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“Estarrecido” é uma palavra que me sugere pavor total, horror dos horrores, não sei porquê. Há algum tempo comecei a desconfiar que não é tanto assim, porque, pelas cartas de leitores nos jornais, e também por artigos publicados neles e em revistas, tem gente “estarrecida” a toda hora e por qualquer motivo nem tão estarrecedor assim.
O preço do tomate, o ônibus que demora demais para passar, um problema no metrô, o trânsito engarrafado, uma charge do jornal, uma crônica de um colunista... Por isso e muito mais ou muito menos, as pessoas se declaram “estarrecidas” hoje em dia. Com a corrupção, então, nem se fala.
Bem, nesse ponto, concordo com os “estarrecidos” em geral, menos com o fato de parte deles ter um estarrecimento seletivo, conforme o partido político do corrupto.
Algo interessante aconteceu no metrô que peguei no bairro do Paraíso em direção à Vila Madalena, em São Paulo, no começo de dezembro. Ocupei um banco para velhos, desfrutando uma das poucas vantagens dessa coisa de DNA (data de nascimento antiga).
Na estação Consolação, desceu quase todo mundo e entraram algumas pessoas. Entre estas uma moça e um rapaz que ocuparam um banco ao lado do meu. Estava lendo um livro, mas não pude deixar de ouvir a conversa deles. Pelo jeito, eram irmãos. E falavam da maldita corrupção. Daí surgiu a palavra também maldita, “estarrecido”. O rapaz disse que até um tio deles, de não sei onde, estava “estarrecido” com a corrupção e achava que cadeia era pouco para os corruptos. Queria pena de morte, depois de um julgamento sumário. Aí a moça, com voz firme, falou: “Se fossem condenar à morte todos os corruptos, um dos condenados seria o próprio tio. Bandido! Pensa que a gente não sabe que ficou rico fazendo contrabando e traficando drogas”.
Moça coerente, pensei. Que a pena seja a mesma para todos os bandidões. Ela pensa bem diferente de um bando de ricos que fizeram fortuna roubando, traficando e matando, ou de herdeiros de gente que fez isso.
Um dia, há uns três anos, num bar, fui apresentado a um sujeito quase da minha idade que estava indignado porque os sem-terra ameaçavam ocupar a fazenda do pai dele, no Pontal do Paranapanema.
“Naquela região, quase tudo quanto é fazenda foi grilada... Teve caso de gente que arrumou escritura em cartórios de corruptos, matou os índios que estavam lá dentro e agora é fazendeiro que se diz honesto... Não estou dizendo que este seja o caso da fazenda do seu pai”, falei. A reação dele me pareceu que era o caso, sim. Ficou irritado, dizendo que “se for pensar nos crimes do passado” não se salva ninguém. O que foi feito antes tem que ser esquecido.
São comuns casos assim. Matança de índios e posseiros para se apossar de terras deles constituíram o método para tornar certas famílias ricas e “respeitáveis”. Gente que depois se sente no direito de ficar “estarrecida” com a corrupção alheia.
Herdeiros de latifúndios ou fortunas urbanas originadas de maneiras estranhas não incluem entre as personalidades que lhe causam estarrecimento os próprios pais.
Não coloco no mesmo saco grandes ladrões e gente que comete uns pequenos ilícitos, mas fico muito irritado quando alguns desses se fingem de puros, impolutos, imaculados, e fazem pose de “estarrecidos”.
Por exemplo: numa lan house que frequento, enquanto mandava mensagens pela internet, incluindo um arquivo que estava num pendrive, ouvi um sujeito que ocupava o computador ao lado, conversando pelo skipe, que se dizia estarrecido com a impunidade dos corruptos.
Saí, andei uns dez minutos e notei que havia esquecido o pendrive conectado no computador. Voltei lá e o pendrive já não estava mais nele...
Uma moça me contou que notou que logo que saí o “estarrecido” mexeu no computador que eu havia ocupado e saiu rapidamente. E concluímos: roubou meu pendrive.
