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Comemoramos, com muita festa, música e alegria, em 31 de outubro, o “Dia do Saci e seus amigos”. Entre os amigos dele, há seres mitológicos de origem indígena como a Iara, o Curupira, o Boitatá e o Caipora.
Por Mouzar Benedito*
Todos os anos, desde 2003, nesta época lembro aos leitores que vem chegando o dia de fazer a Festa do Saci e seus amigos.
Mas vou falar agora um pouco de uma comemoração da mesma data, que não é nossa, mas que tem muita importância para os povos que a criaram: os celtas, que habitavam a Grã-Bretanha e a Irlanda.
Muito antes da Era Cristã, eles comemoravam nesse dia, o atual 31 de outubro, o “fim da temporada de sol”. Eles consideravam essa data o início (não muito exato) do inverno no hemisfério Norte. Nesse dia, segundo eles, abria-se a porta entre o mundo dos vivos e dos mortos, e mortos vinham buscar gente viva. Temerosos, os vivos usavam máscaras para disfarçar e não serem reconhecidos pelos mortos que os procuravam, e acendiam fogueiras para espantá-los.
Aí, a região foi dominada por Roma, e com os romanos chegou lá a deusa Pomona, responsável pela maturação dos frutos, pela agricultura e pelos jardins. E as duas crenças se fundiram numa só comemoração. E depois ainda, o catolicismo, que comemora em 1º de novembro o dia de todos os santos, “all hallows day” em inglês. O dia 31 de outubro, era o “hallows eve”, numa tradução meio forçada, véspera do dia dos santos. E hallows eve virou halloween.
Para completar, muitos descendentes dos celtas migraram para os Estados Unidos, e lá o raloín virou outra coisa, uma festa comercial, não tem nada a ver com as crenças que deram origem a ela. É a festa que tem a segunda maior circulação de grana nos Estados Unidos, só superada pelo Natal, que eles também transformaram em comércio, com a figura do aqui chamado de Papai Noel, que inicialmente tinha roupa azul, mas foi apropriado pela coca-cola, que o transformou em seu “velho-propaganda” e o difundiu pelo mundo. A cor oficial da propaganda da coca-cola era vermelha, daí a mudança na cor da roupa do velhinho.
Isso tudo, sem contar uma coisa: a demonização das bruxas, que ocorre na festa deles. Contestadora dos poderes da Igreja, muitas bruxas foram queimadas na Idade Média, e sobrou a imagem montada sobre elas como mulheres más e feias. Na verdade, contestadoras, às vezes velhas (quanto mais velhas, mais sábias).
Mas por que lembrar tudo isso?
É simplesmente para afirmar que não temos nada a ver com essa festa. Para começar, não acreditamos que bruxa é sinônimo de maldade, como não são os “feiticeiros” ou pajés, na verdade detentores de um saber muito importante para seus povos.
Aliás, é bom lembrar aqui das bruxas de Santa Catarina, que vivem em volta da Lagoa da Conceição. A história delas começa nos tempos em que a Inquisição queimava bruxas na Europa. Na época, Portugal tinha colônias que queria povoar com europeus e preferiu mandar as mulheres acusadas de bruxaria para os Açores. Depois, na época em que colonizavam Santa Catarina, mandaram muita gente dos Açores para cá. Entre esses colonos, existiam muitas dessas mulheres sábias, que continuaram suas “bruxarias” aqui.
E elas se multiplicaram. São muitas, incluindo jovens bonitas. Elas são parteiras, benzedeiras, curandeiras, entendem muito de ervas medicinais. E se dizem bruxas mesmo. Só que não gostam nem um pouquinho do raloín dos gringos. Há alguns anos entraram em contato conosco, conversamos e elas comemoram o 31 de outubro lá como “Dia das Bruxas”, mas não do raloín: preferiram se associar ao Saci. Até hoje associam Dia das Bruxas e Dia do Saci.
Outra coisa é que não acreditamos que haja ingenuidade em nos enfiar goela abaixo a festa com características imperialistas. Faz parte da geopolítica da gringolândia (como fez dos dominadores lusitanos e espanhóis) impor sua cultura como superior à dos povos que querem dominar. Eles sabem (como os portugueses e espanhóis sabiam antes) que uma boa forma de dominar um povo é destruir sua cultura, torná-lo admirador da cultura “superior” deles. Uma pessoa que cultua, festeja e aceita a cultura deles como superior, é uma pessoa predisposta a ser dominada.
Isso tudo estava presente na cabeça dos fundadores da Sosaci – Sociedade dos Observadores de Saci, quando criamos esta ONC (Organização Não Capitalista) em 2003. Escolhemos o Saci, como já repetimos muitas vezes, por ele ser nosso mito mais travesso, conhecido, reconhecido em todos os estados, além de ser uma síntese do nosso povo: era índio na origem, ganhou a cor do negro e o capuz mágico dos europeus da Península Ibérica. E é mais brasileiro ainda porque, sendo de uma cor vítima de preconceitos, perneta e pobre que nem roupa tem, é alegre, brincalhão. E mais ainda: é um defensor da floresta, seu habitat.
Comemoramos, com muita festa, música e alegria, em 31 de outubro, o “Dia do Saci e seus amigos”. Entre os amigos dele, há seres mitológicos de origem indígena como a Iara, o Curupira, o Boitatá e o Caipora; alguns mitos trazidos de fora, mas em que acreditavam povos que vieram para cá (embora como colonizadores, na maioria), como a Mula sem Cabeça, o Lobisomem e a Cuca e, como já citei, as bruxas da ilha de Santa Catarina, que não são mitos, são verdadeiras, e do bem.
Em muitos locais, o Dia do Saci e seus amigos é comemorado oficial ou informalmente. A data já foi oficializada no estado de São Paulo e muitas cidades brasileiras, mas a maioria das festas é espontânea e a cada ano cresce o número de pessoas e lugares que festejam conosco. E esperamos que cada leitor pense nisso e festeje também. Não é preciso politizar durante a festa, mas que ela é um ato de afirmação cultural, isso é.
Bom... O Dia do Saci é 31 de outubro, mas muita gente de fora gosta de participar da festa de São Luiz do Paraitinga. Então, nós a fazemos num fim de semana, de sexta-feira à noite até domingo. Este ano, de 27 a 29 de outubro. A programação está no cartaz que ilustra este texto.
* Mouzar Benedito, mineiro de Nova Resende, é geógrafo, jornalista e também sócio fundador da Sociedade dos Observadores de Saci (Sosaci).
Foto: Divulgação