Da antropofagia à Academia Brasileira de Letras
Quando morre um acadêmico, antes que o defunto esfrie parece já ter alguém bradando: “Quero a vaga dele”. Para se tornar imortal, é preciso esperar um imortal se contradizer e morrer
Um dia, há muito tempo, um amigo e eu conversávamos sobre hábitos alimentares e não sei se foi ele ou se fui eu quem levantou um assunto: por que não consumir carne humana?
Muitos povos indígenas de várias partes do mundo consumiam (alguns ainda devem consumir). No Brasil, para muitos povos isso extrapolava a mera nutrição, tinha mais um sentido ritual: acreditavam que comendo a carne de um guerreiro, adquiria-se as qualidades dele. Por isso, covardes não eram banqueteados. Sorte do alemão Hans Staden, por exemplo, que aprisionado por tupinambás choramingava quando via a possibilidade de ser banqueteado e era poupado, porque acreditavam que se o comessem não ganhariam nenhuma qualidade dele, mas a covardia, o medo...
Mas existem divergências, pelo menos em parte. Quando alguém era aprisionado e levado para uma aldeia, mulheres indígenas o provocavam: “Olha a nossa comida chegando”. E li em algum lugar que Cunhambebe levava pedaços de carne de inimigos para saborear nas horas vagas. E João Ubaldo Ribeiro, se não me engano, também deu seu toque nisso, em seu excelente romance Viva o Povo Brasileiro, dizendo que um povo indígena que não me lembro qual afirmava que preferia carnes de holandeses e outros loiros, de carnes mais macias do que dos morenos portugueses e, mais ainda, do que dos negros africanos.
Bom... Seja como for, brinquei: se a carne humana fosse um alimento “normal”, por que desperdiçar os parentes mortos? Aí, brinquei: “O cara chega pros seus irmãos e informa: ‘Mamãe morreu’. Um dos irmãos grita logo: ‘A perna direita é minha’”. Que horror!, pensei eu mesmo. Como pude fazer uma “piada” mórbida como essa?
E morbidamente me lembrei de uma coisa que não tem nada a ver com isso: a Academia Brasileira de Letras. Quando morre um acadêmico, antes que o defunto esfrie parece já ter alguém bradando: “Quero a vaga dele”. E uns dias depois começa a escolha do novo acadêmico.
Apparicio Torelly, que mais tarde adotaria o pseudônimo Barão de Itararé, quando estudante de medicina (curso que não concluiu), publicou em 1916 um livro de poemas chamado Pontas de Cigarro. Com esse livro, gozava na Academia Brasileira de Letras, onde se reuniam os “imortais”, dizendo que já era acadêmico (de medicina) e que não precisava entrar na Academia de Letras para virar imortal, coisa que ele já era, pois “não tenho onde cair morto”.
A Academia Brasileira de Letras (ABL) continuou sendo em sua vida toda um alvo especial das suas estocadas. Na década de 1940, ele criticava o fato da ABL ter quarenta cadeiras, ou seja, lugar para apenas quarenta “imortais”. Para um outro escritor tornar-se imortal, era preciso esperar um imortal se contradizer e morrer. E nessa brincadeira lembrava que o número de cadeiras da ABL coincidia com o número da Câmara dos Quarenta, organização que dirigia a Ação Integralista Brasileira (entidade fascista liderada por Plínio Salgado). Por que quarenta?, perguntava ele. Então, defendia que a ABL devia ser igual ônibus: quarenta lugares sentados e sessenta em pé. Quando um imortal sentado batia as botas, outro ocupava sua cadeira.
Quem merece?
Em 2021, algumas pessoas se espantaram com a eleição do cantor e compositor Gilberto Gil e da atriz Fernanda Montenegro para duas das três vagas abertas. Uma terceira vaga tinha como concorrente o escritor indígena Daniel Munduruku, que não ganhou. Publiquei uma crônica sobre isso aqui mesmo, na revista Fórum.
Discordei dos críticos sobre o merecimento dos eleitos. Gilberto Gil e Fernanda Montenegro não se destacaram como escritores, mas pelo menos eram da área da cultura. Não que eu valorizasse tanto o fato de serem da Academia, ao contrário, achava até estranho, pois Gilberto Gil chegou a gozar a ABL, no tempo do Tropicalismo, posando vestido com o fardão dos acadêmicos (que coisa mais medieval) na capa de um disco.
