Este Brasil de miséria não existe mais, é deste Brasil que a direita tem saudades

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Aruanda: os 50 anos de um filme clássico Por LUIZ ZANIN, em seu blog 27/12/2010 | 14:14 JOÃO PESSOA/PARAÍBA

“Como eu fui burro! Como eu fui burro!”. É o que teria dito o jovem Glauber Rocha ao conhecer Aruanda, o seminal documentário de Linduarte Noronha, filme que está comemorando 50 anos de existência. Anos bem vividos, aliás, pois poucas obras do audiovisual brasileiro foram tão influentes e seminais quanto este em aparência singelo registro de uma comunidade quilombola na Serra do Talhado, no Estado da Paraíba.

A “burrice” a que aludia Glauber Rocha se refere ao seu começo de carreira, em particular ao belo e estetizante curta-metragem O Pátio (1959), que pouca coisa teria a ver com os caminhos em seguida trilhados pelo cineasta baiano após sua estreia em longa-metragem com Barravento, em 1962. Ao assistir Aruanda, Glauber teria pressentido que o mapa da mina passava por aí. Numa imersão bruta na realidade brasileira, não em seu pitoresco, mas no registro mais verdadeiro e realista, que não excluía um olhar poético sobre a condição fragmentada do País. Quem conta essa história sobre Glauber é o próprio Linduarte Noronha, na sabedoria e na memória dos seus 80 anos. Ao lado de Aruanda, outro curta-metragem exerceu esse papel de farol para os jovens diretores do Cinema Novo: Arraial do Cabo, da dupla Paulo Cezar Saraceni e Mário Carneiro.

Com seu trabalho pioneiro, Linduarte entrou para a história do cinema brasileiro. Foi reconhecido. A fortuna crítica de Aruanda é impressionante. No calor da hora, os maiores ensaístas do cinema brasileiro escreveram sobre ele. Glauber Rocha, além do reconhecimento verbal, escreveu sobre Aruanda no Jornal do Brasil e depois incorporou o artigo em seu livro Revisão Crítica do Cinema Brasileiro. Paulo Emílio Sales Gomes e Jean-Claude Bernardet o estudaram em profundidade em seus livros e nas páginas do Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo. Paulo Emilio dizia que Aruanda era um manifesto. Em 2007, Bernardet voltou a ele em ensaio escrito para o suplemento Cultura de O Estado. A professora da ECA, Marília Franco, coordena, na USP, um laboratório de estudos sobre documentários chamado…Aruanda. O festival de cinema de João Pessoa, que promoveu esta homenagem aos 50 anos da obra, chama-se Cine Fest Aruanda (acaba de realizar sua 6ª edição) e distribui o Troféu Aruanda. Em suma, o filme de Linduarte Noronha nunca saiu de cartaz durante esse meio século de existência.

Curiosamente, a obra teve origem numa reportagem. Linduarte, antes de ser cineasta, era jornalista e crítico de cinema em diários da Paraíba. Tinha fama de exigente. Tanto assim que um dos distribuidores de filmes da cidade, irritado com os textos negativos sobre seus produtos, o apelidou de Bílisduarte Noronha. Linduarte ri muito ao recordar a história e lembrar seus 15 anos de crítico militante. Mas o trabalho que está na origem de Aruanda é uma reportagem à maneira clássica. Linduarte, e o correspondente do Estadão na Paraíba, Dulcídio Moreira, tinham ouvido falar de uma comunidade quilombola na Serra do Talhado. Os descendentes de escravos viviam de maneira primitiva, quase isolados da economia do país. Sobreviviam da venda de potes de barro, confeccionados de maneira artesanal e segundo técnicas ancestrais. Ambos subiram ao Talhado em 1957, em lombo de cavalo. Linduarte publicou a reportagem no jornal A União e Dulcídio a sua, no Estadão, com o título “Talhado não é mais que uma longínqua favela”. A notícia mereceu chamada de primeira página no Estado.

Havia mesmo naquela comunidade material para um excelente trabalho jornalístico, afinal era, nos anos 1960, uma sobrevivência arcaica em país que se industrializava. Havia também assunto para um filme, pressentia Linduarte. Só não havia como fazê-lo, por falta de condições técnicas. E não é que o jovem Linduarte teve a caradura de se deslocar ao Rio de Janeiro e pedir a Humberto Mauro, então presidente do Ince (Instituto Nacional do Cinema Educativo), que lhe emprestasse câmera e outros apetrechos? Diz que formulou o pedido a Mauro, que, de tão surpreso, gritou a um funcionário: “Esse rapaz da Paraíba quer que todos nós sejamos presos!” Mas como Mauro não era diretor igual aos outros, escravo da burocracia, Linduarte saiu do instituto com uma câmera Bell & Howell debaixo do braço. Voltou com ela à Paraíba e lá começou a fazer história, ainda que sob descrença e chacota de seus colegas da redação.

