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B.B. King talvez tenha sido um dos últimos músicos a ver a guitarra elétrica não como um meio para demonstrar velocidade, técnica e virtuosismo (valores caros para a atual indústria do entretenimento que alimenta o mito dos artistas virtuosos e narcisistas que divertem o público), mas como instrumento para expressar os sentimentos antagônicos do Blues: dor/alegria, tristeza/redenção e melancolia/celebração. Sua morte não significou apenas a passagem de alguém que inspirou gerações de músicos de Jimi Hendrix a Steve Ray Vaughan. Morreu um pouco mais um tipo de gênero musical cujas origens anteriores à indústria do entretenimento conferia a sua arte uma, por assim dizer, “dialética negativa”: uma música que produzia alegria e diversão e, ao mesmo tempo, invocava a memória de que o Blues tinha surgido em meio à injustiça e segregação. B.B. King viveu ainda a tempo de ver o Blues se transformar em um standard de entretenimento que concilia a música com um mundo injusto no qual ela própria nasceu.
Eu vou fazer as malas
E seguir o caminho
Sim
Eu vou fazer as malas
E seguir o caminho
Onde
Não há ninguém preocupado
E não tem ninguém chorando
(“Every Day I Have the Blues”, Elmore James)
Dizem que o nome da guitarra de B.B. King, Lucille, surgiu de um incidente em um show num salão de danças no Arkansas em 1949.
Para aquecer o ambiente foi aceso um barril cheio de querosene, solução bastante comum naquela época. Durante o show dois homens começaram a brigar, esbarrando no barril que espalhou o conteúdo por todo lado e iniciando um incêndio. Com as chamas em todo salão, todos correram para fora do lugar quando B.B. King percebeu que na fuga deixara sua guitarra, a amada Gibson de 30 dólares. Voltou ao edifício em chamas e a recuperou. No dia seguinte soube que dois homens morreram naquele incêndio e o motivo da briga que iniciou a tragédia: o pivô de tudo teria sido uma mulher chamada Lucille.
Esse passou a ser o nome da sua primeira guitarra, assim como toda guitarra que teve desde então, como uma lembrança de nunca fazer algo tão estúpido como entrar num prédio em chamas ou brigar por uma mulher.
[caption id="" align="alignright" width="260"] B.B.King com uma "Lucille" em 2008[/caption]
Lenda ou verdade, esse episódio é emblemático por expor a natureza visceral do Blues, tão bem representado pelo “blues boy” B.B. King, falecido na madrugada do dia 15 de abril aos 89 anos. Considerado o maior guitarrista de Blues da atualidade, com sua voz ao mesmo tempo grave e chorosa e a inconfundível nota em vibrato na guitarra, a morte de King não foi apenas a passagem de mais um dos grandes nomes que foram os pilares da história do pop – seu talento inspirou grandes guitarristas como Jimi Hendrix, George Harrison, Eric Clapton, Buddy Guy e Steve Ray Vaughan.
B.B. King: o último dos músicos
B.B. King foi mais do que isso: aos 86 anos ainda fazia 100 apresentações por ano, praticamente um roadshow (sempre preferia viajar de ônibus já que tinha medo de aviões) porque dizia que “afinal, preciso comer”; sempre em plena fama deixava transparecer suas origens humildes no Mississipi – uma infância parecida como a de milhares de meninos negros que trabalhavam nas grandes plantações de algodão do Sul segregacionista.
B.B. King talvez tenha sido um dos últimos músicos a ver o instrumento musical menos como meio de virtuosismo (pelo contrário, seu estilo se notabilizou em solos com poucas notas musicais) e muito mais como meio de reviver a cada música um mix de dor/alegria, tristeza/redenção, melancolia/celebração, separações/amores etc.
A economia das notas musicais e também nos acordes era compensada pelo vibrato e notas longas e lânguidas, como se a sua guitarra quisesse desesperadamente expressar o Blues visceral. Algo assim como o incêndio no salão de danças do Arkansas. A morte e a dor convivendo com alegria e celebração.
Músicos como B.B. King ajudaram a revelar a verdadeira natureza da música e da arte, coisa cada vez mais esquecida numa indústria do entretenimento que parece privilegiar muito mais a performance e o virtuosismo – os solos metodicamente calculados do virtuosismo de uma escala Van Halen ou Bartok onde a teatralidade da rapidez dos dedos e a velocidade dos solos de um Joe Satriani ou de um Steve Vai impressionam muito mais do que a expressividade das notas.
A Dialética Negativa de B.B. King
Com B.B. King morre um pouco mais um típico de música cujas origens são anteriores à indústria do entretenimento e a “estandartização” da música – a música submetida a rígidas regras dos produtores musicais para ser “limpa” de qualquer dissonância, ruído ou sujeira para ser reduzida a um standard de alegria, virtuosismo ou performance de distração ou passatempo.
A força da arte de B.B. King que atravessou décadas influenciando gerações de músicos estava justamente naquilo que pensadores como o professor de literatura Erik Wilson falava em “polaridade vital” ou ainda o filósofo Theodor Adorno definiu como “Dialética Negativa” - sobre esses conceitos clique aqui.
Outro pensador, Walter Benjamin, dizia que todo documento de cultura é também um documento de barbárie. Pela arte ser fruto de uma sociedade marcada pela segregação, desigualdade, exploração e violência, ela expressaria em suas manifestações autênticas uma “polaridade” ou “dialética negativa”: de um lado a melancolia e a dor; e do outro a alegria e a esperança de um mundo diferente e mais feliz. Em termos filosóficos, a polarização entre imanência e transcendência.
O Blues surge como manifestação cultural dos escravos das plantações de algodão do Sul dos EUA que usavam o canto (as worksongs) para embalar as sofridas jornadas de trabalho. No Blues está a memória da escravidão e da injustiça desse mundo. Mas, ao mesmo tempo, junto com a dor está alegria de compor e tocar o blues. É uma celebração, como se quisesse simbolizar a utopia de um futuro mais feliz. Sim, ainda há esperança! É como parece simbolizar a alegria do blues man.
Essa “polaridade vital” (alegria/tristeza, dor/redenção) contem, como dizia Adorno, em sua essência uma dialética negativa que recusa a conciliação com esse mundo – ao invés de síntese dialética, a antinomia e o antagonismo radical: a memória da barbárie a cada celebração musical e cada sentimento expresso pelo vibrato ou pela nota estendida com languidez.
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