O estarrecido contra a impunidade dos corruptos, rapaz com roupas de classe média e usando um vocabulário de gente que poderia se autoclassificar como bem formada, não achou que é corrupção roubar um pendrive, que custou pouco mas é instrumento de trabalho alheio.
Aliás, já soube de gente que vai a festas em casa de amigos e sai dela com discos, livros, garrafas de bebidas e mesmo objetos de valor... Gente que rouba quem o recebe em casa e acha “normal”, não se “estarrece” com isso.
Fiquei me lembrando de um monte de gente que nunca se “estarreceu” com suas próprias ações corruptas, mas certamente estariam “estarrecidas” agora com as corrupções alheias. E voei no tempo. Primeiro para quando era criança e trabalhava como engraxate na barbearia do meu pai. Era no tempo em que se construía Brasília. Diziam que havia muita corrupção na execução daquela obra considerada faraônica. E havia mesmo, inclusive por parte de gente que se vangloriava disso.
Minha terra é perto de Itaú de Minas, onde se produz cimento. Já era uma grande produtora na época, e caminhoneiros das cidades vizinhas, inclusive de Nova Resende, foram contratados para levar cimento para as obras de Brasília. Ouvi de alguns deles, na barbearia, muita contação de vantagem sobre a grana que estavam ganhando com mutretas. É um coisa de um passado distante, mas que me grudou na memória.
Um deles foi bem didático. Contou que para cada carga de cimento que transportava para Brasília levava duas notas fiscais. Na entrada da área havia uma espécie de portal, onde funcionários da Novacap, empresa responsável pelas obras, conferia a carga de cimento, carimbava a nota fiscal, ficava com uma via e devolvia a outra via ao caminhoneiro, que levava de volta para a empresa. Nesse portal, recebia instruções sobre o local que devia descarregar o cimento. Mas, em vez de descarregar, ele dava uma volta por uma estradinha secundária e no dia seguinte passava com a mesma carga de cimento pelo portal, num horário diferente do dia anterior, para não coincidir de dar de cara com o mesmo funcionário que conferia, carimbava a nota etc. etc., e aí sim, ele descarregava e voltava para Itaú. A empresa recebia duas vezes pela mesma carga de cimento (não sei se era uma “política da empresa” ou mutreta de algum dirigente) e ele recebia uma boa comissão.
Aí, minha lembrança andou um pouco pra frente, para os meus 16 anos, quando já morava em São Paulo. Trabalhava num supermercado e lá havia um sujeito muito legal, simpático, amigo do meu irmão mais velho, que se tornou meu amigo também. Digamos que ele se chamava Zé.
Alguns meses depois que eu trabalhava lá, ele pediu demissão e foi trabalhar numa loja de departamentos, a Sears. Essa loja tinha também um departamento para manutenção dos eletrodomésticos que vendia. Passado o prazo de garantia, pagava-se pelos consertos. O Zé tinha como função fazer orçamentos para os clientes atendidos fora do prazo de garantia.
O cliente telefonava ou ia à Sears pedir orçamento, o Zé ia até a casa dele, via o problema da geladeira, enceradeira, máquina de lavar ou qualquer outra coisa, e fazia orçamento. Se o cliente concordasse com o valor, um técnico ia lá e consertava na própria casa dele.
Um tempo depois, talvez uns três anos, reencontrei o Zé. Estava “bem de vida”. Contou o que fez para ganhar mais. O melhor técnico da oficina da Sears pediu demissão e abriu uma oficina própria, para consertos de eletrodomésticos. E o Zé era uma espécie de sócio-fantasma dele. A partir daí, na hora de fazer orçamentos, principalmente de alguns trabalhos mais caros, exagerava nos preços. O cliente reclamava, dizia que era muito caro e ele, pedindo segredo, dizia que conhecia um técnico excelente que faria o trabalho por um preço muito menor. E dava o número do telefone do sócio. O custo era realmente muito mais barato, e o cliente optava por ele.