Aliou-se ao fotógrafo Rucker Vieira e subiram a Serra do Talhado. Trabalharam durante meses com os habitantes do quilombo e, depois da filmagem, o material foi levado ao Rio, ao Laboratório Líder, para ser montado. Não há no filme depoimentos orais dos habitantes do Talhado. Apenas o registro de imagens do seu trabalho de oleiros, realizado em especial pelas mulheres. Depois, o produto, potes e jarras, é colocado no lombo de jegues e levado para a cidadezinha mais próxima, Santa Luzia, onde são vendidos e trocados por mantimentos. Um ciclo econômico primitivo e, em aparência, sem saída. Esse círculo de ferro da pobreza extrema era justamente o que o documentário queria mostrar. E também era esta a ambição do Cinema Novo, que ensaiava nascer da parceria entre Glauber Rocha, que viera da Bahia, e jovens aspirantes a cineastas da Zona Sul carioca. Aruanda lhes apontava o caminho a seguir.

Em seus 22 minutos de duração, o filme tem a graça e o frescor das obras definitivas. Começa por uma parte que se poderia chamar de “ficcional”. Faz os próprios moradores encenarem a saga dos membros da família de Zé Bento (Paulino Carneiro), no século 19, em busca de terra fértil, onde pudessem se estabelecer. Encontram, por fim, uma nascente d’água e começam a construir a casa de barro, com a mesma técnica ainda hoje empregada nas regiões pobres do país, seja no sertão ou no litoral. Após esse prólogo, há um corte brusco e saltamos do século 19 para meados do século 20. Vemos as mãos no trabalho de moldar o barro e, dele, tirar os artefatos. A trilha sonora utiliza material em conformidade com as imagens – a comovente canção folclórica “ Ô mana deixa eu ir” (recriada por Villa-Lobos) e, em outras cenas, um tema recorrente tocado por uma banda de pífanos.

Quem pergunta a Linduarte por que empregou a forma ficcional para mostrar a chegada dos ex-escravos à Serra do Talhado, ouve a resposta: “Não havia escolha”, diz. “Não queria usar uma longa narração em off e precisava mostrar de alguma maneira como eles haviam chegado lá”. E, uma vez chegados lá, revelar como e porque aquelas pessoas permaneciam à parte, como num espaço econômico primitivo e perpetuador da sua condição precária. Na época, o Brasil instalava sua indústria automobilística e ainda havia gente vivendo à maneira do século 19. Essa sobrevivência do arcaico no moderno era um depoimento chocante sobre os contrastes sociais do País. Linduarte havia encontrado assunto e a forma para tratá-lo. De onde tirou essa sacada? Quando lhe perguntam sobre influências, responde: “apenas a dos cinejornais”. Aruanda é um filme de jornalista. A técnica cinematográfica, ele aprendeu, como autodidata, do Tratado de Realização Cinematográfica, do russo Lev Kulechov.

De maneira inspirada, Linduarte encontrou a maneira mais direta de mostrar as coisas como elas são. Simples assim.

A repercussão crítica

Um filme se completa naquilo que sobre ele se escreve. Para Paulo Emilio, Aruanda era “um manifesto” – quer dizer, um indicador do caminho a seguir na linha evolutiva do cinema brasileiro. Glauber Rocha escreve que Linduarte e Rucker Vieira “entram na imagem viva, na montagem descontínua, no filme incompleto. Aruanda inaugura o documentário brasileiro nesta fase de renascimento que atravessamos.” (Revisão Crítica do Cinema Brasileiro, 1963).

Jean-Claude Bernardet, mesmo fazendo reparos à precariedade técnica, diz que “a fita é importante porque, além de ser uma provocação e um estímulo, além de tratar de assunto brasileiro, o faz de uma maneira que pode se tornar um estilo e dar ao cinema brasileiro uma configuração particular (fora de qualquer emprego de folclore, exotismo, naturalismo, etc.), o que este, ao que eu saiba, nunca possuiu, nem de longe.” (Suplemento Literário do Estado de S. Paulo, 12/8/1961).

Em 2006, Bernardet volta ao assunto. Participando de um seminário no Fest Aruanda, percebe que o filme feito por Linduarte, Rucker era diferente daquele que ele e outros intelectuais haviam detectado como guinada no cinema brasileiro no início dos anos 60. E o clássico que hoje se discute à luz de certo recuo histórico, era ainda outra coisa, já contaminada pela consagração. O texto “Aruanda como objeto mental” (Caderno 2/Cultura, 18/2/2007) articula essa fértil ideia de Bernardet: o mesmo filme pode adquirir configurações distintas segundo a época e o grupo de pessoas que sobre ele se debruçam.

De certa forma, há um Aruanda para cada espectador e para cada época. E isso por vários motivos. Um deles é, em se tratando de interpretação artística, esse deslizamento é inevitável. Mais ainda quando se trata de obra ambígua como é o caso. Moderna pela fotografia, montagem e precariedade de meios aplicadas à própria linguagem, Aruanda é antiquada pela narração em off por um locutor à Luiz Jatobá, como lembra Bernardet. E, depois, porque, à maneira de um clássico, Aruanda não se esgota e nem deixa de produzir significações, mesmo tendo já tanto tempo de estrada.

Um dos significados da palavra Aruanda é liberdade.