Google e a manipulação midiática
Mauro Santayana, Jornal do Brasil 27/07/2015
Quando as grandes empresas de internet surgiram, nascidas nas universidades, e não nos grandes grupos de comunicação que já existiam, houve esperança de que elas viessem a contribuir para a consolidação de um ambiente de produção, publicação e troca de informações realmente livre.
Um novo espaço que privilegiasse o indivíduo no lugar do Sistema, ajudando-o a libertar-se do deletério domínio da mídia tradicional, umbilicalmente ligada, de parte a parte, por milhares de tentáculos, aos maiores grupos empresariais privados, que, no mundo inteiro, e em cada país, trabalham para manter o status quo e defender seus interesses, entre eles o de continuar - mesmo depois do surgimento da Rede Mundial de Computadores - a manipular e a explorar, do nascimento à morte, o homem comum.
Website mais visitado do mundo, e a marca mais valiosa do planeta, com aproximadamente 25.000 funcionários, um enorme faturamento e bilhões de usuários, o Google parecia ser uma dessas empresas, voltada, como rezava a missão inicial do “navegador” criado por Larry Page e Serguey Bryn, para “tornar a informação mundial universalmente útil e acessível.”
A primeira impressão, era a de que o Google buscava, ao menos aparentemente, uma aura de identificação e comprometimento com os “melhores” valores, que se refletia no lema “dont be evil” - “não seja mau”, e outros slogans relacionados de sua “filosofia corporativa”, como “você pode ganhar dinheiro sem fazer o mal”, ou “você pode ser sério sem um terno”.
Uma impressão reforçada - teoricamente - pelo fato do Google não perder uma oportunidade de declarar seu “marcante” comprometimento com a neutralidade da internet, como diz, quase sempre, seu vice-presidente e “Chief Internet Evangelist”, Vint Cerf, quando afirma que “não se pode permitir que os provedores de acesso controlem o que as pessoas vêem e fazem online.”
No entanto, o Google, além de ter tido problemas em vários países do mundo no quesito privacidade, sempre esteve estreitamente ligado à comunidade de informações norte-americana, como revelaram jornais como o The Huffington Post , no ano passado, reproduzindo e-mails divulgados pela Al Jazeera America, trocados entre o Presidente da NSA (Agência Nacional de Segurança) dos EUA, o general Keith Alexander, o Presidente do Google, Erick Schmidt, e um dos seus fundadores, Serguey Bryn, nos anos de 2011 e 2012.
Afinal, porque o Google - em uma excelente jogada de relações públicas - por meio do seu presidente Erick Schmidt - fez questão de receber na sede da empresa a Presidente brasileira Dilma Roussef em sua recente visita aos Estados Unidos?
Não apenas porque o Brasil é o quinto país do mundo em usuários de internet ou abriga o único Centro de Desenvolvimento Tecnólógico do Google na América Latina.
Mas também, e principalmente, porque no auge do escândalo de vigilância global da NSA, e dos Five Eyes - a aliança de espionagem anglosaxônica que reúne os EUA, a Austrália, o Canadá, a Nova Zelândia e o Reino Unido e “parceiros privados” - em que Edward Snowden desnudou ao mundo o gigantesco sistema de monitoramento em massa e a íntima correlação entre agências de informação dos EUA e grandes empresas norte-americanas que dominam o negócio da internet - incluindo, como vimos, o Google - foi Dilma Roussef que liderou a reação mundial aos EUA, suspendendo sua visita de Estado aos Estados Unidos, e aliando-se à Chanceler alemã Angela Merkel, na apresentação e aprovação, na ONU, por 193 países - contra a vontade de Washington - das diretrizes de uma “lei de internet mundial” a resolução sobre “O Direito à Privacidade na Era Digital”.
Diante do gigantismo do Google e do dinheiro que aplica em marketing - incluindo um bilhão de dólares para um fundo de filantropia - é preciso prestar a atenção em detalhes para encontrar provas de seu claro comprometimento com o status quo e as forças mais conservadoras em cada país em que atua.