Mais um tempo depois, o meu irmão me contou, não “estarrecido” mas um tanto assustado, que havia encontrado o Zé. Como havia me contado com a maior tranquilidade sobre o que fazia na Sears, contou então que tinha comprado, com seu sócio da oficina, um posto de gasolina na via Anhanguera. Tornou-se o posto preferido por muitos motoristas de caminhão-tanque, que transportavam gasolina.
Havia um motivo para isso: o Zé e seu sócio tinham descoberto como retirar um pouco de gasolina sem romper o lacre da tampa do tanque. Combinaram com os caminhoneiros: eles ganhariam um almoço ou jantar de graça, com direito a uma cerveja, em troca de deixar que retirassem um pouco de gasolina de sua carga. Os caminhoneiros topavam, confiando que a falta de algumas dezenas de litros de gasolina de sua carga não seria vista como um roubo pelo comprador e pelo vendedor do combustível, pois o lacre não havia sido rompido. E o Zé foi ficando rico.
A última notícia que tive do Zé, na década de 1970, uns catorze ou quinze anos depois que eu o conheci, era que ele tinha uma imobiliária em São Paulo. O cara que me contou disse que desconfiava que os loteamentos que fazia na periferia incluíam alguns terrenos grilados.
Se já tiver se mandado desta para uma melhor, deve ter deixado herdeiros muito “bem de vida”, não? Possivelmente, algum deles “estarrecido” com a corrupção dos políticos.
Como disse, muitas famílias “respeitáveis” de hoje fizeram fortuna com métodos parecidos ou piores. Sobre isso, recomendo o livro Coronéis e Carcamanos, de Júlio Chiavenatto, ambientado em Ribeirão Preto das grandes fazendas de café do início do século passado.
“Ah... Só ele que nunca fez mutreta”, deve ter alguém pensando e ironizando. Nada disso. Não sou impoluto, imaculado... E acho uma chatice gente puritana demais. O que não significa conformismo ante escândalos de corrupção.
Só que todos (ou quase todos) fizemos pequenas safadezas. Lembro-me de que, quando criança, roubava frutas. Sabia de cor, assim como outros moleques, os quintais que tinham mangueiras, pessegueiros, laranjeiras... Já jovem, às vezes participava de um grupo que de vez em quando roubava frangos para cozinhar num boteco, com arroz e “cear” de madrugada.
Numa época em que precisava de uma coisa chamada “antecedentes políticos e sociais”, emitido pelo Dops, que as empresas e o próprio governo exigia para nos dar emprego, comprei duas vezes esse papel, mais conhecido como “atestado ideológico”. E tem mais: num tempo de dureza, cheguei a fazer uma coisa chamada “dar pinote”. Muita gente fazia, o que não me absolve. Sem dinheiro e muito a fim de tomar umas, fui algumas vezes a bares caros, bebi e saí correndo sem pagar a conta. Só tive a consciência de escolher bares careiros, de gente rica.
Se acho normal isso? Mais ou menos. Repito: não significa concordar com a corrupção, principalmente envolvendo dinheiro público, mas também com a corrupção privada. E tem o volume de grana. Há diferenças, claro. Tem aquilo de quantos hospitais, quantas escolas etc. poderiam ter sido construídos com o dinheiro que vai para o ralo por causa da corrupção. Se o dinheiro for utilizado para essas coisas, né? Então, pau nos corruptos. Em todos, sejam políticos de qualquer partido, empresários, banqueiros o que for.
Sempre houve uma posição dura de órgãos governamentais federais, estaduais e municipais, quando o “sonegador” não tem advogados especializados e contadores para defendê-lo, ou seja, quando ele é pobre. Quem sabe, agora eles se dediquem a “perseguir” grandes sonegadores e deixe em paz (ou pelo menos não persiga) bagrinhos, que às vezes por erro ou esquecimento “sonegam” alguns reais de imposto.
Ora, comecei a falar de “estarrecidos” por motivos nem tanto “estarrecíveis” e vim parar? Viajei...