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No Brasil, a crítica especializada sobre o filme “Que Horas Ela Volta?” fala em “crítica social contundente” e “olhar crítico à sociedade”. No Exterior as análises são mais matizadas: “contradição entre novela e crítica social” e “mix de drama como elementos para agradar um grande público”. Um filme como “Que Horas Ela Volta?” é impossível de ser pensado dentro de uma tradicional análise de conteúdo. Ao contrário, deve ser analisado pelos seus aspectos de produção: de como um conteúdo potencialmente transgressor ou crítico pode ser diluído por meio do chamado “padrão globo de qualidade” - a maneira como joga com elementos cênicos, interpretativos e recursos técnicos como enquadramentos de câmera, timing, cor etc. E principalmente a contradição entre a sutileza que a diretora Anna Muylaert quis dar à narrativa e o “novelismo” imposto pela Globo Filmes para criar uma espécie de filme sobre luta de classes padrão exportação.
“Não tenho empregada porque não quero levar a luta de classes para dentro da minha casa”, disse certa vez a filósofa da USP Marilena Chauí. A permanência das relações escravista entre a Casa Grande e a Senzala na sociedade urbana com seus quartinhos de empregada e elevadores de serviço sempre foi um tema das esquerdas – a sociedade brasileira que, sob a fachada da cordialidade e miscigenações raciais, esconderia a realidade da luta de classes.
Poderíamos considerar a co-produção da Globo Filmes em Que Horas Ela Volta? (com a global Regina Casé encarnando uma empregada doméstica dominada por relações invisíveis de segregação) uma surpreendente adesão da Globo a uma pauta politicamente de esquerda ou, no mínimo, progressista?
A Globo sempre soube para onde os ventos sopram. Quando a TV Globo, no processo de abertura política no início dos anos 1980, colocou no ar grandes produções como Morte e Vida Severina, Grande Sertão Veredas (com temas que seriam proibidos na Ditadura Militar) e o sucesso de Roque Santeiro (novela censurada nos anos 1970), muitos críticos viram uma suposta simpatia por temas de crítica social na poderosa emissora.
Lá no passado tínhamos a mudança da conjuntura política. Hoje, a ameaça da Globo pelas tecnologias de convergência e das séries do Netflix. A Globo sabe que essas novas tecnologias disruptivas (por serem globalizantes e potencialmente inclusivas) criam uma cultura jovem altamente sensível a temas como racismo, preconceito e segregação.
Assim como nos anos 1980, também dessa vez muitos críticos estão vendo um conteúdo supreendentemente transgressor para uma produção associada a conservadora Organizações Globo como o filme Que Horas Ela Volta?: muitos falam em “crítica social forte e contundente”, “olhar crítico à sociedade” etc.
Um pouco diferente da crítica brasileira tão assertiva e otimista, no exterior os críticos parecem ver algo mais matizado que parece escapar aos nossos analistas: Variety, Hollywood Reporter, The Guardian e New York Times falam que The Second Mother (título dado no mercado externo) é uma “agradável contradição entre novela e crítica social”, “filme ao mesmo tempo sério e divertido” e “um filme com um tema local mas com apelo universal” e “um mix de elementos dramáticos com uma sensibilidade que busca agradar o grande público”.
Crítica social confunde-se com análise fílmica
Se aqui os críticos parecem confundir a crítica social com análise fílmica e, por isso, querem enxergar num produto cinematográfico comercial uma “forte crítica social”, talvez mais isentos e longe do atual atmosfera política Fla X Flu brasileira os críticos estrangeiros conseguem analisar o filme como mais um produto comercial destinado à exportação.
Lá fora parece que a crítica percebe uma ambiguidade e polissemia próprios da linguagem de uma produtora e distribuidora que busca a exportação e o sucesso comercial. Presos que ainda estamos à tradicional análise de conteúdo, ao vermos um filme que nominalmente aborde temas que vão contra normas, valores ou morais vigentes, é imediatamente considerado um filme “contestador”.
