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"Contraponto" (Tideland, 2005) é uma mistura de "Alice no País das Maravilhas" de Lewis Carroll com "Psicose" de Hitchcock. Com uma atmosfera sombria, agressiva e crua com a tradicional câmera inquieta com ângulos delirantes, o ex-Monty Python Terry Gilliam parece querer fazer um acerto de contas com a sua geração:se um dia os jovens de Maio de 1968 pretendiam que a imaginação chegasse ao poder, agora a imaginação pode criar monstros e pesadelos numa geração marcada pela "ausência dos pais".
A reação da Geração X está no filme “Contraponto”: Jeliza-Rose vive num mundo de vazio emocional que tem que ser compensado com “fantasias arcaicas de caráter regressivo como defesa contra as perdas e a incapacidade de sublimar” (não há mais pais para conseguir identificação – veja LASCH, Chistopher. A Cultura do Narcisismo, R. de Janeiro: Imago, 1983). Como já apontou Lasch, essas fantasias adquirem um aspecto reacionário e conservador (Jeliza-Rose idealiza os pais como reis e rainhas), não consegue lidar com a morte e perdas que são absorvidas por um imaginário autista. É o “narcisismo patológico”.
Ex- integrante do histórico grupo inglês de humor o Monty Python, Terry Gilliam é de uma geração cujo senso de humor estava sintonizado com a cena vivida à época: contracultura, movimentos estudantis e utopias revolucionárias na década de 60. Seu humor anárquico e “non sense” trazia a pretensão secreta de a arte e a estética desmontar o poder e todos os pilares conservadores da sociedade. Em outras palavras: a “imaginação no Poder”, palavra de ordem da geração da Revolução Estudantil de Maio de 1968 na França.
Com a extinção do Monty Python, a carreira cinematográfica como diretor continuou a levantar essa bandeira em filmes como “Brazil – O Filme” (Brazil, 1985)” e “As Aventuras do Barão de Munchausen” (The Adventures of Baron Munchausen, 1988), sempre com personagens e temas recorrentes: o herói proveniente de um universo onírico que consegue, a partir da força dos sonhos e fantasias, enfrentar uma realidade opressiva e derrotar demiurgo e sistemas autoritários.
Mas tudo isso acaba com o filme “Contraponto” (Tideland, 2007) onde Gilliam parece fazer um acerto de contas com a sua geração ao mostrar que os sonhos e fantasias podem se transformar no contrário, isto é, escapismo e negação da realidade. O psicodélico universo onírico pode se transformar em sombrios pesadelos. Algo em torno da atmosfera que inspira o filme “Contraponto”: um cruzamento entre “Alice no País das Maravilhas” de Lewis Carroll com “Psicose” de Hitchcok.
Ao apresentar como um conto de “terror poético” a estória de uma menina que vive num mundo escapista de fantasias para negar a realidade de pais negligentes e viciados em heroína, Terry Gilliam insere o filme no contexto de discussões sociológicas sobre a chamada “geração sem pais”, os chamados “baby boomers”, e os reflexos em gerações posteriores.
O filme é uma adaptação de um cultuado livro do norte-americano Mitch Cullin publicado em 2000. A estória é um pesadelo gótico sulista sobre uma pequena menina chamada Jeliza-Rose (Jodele Ferland) entregue à própria sorte diante de negligentes pais: rock star Noah (Jeff Bridges) e a mãe, uma roqueira croupier (Jennifer Tilly). Ambos viciados em heroína, embora a mãe tente abandonar a droga com o consumo frenético de chocolates e metadona.
A rotina de Jeliza-Rose é preparar a heroína e a seringa hipodérmica e assistir ao pai injetar-se e afundar numa poltrona (“o papai vai sair de férias”, diz para a filha); e depois massagear as pernas da mãe, deitada numa cama repleta de chocolates, enquanto recebe no rosto baforadas das compulsivas tragadas de cigarros. São cenas incômodas, ainda mais narradas em planos de uma câmera inquieta, com ângulos estranhos e delirantes.
