Anos 1980. Minha mulher, eu e um casal de amigos estávamos em Buenos Aires e iríamos para Montevidéu. Decidimos fazer a travessia não diretamente para a capital uruguaia, mas aproveitar para ir a Colônia do Sacramento, cidade histórica, a primeira a ser fundada no atual Uruguai, por portugueses, antes dos espanhóis tomarem posse da então chamada “Banda Oriental”.
O rio da Prata tem ali uma largura de cerca de 70 quilômetros, e a travessia poderia ser feita numa balsa tradicional, com quase quatro horas de viagem, ou numa embarcação mais rápida, em que a travessia duraria pouco mais de uma hora. O preço da passagem, logicamente, era bem mais caro, para viajantes mais ricos. Mas fomos nele.
Apesar de relativamente bem vestidos, podíamos ser considerados um tanto abaixo do padrão de pessoas que estavam no barco, quase só turistas. Éramos os “proletas” entre pessoas com ares burgueses.
Chamou a minha atenção uma família falando com sotaque nordestino. Era um casal de idosos, um de meia idade e duas crianças: uma menina e um menino. Normalmente, vendo uma família de nordestinos, eu puxaria conversa com ela, mas dava pra ver que aquela ali não era do tipo de nordestinos com quem eu estava habituado a me relacionar. Tinham cara de poucos amigos, nariz empinado, e vestiam-se com roupas de grife. Imaginei que o velho devia ser grande empresário ou político de direita, um tipo de “coronel urbano”, e o homem de meia idade devia ser executivo ou, também, político.
Uns cinco minutos depois do barco deixar o porto, abriu-se uma porta e entrou no compartimento uma “barco-moça” (posso chamar assim?) devidamente uniformizada, empurrando um carrinho cheio de bebidas.
É que o barco funcionava também como uma espécie de free shop, em que se podia comprar produtos importados a preços mais baratos.
— Uísque, champanhe... — a “barco-moça” começou a falar e foi interrompida, chamada pelos dois homens, o velho e seu filho ou genro.
Compraram tudo! Pagaram — quer dizer, o mais velho pagou — com um monte de notas de dólares e o carrinho voltou vazio, com a “barco-moça” até meio estonteada, com ar de surpresa e espanto, como se nada como aquilo já tivesse acontecido antes.
Minutos depois ela voltou com o carrinho com outro tipo de carregamento:
— Perfumes... — foi logo interrompida pelas duas mulheres, que a chamaram.
De novo, compraram tudo. Todos os produtos que ela vendia! Os maridos pagaram com mais dólares — quer dizer, o mais velho pagou — e a “barco-moça” já não tinha cara de surpresa e espanto, parecia mais cara de pânico. Entrou para o seu compartimento com o carrinho vazio e minutos depois voltou com nova carga:
— Bonecas, brinquedos elétricos...
Interrompida de novo, desta vez pelas crianças, que também compraram tudo. O velho pagou mais uma vez. Fiquei olhando a cara da “barco-moça”, que já mostrava pavor. E cochichei com a Célia:
— Olha lá onde vai o dinheiro de obras contra as secas.
Claro que podia não ser isso. Mas podia ser também, pois isso de dinheiro destinado a obras contra as secas chegar aos necessitados era coisa rara. Parava tudo nas mãos de políticos e coronéis.
Bom... Eu me lembrei disso num outro tipo de viagem: um trem metropolitano de São Paulo. Da Estação da Luz até Jundiaí são quase vinte estações, e uma boa distância, são quase duas horas de viagem. Mas o preço da passagem, como no metrô paulistano, nos trens metropolitanos e nos ônibus urbanos de São Paulo, é, em junho de 2017, R$ 3,80. E nós velhos — vejam só que privilégio (a gente tem que ter algum, não é? Velhice é uma porcaria...) não pagamos nada.
Nele, os passageiros tinham cara de brasileiros comuns, muitos nordestinos inclusive, trabalhadores e seus familiares. Pouquíssimos tinham ares “burgueses”. Talvez eu mesmo poderia ser visto como burguês naquele meio, embora seja um velho aposentado que se veste com roupa de trabalhador velho aposentado.
