Sob a fachada de uma respeitada família de um burocrata do governo aposentado e uma professora primária em um dos bairros mais ricos de Buenos Aires, estava um terrível segredo: no porão daquela casa escondiam-se vítimas de sequestros, friamente assassinados após o pagamento de cada resgate milionário. Baseado em caso real, o filme argentino “O Clã” de Pablo Trapero retrata um tipo bem especial de maldade, bem diferente da hollywoodiana e próxima da “transparência do Mal” retratada na literatura por Marquês de Sade e no cinema por Pasolini – não mais a maldade como um ente que desvirtua e corrompe, mas o Mal originado da própria racionalidade e da virtude: por trás de uma grande fortuna, esconde-se sempre um grande crime.
Uma família prepara-se para o jantar em uma casa em San Isidro, um dos bairros mais ricos de Buenos Aires. O pai reza com a família antes de iniciar a refeição. À mesa, estão as filhas adolescentes que nasceram em berço de ouro. A mãe, uma pacata professora. E o filho primogênito é um bem sucedido atleta de rúgbi, presente em capas de revistas esportivas nacionais e estrela da seleção argentina.
A perfeita imagem de uma família estável, religiosa e bem sucedida. Se não estivéssemos em 1982, em plena época da conturbada transição da ditadura para a democracia. O patriarca é um ex-agente do serviço de inteligência da ditadura militar argentina (1976-1983) que aproveita da experiência e contados adquiridos nas sombras do poder para ter benefícios e proteção.
E no porão da casa, um segredo que iria abalar a opinião pública da Argentina: sob o olhar frio do chefe da família (Arquimedes Puccio) e a cumplicidade da mulher (Epifania Puccio) e dos filhos, são escondidos empresários e seus familiares sequestrados em troca de resgates milionários. E todos jamais são devolvidos – feito o pagamento eram depois friamente assassinados.
Baseado em um caso real que impactou a Argentina, o cineasta Pablo Trapero (
Abutres, 2010 e
Elefante Branco, 2012) resolveu aceitar o desafio de revolver esse tema tabu da história recente do país com o filme
O Clã. Os mais jovens não conhecem o caso Puccio. Desde o episódio, nenhum livro ou algo que contasse a história foi publicado no país. Trapero teve que conversar com juízes, familiares, vizinhos para levantar pistas sobre o que acontecia dentro da casa e traçar o perfil de cada membro da família.
Ao trabalho genial de câmera e edição de Trapeiro (a narrativa não linear, flash backs, montagens paralelas e os passeios da câmera no interior da casa dos Puccio vão compondo a atmosfera de uma estranha combinação de harmonia e tensão) associa-se a assombrosa transformação do ator Guillermo Francella – conhecido por papeis humorísticos como na série de TV
El Hombre De Tu Vida, em
O Clã o ator incorpora, inclusive fisicamente, a frieza e o cinismo assustador do personagem, sem dar um sorriso sequer em todo o filme.
Esqueça o Mal hollywoodiano
Não há como assistir ao filme
O Clã sem deixar de lembrar da emblemática frase de Honoré de Balzac: “Por trás de toda grande fortuna esconde-se um crime”. Por trás de todo mérito podem estar escondidos impunidade, acobertamento e proteção que perpetuam golpes.
Por trás do mérito pode esconder-se o Mal. Como imaginar que no interior de uma casa do bairro da burguesia de Buenos Aires morava a família mais violenta de criminosos da história da Argentina?
Esqueça os vilões psicóticos enlouquecidos ou caipiras selvagens de filmes hollywoodianos como
O Massacre da Serra Elétrica. Em
O Clã o Mal é de outra natureza, é a própria transparência do Mal: frio, calculista, metódico, quase científico, sob a aparência de normalidade familiar acima de qualquer suspeita. Uma aparência também metodicamente planejada por toda a vida do patriarca Arquimedes Puccio.
Com o filme
O Clã o cineasta Pablo Trapero entra numa área cinza e sinistra que é o próprio underground do Iluminismo, discutido desde a obra de Marques de Sade até chegarmos aos filmes de Pasolini, em especial
Saló ou Os 120 Dias de Sodoma – o Mal transparente, aquilo que não pode ser explicado porque originado da própria Razão e dos seus instrumentos que deveriam impedir a maldade de existir – sobre o filme Saló,
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O Filme
Arquimedes Puccio aproveita-se das suas antigas ligações com a ditadura militar para garantir o acobertamento de todos os seus sequestros. Debaixo de uma chancela de normalidade era ajudado pela esposa e dois dos cinco filhos o ajudavam diretamente nos planos e ações de sequestro.
Alejandro Puccio, o primogênito, é o mais atormentado em ajudar os planos do pai. Vive entre a vida material confortável e atleta bem sucedido de rúgbi e a culpa em ser obrigado a entregar conhecidos seus da alta sociedade de San Isidro ao pai para serem sequestrados e, posteriormente, assassinados.
Tantos sequestros e mortes são escondidos pelos amigos do alto escalão militar. Caso transformem-se em algum escândalo na opinião pública, colocava-se a culpa em grupos terroristas de esquerda. Mas nos anos 1980 a ditadura militar está no ocaso e os amigos militares de Puccio estão perdendo as posições de maior poder no Estado.
Puccio acredita que tudo é apenas uma fase e logo os militares voltarão ao poder. Por isso, ele continua os seus planos macabros, alheio às rápidas mudanças do cenário político argentino.
A transparência do Mal
Com
O Clã Pablo Trapeiro não apenas revirou uma história que os argentinos parecem querer esquecer – assim como por trás de toda fortuna esconde-se um crime, por trás de todo poder esconde-se o genocídio. Seja no Estado ditador ou na sua face mais liberal, o poder é exercido através da violência, da frieza e da indiferença criado pelo sistema conceitual da Razão política ou econômica.
Tanto Marquês de Sade na literatura como Pasolini no cinema pressentiram essa transparência da maldade: o Mal não é algo diabólico que surge do além e corrompe um sistema racional. O Mal já está inscrito tanto na Razão como na Natureza pelo seu caráter reversível – a paz produz a guerra, o remédio a doença, e a virtude a corrupção - leia o conceito de "reversibilidade do Mal" do filósofo francês Jean Baudrillard -
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No filme, Arquimedes Puccio apresenta um álibi para perpetrar todos os crimes: para ele, todos os ricaços que rouba e mata são desgraçados responsáveis pela crise político e econômica argentina. Mas isso é apenas uma racionalização que esconde a própria essência do Mal – Puccio transformou-se numa máquina fria e calculista de punições. O sistema repressivo militar acabou, mas ele deve continuar castigando. Para Puccio este é o preço para manter a normalidade das instituições: o Estado, a tradição, a família.
O Mal não é a antítese da Razão: é a sua reversibilidade natural. Para Puccio, assim como para o próprio sistema como pressentiu Balzac, o conforto material, a fé na religião, o sucesso do filho atleta e a paz no lar somente podem ser construídos através de uma violência subterrânea. Se poucos ganham, a maioria deve perder.
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