Um filme como Que Horas Ela Volta? é impossível de ser pensado dentro de uma tradicional análise de conteúdo. Ao contrário, deve ser analisado pelos seus aspectos de produção: de como um conteúdo potencialmente transgressor ou crítico pode ser diluído por meio do chamado “padrão globo de qualidade”- a maneira como joga com elementos cênicos, interpretativos e recursos técnicos como enquadramentos de câmera, timing, cor etc.
O Filme
Regina Casé interpreta Val, uma mulher emocional e entusiástica que, após uma breve introdução, sabemos que ela é uma empregada doméstica que há mais de uma década cozinha, lava e limpa a casa de uma rica família de São Paulo. E mais do que isso, Val tornou-se a referencia materna de Fabinho (Michel Joelsas), filhos dos pais ausentes Bárbara (Karina Telles) e Carlos (Lourenço Mutarelli) – ela uma estilista e trendsetter paulistana e ele um artista plástico que vive da renda da fortuna deixada pelo pai.
A rotina de Val, cega às pequenas segregações cotidianas impostas pelos patrões liberais que a consideram “parte da família”, é quebrada com a chegada da sua filha Jéssica (Camila Márdila) – Val a deixou no Nordeste ainda pequena e de São Paulo enviava dinheiro para custear sua criação. Aos 19 anos ela está determinada a fazer a Fuvest e entrar no curso de Arquitetura da USP.
Aos poucos cresce a indignação de Jéssica em relação ao estado de alienação da sua mãe, conformada com as “regras da casa” que a delimitam entre a cozinha e o minúsculo quarto de empregada. A tensão cresce com os questionamentos de Jéssica, mostrando os limites de uma família de classe média alta supostamente liberal.
Ambiguidade e polissemia
A ambiguidade entre o humor de situações e a crônica de drama social criou uma polissemia ideal pra produtos de exportação: para nós, o filme representa uma “crítica social” da ordem escravocrata ainda não superada; para os gringos, um drama familiar de pais ausentes e um filho que buscou uma “segunda mãe”.
Dessa forma, Que Horas Ela Volta? tem o “apelo universal” esperado pelos distribuidores internacionais: a velha fórmula do alívio cômico, representado pela protagonista Val, tal como previsto nas fórmulas de roteiristas como Syd Field ou Christopher Vogler. A verdadeira heroína é Jéssica, o polo da indignação que ameaça detonar uma luta de classes doméstica. Val é o alívio cômico que faz a plateia rir a cada chiste ou gíria nordestina. É o personagem picaresco que deve acompanhar o herói na sua jornada – deve fazer o herói retornar para a realidade, como acompanhamos no desfecho. Quebra da ordem e retorno à ordem; da luta de classes à reconstrução da ordem familiar.
A hegemonia de Val
Por isso essa centralidade, essa hegemonia de Val na narrativa. Essa excessiva hegemonia de um personagem produz uma das principais característica das telenovelas globais: o privilégio da fala, do diálogo verbal e das expressões.
O filme vive uma contradição entre os longos planos e enquadramentos assimétricos (que poderiam suscitar momentos de lirismo, de cenas não faladas e reflexivas) e a obsessão de se marcar ou de expressar nitidamente um fato pela palavra. Val é verborrágica e, por isso, a câmera concentra-se sempre nela em planos fechados (close up, big close up) no melhor estilo das telenovelas. A hegemonia do personagem e o individualismo esvaziam a suposta contundência da crítica – a câmera e a fala se concentram em Val, reforçando o alívio cômico.
O melhor exemplo desse dispositivo fílmico foi acompanhado por esse humilde blogueiro em uma sessão popular do filme no CEU Butantã (complexos educacionais municipais) em São Paulo: a certa altura do filme, Jéssica e Fabinho vão prestar o vestibular da Fuvest. Ápice do drama social onde Jéssica prestaria vestibular após enfrentar todas as dificuldades sociais e emocionais, enquanto Fabinho, cercado de todas as facilidades materiais e geográficas, certamente sairia com vantagem.
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