uma suposta profecia de 16 anos atrás, feita em um episódio da série Os Simpsons chamado “Bart to The Future”. O episódio mostrava uma já adulta Lisa Simpson eleita para ocupar o Salão Oval da Casa Branca com a difícil missão de reconstruir um país economicamente quebrado e dependente da China depois de um devastador governo Donald Trump.
O criador da série, Matt Groening, disse no mês passado que “em 2000 o nome Donald Trump era a piada mais absurda que poderíamos imaginar na época, e isso ainda é verdade. Está além da sátira”.
Embora seja um bilionário bem sucedido, para as cabeças bem pensantes da bolha tautista das grandes cidades globalizadas e cosmopolitas dos EUA, Trump é um americano truculento, primário e grosseiro.
Pelo seus modos e discurso, Trump é o ícone de uma “América Profunda” que a indústria do entretenimento às vezes arriscou uma olhar mais sério como no filme O Mestre (2012, clique aqui). Mas, via de regra, Hollywood estereotipa essa América como “rednecks”, “hillbillies”, “hicks” (caipiras) ou, simplesmente, “white trashs”.
Caipiras ingênuos, desajeitados e burros, porém com bom coração; ou alcoólatras abusivos, serial killers, racistas e ressentidos que podem assombrar viajantes da classe média liberal que por ventura cruzem o Meio Oeste norte-americano em direção à civilizada Califórnia.
Hollywood e a América Profunda
A lista de filmes que alimentam esse imaginário é interminável, desde os clássicos O Massacre da Serra Elétrica (1974) ou A Família Buscapé (Beverly Hillbillies, 1993), passando por Redneck Zombies (1989), Kalifornia – Uma Viagem ao Inferno (1993) até os recentes Vida Sem Destino (Gummo, 1997), Poor White Trash (2000), Viagem Maldita (The Hills Have Eyes, 2006), Doce Vingança (2010) ou 2001 Maníacos (2005).
Ao colocar Donald Trump como um futuro presidente, Os Simpsons criou o cenário mais insano e ridículo que os roteiristas da série poderiam imaginar na época. O cenário de uma América profunda e grosseira chegando à Washington sofisticada de Lisa Simpson, que na série costuma tocar saxofone assim como o democrata Bill Clinton fazia em improvisos nas suas campanhas nos anos 1990.
Épocas onde todos os americanos concordariam que alguém como Trump jamais chegaria à presidência. Épocas de glória da Globalização, de que a História teria chegado ao fim com o Windows 95 e que a estrada do futuro estava na Internet, nas empresas “ponto com” e nas praças financeiras interligadas em tempo real.
Quando o princípio de realidade falha como na crise global de 2008, o reprimido retorna, assim como retornaram os primitivos valores alemães do sangue e da terra com o nacionalismo nazi em resposta à crise econômica e hiperinflação pós-guerra.
A profecia sincromística de “Os Simpsons”
Mas o episódio “Bart To The Future” também foi uma profecia. Mas de um tipo muito especial: a profecia autorrealizável e, por tanto, sintoma do tautismo da grande mídia e indústria do entretenimento. Um fenômeno que se inscreve dentro dos estranhos eventos sincromísticos.
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