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O Ministério Público com as funções atuais é uma das boas conquistas da Constituição de 1988. Até aquele momento a ação do órgão era tão limitada que seus membros tinham um papel decorativo. Algo como o que o presidente ilegítimo Michel Temer reclamava ter quando não havia decidido se tornar o capitão do golpe.
Com a Constituição de 88, o órgão ganhou independência e seus membros proteção do Estado para atuar. Mesmo assim, até o governo Lula o MP ainda era tratado a pão, água e cabresto. FHC, por exemplo, ficou famoso por nomear engavetadores gerais da República. E por sufocar financeiramente o órgão.
Foi com Lula que o MP começou a se tornar mais forte e independente. Foi a partir de Lula que o primeiro da lista de votação passou a ser nomeado para Procurador Geral.
A nova história contada por alguns dos atuais procuradores, principalmente os mais novos, ignora tudo isso. Eles falam do MP como se ele fosse um ente que sempre teve superpoderes e cujo papel atual teria mais relação com a dedicação, a nobreza e a seriedade dos seus atuais membros.
E é isso que tem produzido ações ridículas como a nota que a Associação Nacional dos Procuradores da República produziu para defender um dos seus associados, Deltan Dallagnol, que foi questionado por ter palestras anunciadas por 30 a 40 mil reais num site de agenciamento.
A nota, entre outras aberrações, diz que: "atacar um Procurador da República, ademais, pelo lídimo exercício de suas funções e direitos é atacar a todos."
Ou seja, quem vier a questionar qualquer atitude de um sacrossanto procurador pode vir a ter sobre si a mão pesada do órgão e de toda a categoria? É isso que a nota sugere?
Ou é algo ainda mais na linha das gangues de rua: mexeu com um, mexeu com todos?
Não bastasse esta frase absurda, a nota da ANPR diz que procuradores podem dar palestras e cobrar por elas sem que isso signifique qualquer constrangimento ético, o que pode ser verdade, mas que deveria ser considerado algo no mínimo constrangedor para um procurador que denuncia um ex-presidente por considerar que suas palestras foram fonte de lavagem de dinheiro.
Mas há algo ainda mais estarrecedor, a nota da Associação diz que:
"A empresa MotiveAção nunca teve qualquer vínculo com o Procurador da República Deltan Dallagnol ou autorização para divulgar suas palestras. Provocada por ele, a empresa já reconheceu o equívoco de sua conduta e pediu publicamente desculpas ao Procurador da República."
Ou seja, assume completamente a versão de Dallagnol sem sequer fazer referência a um básico questionamento. Se a empresa MotiveAção não estava autorizada a vender ou divulgar suas palestras, como fazia na rede por 30 a 40 mil reais, por que o citado procurador não a processou?
A nota foi twittada por Dallagnol por uma quase dezena de vezes e aos pedacinhos durante o dia de ontem. O coordenador da Lava Jato a usou como habeas corpus para atacar aqueles que o criticam.
Aliás, em um outro trecho da nota há uma outra ponta de ameaça aos que ousam divergir da Operação Lava Jato.
"Há um mal disfarçado interesse dos que acusam Deltan Dallagnol, indevidamente, em transformar um ato lícito e questão corriqueira em forma de ataque e descrédito a seu trabalho como coordenador e à Força Tarefa Lava Jato. Isto é inadmissível e não será tolerado."
O que significa "é inadmissível e não será tolerado", pergunto. O que a Associação pretende fazer com aqueles que se opõe a forma como a Lava Jato atua e que questionam as palestras de Dallagnol? Vai processá-los? Vai orientar seus associados a persegui-los? Vai torná-los alvos de futuras operações? Como assim, o que significa "é inadmissível e não será tolerado"?
Alguns membros do MP perderam completamente a noção do seu papel e da importância do órgão como instrumento democrático.
E por isso a frase publicada hoje no Painel da Folha de S. Paulo, atribuída ao ex-ministro da Justiça, Eugênio Aragão, deveria estar estampada em todas as salas do órgão: "Lugar de procurador não é em púlpito de igreja, palco de show ou em congressos para se vangloriar de seus feitos."
