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Fim de mais um semestre. Lecionei Geopolítica considerando-a um campo de estudo e não como uma disciplina fechada. Depois do primeiro bimestre mais descritivo da Geopolítica clássica, passando por autores e conceitos consagrados, chegamos ao ponto crítico. Isto mesmo, relativizamos os conceitos de espaço fugindo do simplismo nacional/internacional. Não se trata dessa relação somente. Tendo como referenciais teóricos Zygmunt Bauman e Milton Santos, tratamos de outras possibilidades de “mundos”. Privilegiamos o binarismo centro/periferia.
Foi bacana perceber os desdobramentos do curso. Tínhamos conosco dois alunos franceses, Camille e Alexis, cumprindo o programa de intercâmbio. Foram generosos com participações que serviam de contrapontos. Como avaliação final, escolheriam um tema a partir de um dos tópicos estudados e produziriam um artigo que na ocasião própria seria apresentado em sala de aula para os colegas.
A turma em questão não me surpreende em nada, pois estamos juntos há dois anos em diferentes disciplinas. São excelentes. Aprendo mais do que ensino. Avaliá-los torna-se uma tarefa trivial, uma vez que conheço cada um e cada uma e sei exatamente do potencial deles. Veja uma pequena amostragem do nível dos temas desenvolvidos: A Ásia Central como a Heartland; Refugiados ao mar no século XXI; Globalização e a crise do Estado Nação; Austrália e sua ascensão internacional; Os curdos e a Turquia em perspectiva histórica; A parceria Trans-Pacífica e seus reflexos na China; Formação do Estado Islâmico.
Faltou mencionar um: Geopolítica dos espaços informais no Estado do Rio de Janeiro. O surpreendente foi constatar que este foi o tema escolhido pela aluna francesa. Sendo mais específico, Camille estabeleceu como seu foco as municipalidades de Rio de Janeiro e Duque de Caxias. Abordou a triste sina de jovens pobres, majoritariamente negros, recrutados pelo tráfico de drogas, exterminados pela polícia, abandonados pelo Estado e simplesmente ignorados pela sociedade que vive nos espaços formais.
No dia em que a Camille apresentou seu artigo à turma, ainda estávamos atordoados com os eventos terroristas na França. Sem esconder sua perplexidade e dor, a moça propôs uma chave interpretativa em que fez parecer que as periferias da França e do Brasil têm muitas semelhanças. Entre outras, a mais evidente: jovens vulneráveis a grupos extremistas porque estão completamente desconectados dos espaços formais.
Os meninos do tráfico e os meninos do Estado Islâmico vivem às margens da festiva globalização capitalista. Excluídos duplamente: produção e consumo.
Eis por que julgo o depoimento da Camille extremamente relevante para estranharmos um pouquinho que seja, com olhar de estrangeiro, aquilo que por conveniência insistimos em naturalizar. Segue o depoimento na íntegra.
O meu nome é Camille, tenho 22 anos, sou francesa, estou fazendo intercâmbio no Rio de Janeiro em Relações Internacionais na ESPM. O meu curso na França é relações internacionais e inovações sociais com um foco no desenvolvimento dos países do Sul na ESCD 3A de Lyon.
Quando cheguei à universidade segunda feira, depois dos atentados que tinham acontecido em Paris, todo o mundo ficou me perguntando se a minha família estava bem? Por que aconteceu isso? Quem são essas pessoas? A reação da França?
Felizmente a minha família está bem, não aconteceu nada com eles. Mas aqui no Brasil, longe de todos, foi difícil porque não tinha ninguém com quem eu podia compartilhar. Fiquei surpresa ver todos os canais brasileiros falarem principalmente dos atentados em Paris e todos meus amigos brasileiros botando foto de perfil no facebook suportando a França, defendendo a minha pequena pátria, terra dos direitos humanos e da revolução francesa, compartilhando os valores fortes de liberdade, igualdade e fraternidade.
