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“Mas ela não era comunista?”
O pai angustiado à procura da filha desaparecida ouviu essa pergunta várias vezes, ao falar com pessoas que julgava poder ajudar a encontrá-la, como se ser comunista justificasse tudo o que fizessem com ela, e era um tempo em que os comunistas e a esquerda mais radical não tinham a menor possibilidade de tomar o poder ou causar qualquer “mal” ao país.
Era o ano de 1974. As organizações guerrilheiras já tinham sido destroçadas no Brasil. Quem militou em organizações políticas guerrilheiras ou não, se não tivesse sido morto nem preso nem exilado, estava derrotado, sem ação, se limitando à procura da sobrevivência, alguns procurando atuar politicamente pelas vias legais.
Mas a ditadura continuava prendendo, torturando, matando, “desaparecendo” pessoas ligadas a essas organizações ou meramente suspeitas. Sadismo? Demonstração de poder? Maluquice?
O certo é que o aparato policial e militar continuava agindo como se os inimigos da ditadura estivessem em plena ação para derrubar o regime, embora o então presidente, general Ernesto Geisel, já falasse numa “abertura lenta e gradual”, para entregar o poder aos civis.
K. era sobrevivente de uma família que já tinha sido vítima do nazismo, na Polônia, que matara quase todos os seus parentes. Veio para o Brasil deixando seus mortos na Europa.
Aqui, vivia em paz, se dedicando à literatura iídiche (língua hoje quase extinta, falada pelos judeus da Europa Oriental). Tinha três filhos: dois homens, que moravam fora do Brasil, e uma moça, de quem se orgulhava muito, professora de Química da USP.
De repente, ela não aparece nem dá notícia.
E o velho K., calejado pela perseguição nazista mas um tanto ingênuo, sai à procura dela.
É um martírio que não acaba, dura anos, um jogo de desinformação manejado pela repressão que prendeu e certamente matou na tortura não só a filha, mas também o marido dela.
Na sua angústia, lembrando da perseguição nazista e comparando com ele o que acontecia aqui (“lá pelo menos eles informavam a família que prenderam e mataram as pessoas”), K. continua em sua busca incessante, e inútil.
É um drama muito bem contado num romance – na verdade uma história que não tem nada de ficção – de B. Kucinski, publicado pela Editora Expressão Popular, certamente inspirado no desaparecimento de sua irmã, Ana Rosa, e do marido dela, Wilson, embora os nomes deles nunca tenham sido citados no livro. K.é seu pai.
“De todos os livros que já li sobre esse período de horror, este é o que mais me emocionou”, diz a historiadora Maria Victoria Benevides, na orelha do livro. “Um libelo contra a desumanidade e a vilania do regime de opressão”, afirma J. Guinsburg, na quarta capa.
Alípio Freire considera o livro “Magistral, magistral...” e Avraham Milgram (do Museu do Holocausto, de Jerusalém) considera que “os relatos de B. Kucinski refletem maldade, indiferença, cumplicidade, oportunismo e prostração moral manifestadas num ambiente aparentemente simpático e dócil de uma sociedade sob ditadura militar”.
Concordo com todos, lembrando com certo asco passagens em que até rabinos e judeus ricos lavam as mãos (“mas ela não era comunista?”) e os mandões do Departamento de Química da USP aproveitam para demitir a professora querida dos colegas por “abandono de emprego”, para dar sua vaga a alguém das relações deles, sabendo que ela tinha sido presa e certamente morta.
E volto ao começo: eram pessoas que não ofereciam risco nenhum aos ditadores.
Foi um tempo de muito sofrimento para muitas famílias, como a de K.. E tudo isso tem que vir a público, ser esclarecido, para que não aconteça mais.
Os que se opõem à apuração do que aconteceu naquele período têm motivos para isso: serão revelados como monstros, cruéis, torturadores sádicos e assassinos. É o que são.