Brancos, negros, poucos orientais, uma menina sarará, velhos, jovens, crianças e camelôs convivendo harmoniosamente, numa viagem para muitos deles cotidiana, e dura, o trem já saiu lotado da estação inicial, com muita gente de pé. Eu usufruí mais um direito (que consolo!) dos velhos: bancos destinados a nós e outros tipos de estropiados, além de grávidas e mulheres carregando bebês.
Foi só o trem sair da estação que um monte de homens abriram suas mochilas e foram retirando os mais variados objetos e anunciando preços baratíssimos: fone de ouvido e carregador de celulares, 5 reais; pacotinhos de amendoim doce ou salgado, 1 real; água mineral ou refrigerante, 2 reais; chocolates que custam 3 reais no supermercado aqui saem por 1 real ou menos (“chocolate vencido” certa vez me falou alguém, contestado por outro: “carga roubada”); agulheiro com 24 agulhas, 2 reais; pacotes com 3 pares de meia soquete “última moda, de puro algodão”, dez reais. Mas o vendedor de meias fingiu que alguém a uns poucos metros dele lhe fazia sinais e falou alto:
— Como? Tem fiscais e guardas fardados na Estação Barra Funda? Ô, gente, vão querer me tomar tudo. Então vou liquidar mais barato ainda. Agora são 6 pares de meia por 2 reais. Menos de 2 reais cada par. Tem meias masculinas e femininas, podem escolher...
Vendeu num monte. E claro que na Estação Barra Funda, a segunda depois da Luz, não entrou nenhum fiscal ou guarda fardado. Os vendedores é que saíram rapidamente para entrar no vagão seguinte. Quase todas as vezes que viajei nesse trem vi essa artimanha de camelôs.
Lá, entraram outros vendedores, inclusive um vendendo por um real o pacote de agulhas que o anterior vendia por dois.
Nessa viagem, que como já disse não foi a minha primeira — de vez em quando vou a Campo Limpo Paulista, duas estações antes de chegar em Jundiaí —, fiquei me lembrando da travessia do rio da Prata. Que diferença! Entre gente como a gente, fiquei me lembrando da breguice daqueles que ostentavam riqueza num barco com venda de bebidas caras e outros produtos igualmente caros, mas que — principalmente para quem tinha tanto dinheiro para ostentar — podiam ser comprados aqui mesmo, no Brasil.
Gostaria de ver a tal família que comprava todas as cargas do carrinho free shop encarar uma viagem dessas de vez em quando. Certamente nunca fez e nem quer fazer.
E os camelôs vendendo de tudo, um free shop dos pobres, em vez de uísques escoceses, champanhe e perfumes franceses, brinquedos sofisticados... certamente achariam um horror. Lembro-me de uma charge do Quino em que uma mulher toda cheia de joias convida outras para um evento destinado a arrecadar dinheiro para comprar para os pobres “macarrão, bolachas e todas aquelas porcarias que eles comem”.
Para mim que só uso o trem para passeios ocasionais, ao contrário de trabalhadores que encaram essa barra diariamente, a viagem de trem é mais divertida, apesar da paisagem não ser. A companhia é que é. O povo. Seria bom que muita gente que fala em nome dele, o povo, tivesse que fazer com alguma regularidade o que os pobres fazem, inclusive isso de pegar trens suburbanos, de preferência em horário de pico.
Lembrete: a venda de produtos dentro dos trens e do metrô é proibida. Mas olha, acho que aqueles camelôs, além de venderem um monte de coisas que os trabalhadores usam, a preços mais baratos, ajudam a distrair a gente durante a viagem. São úteis. Acho que os guardas fazem vistas grossas por isso e por verem naquela atividade um jeito de superar o desemprego. Carga roubada? Não sei. Aí é outra história. Mas ali dentro me parecem trabalhadores honestos ganhando a graninha que necessitam. Pouco dinheiro. A grana de obras contra as secas — ou, mais comum por aqui, de enchentes que invadem casas de pobres — não chega a eles, não é?