Quantos jovens morrem nas periferias das grandes cidades brasileiras cada dia, quando há conflito entre o tráfico e a polícia? Não tenho resposta, porque essas informações não chegam a ser tão mediatizadas, não são compartilhadas e poucas pessoas falam disso.
Será que há uma banalização das tragédias que acontecem aqui cada dia? Parece que existe uma verticalização da importância da morte, em função do seu país, da onde você é, o que você faz...
Vendo o que está acontecendo de uma escada global, parece que quando houve algo no mundo Ocidental, se torna o centro do mundo, mas por que isso não acontece com a tragédia de Mariana? Por que não teve o “safety check” para as vítimas? Por que quase ninguém compartilhou, se interessou, tentou achar soluções, por que a solidariedade foi mais forte com a França do que com o seu próprio país?
Se comparamos os atentados em Paris aos conflitos ligados ao tráfico no Brasil, eu acredito que podemos relacionar os dois.
Primeiro, a França foi o alvo de ISIS principalmente por causa da sua geopolítica externa mais do que um motivo religioso. O Brasil é um país muito católico, mas não existe terrorismo aqui porque a política externa brasileira não bota o seu nariz nos conflitos do Oriente Médio. Quantos morrem quando há um ataque dos militares franceses na Síria? E vai ter mais ainda, sabendo que o meu país está entrando numa guerra, mandando o porta-avião Charles de Gaulle para Síria agora.
A geopolítica interna francesa também tem a ver com os atentados. Depois da descolonização e da guerra da Argélia nos anos 60, foram construídos um monte de prédios ao redor da capital para receber os migrantes. Chamamos esses complexos enormes e cinza de “banlieue” que podemos traduzir por “periferia”. Quando chegaram as pessoas de África do Norte na França, o governo botou eles lá, todos juntos. Na França, se você não for morador, quase ninguém vai na periferia, porque as pessoas acreditam que não tem nada pra fazer lá e pensam também que é perigoso.
Também, aqui não encontrei muitos cariocas falar da Zona Norte como lugar a visitar... Assim, tanto na França quanto no Brasil, construímos paredes entre os centros e as periferias, tratando o outro de jeito diferente, vendo o outro como o estranho, o que não tem o mesmo padrão de vida, o com quem não pode se misturar. E se torna uma guerra. Branco versus negro, católico versus muçulmano, favelado versus playboyzinho, francês versus árabe. E tão fácil categorizar o que não conhecemos, os lugares que não vemos.
Como você pode esperar uma pessoa se sentir parte de um país quando o próprio governo não presta atenção nela e no lugar onde mora? Como que você pode se identificar a uma nação se sua voz não é ouvida, se o seu rosto não é representado, se qualquer lugar onde você anda, sem abrir a boca, você é considerado ser “o favelado” ou o “imigrante muçulmano”.
Obviamente, onde o Estado não responde ao seu papel de protetor e não providencia perspectivas de futuro, emprego, educação, luz, água e saúde há emergência de atores de substituição, que sejam o terrorismo ou o tráfico. Esses dois atores, nem as UPP nem a polícia ou os militares vão combater. Porque eles têm legitimidade, substituem o papel do Estado que abraça, oferecem alternativas de futuro, em vez de trabalhar 9 horas por dia, 1h30 de ônibus de casa, para ganhar quase nada sem outra saída. Quem sou eu para explicar o que faz alguém virar traficante ou terrorista, ninguém, nunca entenderia, mas acredito que tem a ver com o jeito que você é tratado e o que o mundo tem a oferecer para você.
A maioria dos moradores das banlieues não são terroristas nem as pessoas da zona norte são traficantes, são iguais a você e eu. Porém, não podemos tratar todos como se fizessem parte disso. Eu acredito que todos nós somos atores geopolíticos, e protetores das frágeis noções de paz e de liberdade. Favorizando a construção de pontes em vez de muros, valorizando as periferias e fraternizando com cada um do mesmo jeito.
Camille Diere
Foto de capa: Agência Brasil