INDIGNADAS COM ESTUPRO, ESTÃO TODAS SANGRANDO por Silvia Bessa, Diário de Pernambuco
Chocada, triste, doída, sofrida, violentada. Uma jovem de 16 anos foi estuprada no Rio de Janeiro por mais de trinta homens. Ela leu a notícia. Havia sido narrada cirurgicamente por uma amiga com numerais sobrepostos linha após linha, um a um, para que o volume de covardes fosse exposto e pesado: 1,2,3,4,5,6,7,8,9,10,11,12,13,14,15...Faltam quinze. 15? Poupo-lhes, sabendo que a vítima, mostrada em vídeo dopada e nua, não foi poupada. No Facebook ontem era só no que se falava. Diante daquele horror, a desenhadora, como se autodefine a artista pernambucana Dani Acioli, sentiu-se inútil. Leu mais. Horas depois, lembrou que a arte é a sua fala. Então, sangrou a fêmea de um trabalho antigo. “Estava com raiva”, disse-me. Fez o que tecnicamente chama de interferência visital sobre um desenho de 2010. A mulher da tela lá estava. Virou outra com a barbárie.
Da pelve da mulher da ilustração, jorrava o vermelho-vivo. À obra, deu um título: “Dor”. Só. Uma palavra. Síntese perfeita. Os traços e as cores de Dani Acioli eram a tradução do que descreveu ontem a jovem vítima ao falar da múltipla agressão, do horror vivido: “Não dói no útero. Dói na alma”. O desenho era a representação daquela que sangrava por ser mulher, protagonista, livre e que passou a ser hemorrágica por ser agredida, exposta nas redes sociais para reforçar um machismo que permeia toda uma sociedade. “O falo é o poder. Tudo se resume a ele. Vivemos numa cultura de machismo, do estupro”, comentou Dani Acioli, jornalista por formação, que abraçou há dois anos as artes plásticas como profissão tendo o universo feminino como inspiração maior. “É o mesmo machismo que leva o cara esperar que a gatinha fique meio bebinha para rolar algo”, ilustrou, citando a comparação tecida por uma conhecida.
A necessidade de Dani Acioli se expressar é a minha ao escrever um artigo sobre tema já debatido por dois dias na Imprensa. Eu desconheço mulher que tenha ficado indiferente ao tomar conhecimento do estupro da jovem carioca. Que não tenha pensado e sofrido pelo calvário alheio e que não tenha rememorado as investidas masculinas de toda uma vida. As explícitas e as implícitas. “Uma sente a dor da outra. Me dei conta de que não tem problema em ser protagonista atrasado. A gente não tolera mais brincadeiras, gracinhas, sutilezas”, disse a desenhadora, explicando sua inspiração e sua revolta.
O estupro coletivo da jovem carioca de 16 anos repercutiu no noticiário internacional. Se você não leu sobre, saiba que, além do ato, os abusadores usaram as redes sociais para dar publicidade ao crime: “Amassaram a mina, fizeram um túnel na mina, mais de 30”, disse um, por meio do Twitter o usuário @michelbrazil17, fazendo referência à violência do grupo. Outro publicou foto com lingua de fora e a pelve da jovem ensanguentada. A Organização das Nações Unidas (ONU) Mulheres no Brasil divulgou nota em que se solidariza com a jovens do Rio de Janeiro e quatro adolescentes do Piauí, vítimas do mesmo crime de estupro coletivo em 2015. A ONU pediu “tolerância zero” à sociedade brasileira quanto às formas de violência contra as mulheres e sua banalização.
As mulheres têm se expressado cada vez mais. Neste sábado, haverá encontro da Marcha das Vadias no Recife (Praça do Derby, a partir das 13h) e o estupro da jovem carioca servirá de combustível para o movimento que protesta contra a teoria que o comportamento das mulheres é responsável pelos estupros. Em casa, cada mulher faz protesto, pregação e conscientização, na esperança de educar homens sem machismo. “Hoje eu vou para a Marcha das Vadias pela primeira vez, mas conversei com meus filhos sobre a arte que fiz, sobre jamais permitir um desrespeito com o outro, nem mesmo enquanto plateia”, garantiu Dani Acioli.
A educação dos nossos meninos, futuros homens, é o único caminho. Do contrário, continuaremos sangrando.
Arte: Dani Acioli/Divulgação.
Silvia Bessa: INDIGNADAS COM ESTUPRO, ESTÃO TODAS SANGRANDO
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