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A segunda-feira desta semana foi um dia de perdas para a literatura mundial. O alemão Günter Grass foi uma dessas perdas. Ele era jovem quando o seu país se tornou nazista, e foi um dos que se iludiram com o regime de Hitler.
Chegou a se alistar como voluntário nas forças nazistas. Quando revelou isso, há poucos anos, sofreu muitas críticas, foi quase massacrado. Mas depois desse erro da juventude, mudou tornou-se um grande humanista, crítico feroz do nazismo. Seu livro mais famoso é O Tambor, um romance sobre um menino que se recusava a crescer, durante o regime hitlerista.
A outra perda tem mais a ver com a gente daqui. O uruguaio Eduardo Galeano foi um militante incansável da literatura e do jornalismo, um dos que sonhavam com a chamada “Pátria Grande”, a ser formada por toda a América Latina, inclusive o Brasil, que por muitotempo viiveu de costas para o continente, identificando-se mais com a Europa e depois com os Estados Unidos.
Há mais de dez anos recebi pela internet um texto de Galeano, sobre como era ser jornalista no Marcha, de Montevidéu. Era um jornal de esquerda, que foi fechado depois pela ditadura. O jornal era feito com garra e alegria. Um imenso prazer. O fechamento de cada edição terminava de madrugada, e naquele tempo não existiam computadores. Usava-se laudas de papel, e muitas delas, com erros ou rascunhos, eram jogadas fora. Essas laudas viravam uma bola de papel, quando acabava o fechamento da edição, e os jornalistas se divertiam jogando futebol com ela, quando terminavam o trabalho.
E havia muita confraternização, muita convivência entre repórteres, editores, ilustradores, revisores, fotógrafos, ilustradores...
Aqui também tinha muito disso. Não é à toa que ao lado de cada redação de jornal havia bares e restaurantes que ficavam abertos a noite toda. Era o local de confraternização e transferência de conhecimentos. Nesses encontros de fim de noite, os novatos aprendiam com os veteranos, e os veteranos também aprendiam com os novatos, mais entendedores das novidades.
Voltando ao texto de Galeano, eu o mandei para um monte de jornalistas novos daqui,e recebi respostas com estranhezas, tristezas e até de indignação: nunca trabalharam numa redação assim. Sinal dos tempos, de uma profissão que foi perdendo a graça.
Já na época não havia mais o velho hábito de sair todo mundo para jantar e conversar ou simplesmente beber e conversar, depois de fechada a edição dos jornais. Mesmo nos jornais que não eram como o Marcha, de esquerda, houve um tempo em que havia um ambiente de camaradagem que não há mais.
Nos últimos anos, nas raras vezes em que entrei em redações de grandes jornais ou da televisão, me dava uma vontade enorme de sair correndo, porque era um silêncio total, ninguém falando com ninguém. Se é preciso falar com alguém, manda-se mensagem pelo computador. Zero conversa. Zero risadas. Zero troca de experiências e conhecimentos. O colega ao lado não é um colega, é um concorrente, nestes tempos de individualismo.
Terminado o dia de trabalho, cada um vai pra casa. Nada de bate-papo no boteco, até de madrugada.Falei pra muitos desses colegas novos que eu vivi em redações de jornais de esquerda com o mesmo espírito da turma do Galeano no Marcha.
Uma dessas redações era do jornal Versus, liderado por Marcos Faerman, por sinal inspirado numa revista liderada por Galeano, a Crisis, editada em Buenos Aires até ser fechada pela ditadura de lá, em 1976.
O Versus foi, para mim e para muita gente, o jornal mais bonito já publicado pela esquerda no Brasil. E feito com gosto. Fazer o jornal era uma forma de militância por uma causa, e era uma militância alegre, em que cada colega era um companheiro. O clima ali erade festa permanente, mesmo sabendo que éramos visados pela ditadura.
Nosso jornal tinha também o sonho de uma América Latina unida. Galeano era um dos nossos colaboradores. Outros eram seu conterrâneo Mario Benedetti, o chileno Ariel Dorfmann e o colombiano Gabriel García Márquez.
Gostávamos tanto do jornal que íamos para a gráfica esperar para ver o resultado do nosso trabalho. Ninguém queria esperar o dia seguinte.Uma época, imprimíamos o Versus na gráfica do jornal São Paulo Shimbum, na Baixada do Glicério, área decadente da região central de São Paulo. Ele cobrava menos pela impressão, mas era mais barato ainda de madrugada. E todos íamos para lá.
Ficava aquele bando de jornalistas ansiosos esperando o primeiro jornal sair na esteira da gráfica.Cada um pegava um jornal, via, lia, cheirava, parecia uma vaca lambendo a cria. Era um tempo em que, apesar da ditadura, conseguíamos publicar jornais combativos, bons de se fazer e bons de se ler.
A morte do grande Galeano com seus ideais e sua militância me fez lembrar dessas coisas. Nas condições atuais, está difícil aparecerem novos Galeanos, novos Marchas, novas Crisis,e novos Versus. Saudosismo? Pode ser, não me importo com isso.