Enquanto Jeliza-Rose lê em seu quarto “Alice” de Lewis Carroll e imagina-se caindo no buraco do coelho, sua mãe tem uma overdose de metadona e morre ao mesmo tempo em que o pai tenta incendiar o quarto para simular um funeral viking.
Junto com seu pai, Jeliza-Rose é levada para a casa em ruínas da sua avó, em meio a um milharal no sul profundo dos EUA – um sobrado isolado que lembra muito o casarão de Norman Bates do filme “Psicose”. Lá, Noah tem as suas “férias permanente” em uma overdose de heroína, deixando a sua filha sozinha, sem nada, mas com a imaginação acelerada pela leitura das páginas de “Alice no País das Maravilhas”. Imersa no seu mundo onírico, Jeliza-Rose imagina o cadáver morto do pai na poltrona como um rei, o maqueia e coloca peruca, enquanto as moscas aumentam e o cheiro da putrefação cresce.
As únicas companhias de Jeliza-Rose são quatro cabeças de bonecas que coloca na ponta dos dedos, cada um com um nome e com vozes ventrílocas. A solidão é quebrada com a descoberta de uma fazenda vizinha onde mora um casal de irmãos igualmente sem pais: uma mulher louca chamada Dell (uma taxidermista que pretende empalhar o cadáve de Noah) e seu irmão epilético Dickens, sempre usando uma máscara de mergulho e snorckel como se nadasse nos milharais.
As imagens das pradarias e milharais e o profundo azul do céu parecem nos informar que teríamos mais uma das floridas esquisitices de Terry Gilliam com efeitos especiais em CGI com figuras cricaturais como em “Barão de Munchausen” para mascarar algo essencialmente sentimental ao final da narrativa. Mas a narrativa passa a ser cada vez mais realista, agressiva, crua e sombria. A personagem de Jeliza-Rose torna-se cada vez mais uma versão enlouquecida do personagem Blanche Du Bois (do livro de Tennessee Williams “Um Bonde Chamado Desejo”) em algumas cenas repugnantes e nojentas.
Baby Boomers e a ausência dos pais
Os pais de Jeliza-Rose pertencem à própria geração de Terry Gilliam, os chamados “baby boomers”. Essa é uma expressão para designar a geração de filhos nascidos após a segunda guerra mundial durante uma explosão populacional que se seguiu ao conflito bélico. Historiadores e sociólogos como Christopher Lasch, Neil Postmann e Mike Featherstone apontam para três traços básicos dessa geração: o fato de terem sido filhos desejados e cercados por excesso de solicitude; a cultura da juventude, a extensão da adolescência e o surgimento dos “adultos-crianças”; e a visão estetizada da vida.
Para Lasch o narcisismo foi a marca dessa geração. A primeira geração de filhos verdadeiramente desejados como símbolo de um renascimento após a Guerra Mundial cresce na nova sociedade de consumo onde a família é criada dentro de um ideal estereotipado pela publicidade à custa do sentimento espontâneo, transformando os laços familiares uma relação ritualizada e vazia de substância real.
Essa família que cerca os “baby boomers” com excesso de solicitude para mascarar a ausência de espontaneidade vai estender a adolescência de uma geração em torno dos valores jovens (sexo, drogas, rock, culto ao corpo e da intensificação das sensações e prazeres).
Absorvidos pela indústria do entretenimento a “beat generation”, hippies e toda a contracultura (cuja crítica pressentia o vazio e hipocrisia das relações familiares) se perverteu em “culto à juventude” e a extensão da adolescência e imaturidade: os chamados “adultos-crianças” ou “adultos-jovens”. Por isso, para essa geração a vida se torna cada vez mais estetizada: a supervalorização da arte, de que “os artistas são os heróis”, “nada de regras, só opções” que norteia um estilo de vida perpetuamente renovável que alimentará todo o marketing nas décadas subsequentes (veja FEATHERSTONE, Mike. Para uma Sociologia da Cultura Pós-Moderna).