Talvez a mais evidente delas, que pode passar - e essa é a sua função - desapercebida pela maioria dos leitores, é a presença de uma seção denominada de “Sugestões dos Editores”, que se pode ver no alto da tela, na coluna da direita, da página inicial do Google Notícias.
Dependendo do momento em que estiver olhando, o leitor pode se deparar com chamadas para matérias prosaicas, como dicas de beleza, dietas, etc.
Mas, na maioria das vezes, ele terá chance encontrar, “casualmente”, no mesmo espaço, no Brasil, por exemplo - mas não apenas em nosso país - o mesmo tipo de conteúdo reacionário, anacrônico e fascista, que intoxica maciçamente a internet brasileira, hoje, o que leva, naturalmente, qualquer leitor mais atento a se perguntar : que raios de “editores” são esses?
Seriam “editores” do Google? Ou “editores” voluntários, organizados em grupos de leitores?
Não. Trata-se de “editores” de veículos de informação “tradicionais”, que enviam suas “sugestões”, principalmente de artigos de opinião, ao Google, por meio de feeds.
Em suas informações sobre a seção, o Google explica que qualquer veículo pode enviar uma sugestão.
Mas quem escolhe quais e em que ordem essas sugestões irão ser publicadas na primeira página do Google News?
Se fossemos pensar no âmbito exclusivamente empresarial, compreende-se que, procurando fabricar de óculos a relógios, de carros a balões de reprodução de sinal de internet - e ampliando suas atividades para serviços correlatos de fornecimento de banda larga para usuários finais, que acaba de lançar nos EUA - o Google se sinta cada vez mais como parte do ambiente empresarial tradicional, voltado para ganhar dinheiro e lucrar com o consumidor final - no seu caso, bilhões de consumidores finais - com os quais estabelece contato, por meio de seu brownser, todos os dias.
Também se comprende que o Google busque boas relações com grandes empresas jornalísticas dos países em que está presente, de onde busca - ainda - a maior parte do conteúdo informativo apresentado a seus usuários por seu motor de pesquisa, principalmente depois que foi proibido de indexar esse conteúdo - por ter se recusado a pagar por ele - , em países como a Espanha.
O problema é que, ao fazer isso - dar destaque às “sugestões dos editores” - um eufemismo para levar o consumidor a ter acesso destacado e facilitado, no alto de página, ao diktat da mídia tradicional, manipuladora e conservadora que predomina nos países em que atua, o Google está tomando uma atitude política, e também está renegando, descaradamente, o seu “GUIA DE NEUTRALIDADE DA REDE” e os princípios que ele evidencia, quando afirma que:
“Neutralidade da rede é o princípio de que os usuários da Internet devem estar no CONTROLE DO CONTEÚDO QUE ELES VÊEM e de quais aplicações eles usam na internet. A Internet tem operado de acordo com este princípio de neutralidade desde seus primeiros dias... Fundamentalmente, a neutralidade da rede é a igualdade de acesso à Internet. Em nossa opinião, as operadoras de banda larga não devem ser autorizadas a usar seu poder de mercado para discriminar candidatos ou conteúdos concorrentes. Assim como as empresas de telefonia não estão autorizadas a dizer aos consumidores para quem eles devem ligar ou o que eles podem dizer, as operadoras de banda larga não devem ser autorizadas a utilizar seu poder de mercado para controlar a atividade online.”
E também está, na verdade, rasgando os compromissos assumidos com o público, quando do lançamento do seu serviço de notícias, em 2002, quando afirmou que havia criado um site “altamente incomum” que oferecia um serviço de notícias compilado UNICAMENTE por algoritmos de computador, SEM INTERVENÇÃO HUMANA, ressaltando que para esse serviço não empregava “editores, editores de gestão, ou editores executivos.”
Como os usuários devem estar no controle do que eles vêem? Como “unicamente” por “algoritmos de computador” e sem “intervenção humana” ?