Quem merece, quem não merece ser membro da ABL? Teve gente que nem era da área de cultura que foi eleito para a dita-cuja. Levantei os nomes de alguns membros que, sinceramente, não incluiria numa lista de literatos merecedores de uma instituição que se levasse a sério, mas em muitos momentos a instituição se mostrou bem puxa-saco do poder. Elegeu, por exemplo, Getúlio Vargas, o general Aurélio de Lyra Tavares, e Marco Maciel, ex-governador de Pernambuco e vice-presidente de FHC; Roberto Marinho, Assis Chateaubriand e até o grande cirurgião Ivo Pitanguy. Sim! Grande cirurgião. Não grande escritor. E teve ou tem casos de alguns escritores a quem torço o nariz, como José Sarney, o poeta catarinense Lauro Müller e o atual presidente da casa, Merval Pereira.
Alguns “notáveis” da ABL
O primeiro não escritor a entrar na ABL foi o Barão do Rio Branco, em 1898, indicado por Joaquim Nabuco. O Barão teve grande importância histórica, foi responsável por negociações internacionais que renderam, antes e depois daquele ano, bons pedaços de terra para o Brasil, como aconteceu no caso do Acre e parte do Amapá. Mas Machado de Assis, fundador e então presidente, argumentou que o Barão não publicou nenhum livro. Joaquim Nabuco rebateu: “Rio Branco está escrevendo o mapa do Brasil”.
No rastro dele, outros “notáveis” foram eleitos sem terem publicado livros. Um deles foi o médico sanitarista Oswaldo Cruz. Outro foi Santos Dumont, que acabou não tomando posse: foi eleito em 1931 e se suicidou em julho de 1932. Juscelino foi candidato em 1975, mas perdeu por um voto (20 a 19) para o escritor goiano Bernardo Élis (escritor de verdade).
“Por outro lado”, conforme diz o velho chavão, houve grandes nomes de escritores famosos que disputaram e não ganharam uma vaga na ABL, como Mario Quintana, que em 1980 perdeu por 31 a 6 para Eduardo Portela, ex-ministro da Educação do governo Figueiredo.
Houve quem fosse até cortejado, mas não quis, como Érico Veríssimo, que não gostava de formalidades e dizia que nunca vestiria um fardão. Outros grandes nomes da literatura brasileira que ficaram de fora, acho que quase todos nem se candidataram foram Lima Barreto, Monteiro Lobato, Carlos Drummond de Andrade, Gilberto freire, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Vinícius de Moraes e Paulo Leminsky.
Tem muitos escritores que são ou foram membros da ABL que gosto muito, mas pensando nas duas listas acima, de membros e não membros, prefiro os que ficaram de fora.
Por que entrei nesse assunto?
Com a morte de Cacá Diegues, que além de cineasta publicou vários livros, já começaram a aparecer candidatos para a vaga dele na ABL. Um amigo me mandou uma mensagem em tom de espanto, por ver entre o(s) a(s) candidatos a jornalista Miriam Leitão. Mas ele mesmo acha que a ABL, presidida pelo também jornalista Merval Pereira, merece a candidata, que acho não ter muitas chances porque há concorrentes mais fortes, como Caetano Veloso. Ah... Se Gilberto Gil entrou, por que não o Caetano, outro tropicalista?
Enfim, não tenho nada com isso: acho muito esquisito esse negócio de Academias de Letras, embora tenha respeito por algumas e alguns membros. Lembro-me que uma vez estava em Palmas, capital do Tocantins, fui convidado para ir à Academia de Letras e gostei de ver o trabalho que faziam no estado. Mas repito: acho esquisito, ainda mais com rituais e fardões que remetem a comédias de pastelão.
E para terminar, enquanto escrevia isto me veio à memória o reconhecimento internacional que está tendo Machado de Assis. A escritora norte-americana Courtney Henning Novak iniciou um projeto chamado “Ler ao redor do mundo”, dedicou-se a ler e criticar um livro de cada país e caiu em suas mãos Memórias póstumas de Brás Cubas, representando o Brasil, e ficou espantada: “É o melhor livro já escrito”.
Enquanto isso, no Brasil, Machado de Assis é um tanto maltratado por muita gente, acham que ele é chato. Acho que talvez por ser imposto como leitura obrigatória nas escolas, sua leitura, acredito, deveria ser incentivada, mas não obrigatória. Eu, que nunca fui obrigado a ler nada dele, aos 16 anos dia peguei O Alienista para ler e fiquei pasmo de espanto. Maravilha! Fiquei tão admirado que logo em seguida li Quincas Borba, também dele e também ótimo, e fui lendo outros livros de sua autoria, nada chatos, com um humor de dar inveja.
Sabem quem falou mais ou menos a mesma coisa? Em 2011, Woody Allen recebeu um exemplar de Memórias póstumas de Brás Cubas, em inglês, claro, mandado por um brasileiro que era seu fã. Disse que se fosse um livro grosso jogaria no lixo. Mas com era fino, leu e ficou surpreso: “Divertido e encantado”.