Como resultado, teremos uma geração cuja transição da condição de filho para a de pai será difícil, incompleta e, em alguns casos, inexistente.
A chamada “Geração X” posterior (os filhos dos “baby boomers”) trará como marca uma geração cujos pais são “ausentes”: ou a ausência física (estão num tipo de trabalho que se funde com a vida privada graças as novas tecnologias digitais e, também, pela ideologia da “realização pessoal”) ou, quando estão presentes, se utilizam do suborno e chantagens emocionais diante dos conflitos e exigências psíquicas dos filhos.
A reação da Geração X está no filme “Contraponto”: Jeliza-Rose vive num mundo de vazio emocional que tem que ser compensado com “fantasias arcaicas de caráter regressivo como defesa contra as perdas e a incapacidade de sublimar” (não há mais pais para conseguir identificação – veja LASCH, Chistopher. A Cultura do Narcisismo, R. de Janeiro: Imago, 1983). Como já apontou Lasch, essas fantasias adquirem um aspecto reacionário e conservador (Jeliza-Rose idealiza os pais como reis e rainhas), não consegue lidar com a morte e perdas que são absorvidas por um imaginário autista. É o “narcisismo patológico”.
Geração X e terrorismo
Os elementos do mundo real (a descoberta da sexualidade entre Jeliza-Rose e Dickens; a linha do trem que corta a fazenda) são absorvidos pelo universo autístico de faz de conta: a menina imita os “beijadores tolos” (como interpreta oniricamente o sexo) e o trem é visto por Dickens como um “imenso tubarão” que deve ser morto no “fim do mundo”. Nesse ponto, a narrativa adquire ainda aspectos mais sombrios, lembrando mais um aspecto do “narcisismo patológico” tal como descrito por Lasch:
“Os padrões psicológicos associados ao narcisismo patológico (...) no fascínio pela fama e celebridade, na incapacidade de deter a descrença, no medo da competição, na superficialidade e na qualidade transitória das relações pessoais, no horror à morte” (IDEM, p. 217)
No universo delirante e escapista de Dickens e Jeliza-Rose o “fim do mundo” é explodir o trem que passa diariamente pela fazenda com bananas de dinamite que Dickens esconde debaixo da cama.
“Dickens: Boom! E tudo desaparece. O fim do mundo e tudo explode em pedaços... e então matarei o tubarão e serei herói.
Jeliza-Rose: Tenho certeza. Eu te ajudarei. Sairemos na TV. Sou sua esposa para sempre.”
Criação de um ideal fixo e grandioso (se casarão e viverão num castelo como a família perfeita que nunca conheceram) e a conquista da celebridade midiática com o atentado ao trem, afinal os pais ausentes sempre dizem que os filhos são “especiais”. Se isso não se comprova nas relações familiares pela negligência emocional dos pais, o ideal narcísico é transferido para as imagens midiáticas em torno de gestos e atitudes vazias que buscam notoriedade imediata.
Hipótese perturbadora: se os atiradores e “serial killers” possuem um inegável componente midiático – querem imortalizar seus gestos por meio de vídeos e mensagens com fantasias conspiratórias deixadas para TVs e repórteres – seriam eles frutos patológicos dessa geração marcada pela “ausência dos pais”?
Ficha Técnica
- Título: Contraponto (Tideland)
- Diretor: Terry Gilliam
- Roteiro: Terry Gilliam baseado no livro de Mitch Cullin
- Elenco: Jeff Bridges, Jodelle ferland, Brendan Fletcher, Janet McTeer, Jennifer Tilly
- Produção: Recorded Picture, Téléfilm Canada, HanWay Films
- Distribuição: Capri Films
- Ano: 2005
- País: Canadá e Reino Unido