São robôs os “editores” privados que determinam com suas “sugestões” no alto da coluna da direita, da página inicial do Google News, todos os dias, o que o leitor deve ler, nos países em que o Google atua, começando pelos Estados Unidos?
Desse ponto de vista, o Google pode não estar empregando “editores”. Mas nem precisa.
Ao menos nessa seção, o maior site de buscas do planeta preferiu terceirizar o trabalho de escolher o que seus usuários devem ler para os grandes grupos de mídia. Abrindo mão de estabelecer - por meio da internet - um marco na história da comunicação - um novo patamar na relação entre o indivíduo e o universo informacional, para transformar-se, como um mero aparelho de rádio ou televisão, em apenas mais um instrumento de repetição e disseminação do que dizem os maiores jornais e revistas de cada país em que atua. Delegando a essas empresas e jornais - que tem seus próprios compromissos e interesses - o direito de determinar o que eles acham que é mais importante e conveniente - para eles e seus anunciantes, é claro - que os usuários vejam e leiam.
Ainda em suas informações sobre o serviço, o Google diz que é possível para o leitor escolher com que “editores” prefere ter mais “vínculos”, e existe até mesmo uma barra deslizante para que ele possa “personalizar esta fonte de notícias”, mas a maioria dos usuários tem tempo, conhecimento, ou iniciativa para trabalhar com ela ?
E como fica isso no caso das centenas de milhões de usuários que acessam o Google News sem ter uma conta do Google, ou em “lan houses” e “cybercafés”- como ocorre na maioria dos países mais pobres - ou de seu trabalho, por exemplo?
Eles vão deixar de ler, e de ser influenciados, pelas chamadas dessa seção específica?
Seria mais honesto que - caso se visse a isso obrigado, mesmo considerando-se o público que já acarreta para os portais da mídia tradicional - o Google colocasse como publicidade claramente identificada, banners dirigidos para o conteúdo desses veículos na primeira página do Google News e cobrasse - claramente - por esse serviço.
Ao disfarçar esse conteúdo, colocando-o no alto da página, mas obedecendo ao mesmo layout, tamanho de letra, etc, das chamadas normais de conteúdo automaticamente indexado, o Google mostra que tem reforçado, ao longo do tempo, de forma sutil, mas reconhecível, uma decisão clara: a de ficar ao lado do Sistema e não do cidadão, ajudando a reproduzir os esquemas de poder, dominação e manipulação que existem no mercado editorial e jornalístico de cada país, na rede mundial de computadores.
Transformando-se em um instrumento e uma extensão a mais da "fabricação do consenso", ou do consentimento, de que fala Noam Chomsky e do controle do sistema jornalístico tradicional sobre o homem comum, e contribuindo para estender o poder dos grandes grupos empresariais de comunicação de cada país sobre a opinião pública.
Com seus carros que andam sozinhos, o Google Earth, o novo serviço que permite chamar do Gmail para telefones, e suas ações no apoio à pesquisa científica e à filantropia, a marca Google pretende ser apresenbtar-se e ser identificada com uma empresa inovadora, que pareça estar voltada, como um farol, para o século XXI e o futuro.
Livrar-se dessa excrescência incômoda, do ponto de vista moral e político, deixando apenas os algoritmos, a busca temática, e o critério de relevância arimética, como mecanismos de escolha do leitor, na primeira página de seu serviço de notícias - isso, sim, faria do Google, ao menos aparentemente, uma marca realmente inovadora do ponto de vista da relação da mídia com a opinião pública.
Quem sabe, assim, o Google poderia abrir caminho para se transformar em uma companhia verdadeiramente global - da forma como pretende apresentar-se e quer que o público o reconheça - e não - como ele parece ser agora - uma mera extensão do poder do establishment norte-americano - e de seus prepostos locais - sobre a internet e os seus usuários em todo o mundo.
Mauro Santayana: Google e a manipulação midiática
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