Porque o que essa geração de meninos mimados e que não podem reger a nação, na excelente definição do músico Criolo, está fazendo não só com o MP, mas com o Brasil é algo que ainda vai ser contado.
O mexeu com um, mexeu com todos é a cereja de um bolo de arbitrariedades. Não se pode aceitar que uma categoria se ache acima do questionamento da sociedade e do direito à liberdade de expressão. E que emita notas buscando constranger quem quer que seja. Porque, amigos, quando uma associação de procuradores diz que não tolerará e que atacar um é atacar a todos, ela está exorbitando. Ela está sufocando o direitos. Ela está assumindo um papel de polícia seletiva. E isso remete a tempos outros, onde o MP não tinha liberdade para agir. Porque não havia liberdade.
A quem interessar possa, além do link lá de cima, publico a íntegra da nota na sequência:
A Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), diante de mais um ataque indevido e mal informado ao Procurador da República Deltan Dallagnol, coordenador da Força Tarefa Lava Jato no MPF, vem esclarecer que:
1. Não há qualquer ilegalidade na realização de palestras remuneradas por magistrados do Ministério Público e do Judiciário. A participação em evento como palestrante é atividade docente, permitida aos membros do MP e do Judiciário pela Constituição de 1988, como já reconhecido expressamente pelo Conselho Nacional de Justiça no art. 4°-A da Res. 73/2011. O Conselho Nacional do Ministério Público, na Res. 34/2007 que trata do exercício do magistério, não incluiu a realização das palestras entre as proibições a serem observadas pelos integrantes do Ministério Público.
2. A empresa MotiveAção nunca teve qualquer vínculo com o Procurador da República Deltan Dallagnol ou autorização para divulgar suas palestras. Provocada por ele, a empresa já reconheceu o equívoco de sua conduta e pediu publicamente desculpas ao Procurador da República.
3. A maioria das palestras proferidas por Deltan Dallagnol é gratuita. Quanto às remuneradas, embora seja claramente lícita a remuneração, o Procurador doa praticamente todos os valores recebidos para entidades filantrópicas e para custos e iniciativas que promovem a ética, a cidadania e o combate à corrupção.
4. Há um mal disfarçado interesse dos que acusam Deltan Dallagnol, indevidamente, em transformar um ato lícito e questão corriqueira em forma de ataque e descrédito a seu trabalho como coordenador e à Força Tarefa Lava Jato. Isto é inadmissível e não será tolerado.
5. Os membros do Ministério Público são regidos somente e tão somente pela Constituição Federal e pela lei. Tentativas espúrias de impor restrições aos membros do MPF sem qualquer amparo na legislação servem somente aos interesses de quem quer diminuir o órgão e impedir que siga desempenhando seu papel no combate à corrupção.
6. É do interesse público e da própria Justiça estimular que os membros do Ministério Público e Juízes participem de congressos técnicos, palestras e eventos científicos e de conscientização da sociedade contribuindo com seus conhecimentos e experiências para a construção do saber jurídico nacional e formação da cidadania, incluindo matérias como combate à corrupção, técnicas efetivas de investigação e respeito às garantias processuais. Impedir linearmente e em tese que membros do Ministério Público e Juízes participem de eventos e congressos seria uma forma de tolher a construção equilibrada do saber jurídico nacional e do exercício ético da cidadania, o que deve levar em conta a experiência não só da advocacia e de outras áreas do conhecimento, mas também de carreiras jurídicas como a dos magistrados do Ministério Público e do Poder Judiciário.
7. Atacar um Procurador da República, ademais, pelo lídimo exercício de suas funções e direitos é atacar a todos. Deltan Dallagnol tem o apoio dos Procuradores da República de todo o Brasil, congregados na ANPR.
José Robalinho Cavalcanti
Procurador Regional da República
Presidente da ANPR
Foto: Luis Macedo / Câmara dos Deputados