Lelê Teles: Contra as armas

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Ontem fui ao supermercado e presenciei uma cena dantesca: uma fechada, um bate boca, uma mulher contra quatro (uma família - esposo/genro, esposa/filha, sogra do esposo e mãe da esposa e avó da neta e a neta, filha do casal).

A mulher sozinha parece ter pego uma vaga que a sogra estava guardando para o genro, a mulher sozinha parece ter agredido verbalmente a sogra. A filha/esposa, o genro/marido, a sogra/avó e a filha/neta foram para cima da mulher 'ladra de vaga'.

A filha/esposa, em defesa da honra da mãe, agarra os cabelos da mulher sozinha, chuta, finca suas unhas na cara da mulher sozinha que sangra.

Seguranças, gerente, tentam separá-las e sobra sopapo pra todo lado. Eu tentando chamá-las à razão, nenhum efeito. A razão não existe quando as pessoas abrem mão dela para resolverem conflitos no tacape. Era chave para debaixo do carro, bolsa atirada para o outro lado e todos que se aproximavam, poderiam levar um golpe. Multidão em volta, celulares gravando tudo e mais um vexame com muitas visitas no youtube.

A pergunta é: e se um dos envolvidos tivesse uma arma de fogo? Essa é a questão chave da crônica de hoje de Lelê Teles.

PORTE LEGAL DE ARMAS NÃO É NADA LEGAL

Por Lelê Teles

feriadão, casa do amigo arquiteto, arquitetonicamente bem desenhada, pé direito alto, vãos vestidos de ventos, excelente aproveitamento da luz e da refrigeração natural, plantas colorindo o ambiente, flores dando cores às janelas, canto de pássaros.

lá fora, nordestínico, o sol impiedoso açoitava o lombo dos viventes com sua língua de fogo, chicote dos banhistas.

à nossa volta, o vento amigo ventava fresco e abrigo.

soprando da praia, nos trazia murmúrios aquáticos e deliciosos cheiros d’África, odores marinhos, fragrâncias piscosas; algo de algas em seu perfume nos besuntava, brisicamente.

o churrasco crepitava em brasas, indiferente a brisas, cervas trincavam no iglu; o amigo arquitetava um drink, macerava gelo, açúcar e cachaça, caipirindo.

enquanto isso, Beatles bitavam na vitrola. à mesa, quatro cabras, três garotas, cigarros, copos, garrafas y otras cositas más.

como ocorre sempre nesses churrascos, quando todos já estão bêbados e o riso é fácil e gratuito, eu apresento meus stand ups cabeças, sobre drogas, religiões, coprofagias e outras bizarrices.

gargalhadas daqui, gargalhadas dali, conversa mole vai, conversa mole vem, o álcool entorpecendo todos e o amigo - só o diabo sabe por quê – elevou a voz em defesa do direito de todo cidadão de bem portar uma arma.

alto lá, disse eu - elevando uma deliciosíssima costela bovina dourada ao ar, ainda mastigando e com uma gordura líquida e morna escorrendo pelo canto da boca - cidadãos de bem ou cidadãos de bens?

você acha justo que os bandidos andem armados enquanto nós, cidadãos de bem, estejamos sempre vulneráveis?, perguntou o arquiteto.

se o bandido pode ter armas por que nós não podemos?, encorajou-se a nem sempre bondosa Juliana.

pra mim é simples, continuou a dentista belicosa, é fazer como nos Estados Unidos, permite-se o porte de armas para civis, dão a eles treinamentos em stands de tiros e todos têm o direito a proteger suas famílias. por isso que lá a classe média não é obrigada a viver cercada de grades como nós.

é isso, os assassinos estão livres, nós não estamos, disse Natália, citando Renato Russo.

nisso todos concordaram, menos eu.

amigos, vocês já andam armados, eu disse. veja o carrão de vocês aí na porta, nenhum corre menos que 200 km por hora, e quantas vezes vocês o dirigiram embriagados? agora mesmo você queria sair para comprar mais cigarros, Natália, eu é que sugeri um mototáxi.

onde você quer chegar com isso?, perguntou o dono da casa.

quero dizer que hoje a arma que mais mata no Brasil é o automóvel. e contra ele não adianta eu comprar outro carro para me defender. fora os valentões que partem para briga quando alguém lhe dá uma fechada, entra numa curva em dar a seta ou um banguelo pede para limpar o para-brisas do seu carro. imagine essa gente toda armada!

quando eu falei em homens de bens eu quis dizer que vocês estão a favor de armar a classe média, mas imagino que um porteiro, um pedreiro e um padeiro não vão tirar parte de seus salários para comprar uma ponto 40.

não entendi onde você quer chegar, cara. impacientou-se o amigo carioca, funcionário da Petrobrás e que reclamava da vida com os bolsos cheios de dinheiro. você é contra as pessoas de bem se defenderem dos bandidos ou você está defendendo bandidos?

amigo, defendo apenas o bom senso. e o bom senso me diz que quem quer se defender deve comprar um escudo e não uma arma. a arma foi projetada para atacar.

mas o ataque é a melhor defesa, disse o arquiteto com sangue nos olhos.

uma das garotas propôs um brinde e que maneirássemos nos argumentos para não perdermos a civilidade.

todos brindamos.

aproveitei a calmaria para expor meus argumentos. Juliana, os Estados Unidos têm a maior população carcerária do planeta, é o único país em que o assassinato em série é uma epidemia, o único país do mundo em que crianças pegam uma arma em casa e matam seus colegas na escola, às dúzias.

lá nos Esteites, Juliana, o fetiche da arma é fruto de uma poderosa propaganda da indústria armamentista, não há um único estudo sério que associe um velho de 60 anos com um rifle em casa e a inexistência de assaltos e de assaltantes.

isso é mitificação.

e mais, Juliana, todos os especialistas em segurança aconselham a não reagir a assaltos.

então deixemos os assaltantes agirem livremente?, o petroleiro parecia querer me provocar.

com mil diabos, quem está a falar isso? um assaltante, cara – eu tentando manter a calma – chega sempre de surpresa, com uma meia calça na cabeça e os nervos à flor da pele, ele dá um susto em suas vítimas gritando com uma arma em punho: perdeu, perdeu.

o que você pensa que pode fazer em uma situação dessas? sacar do coldre sua arma cromada comprada no shopping e dá um tiro bem no meio dos olhos dele? você acha que a vida é um filme? você tá pensando que assalto de rua é bang bang de cinema antigo, cara, onde o malandro fica de costas para você e cada um conta cinco passos pra ver quem saca primeiro? você não acha que tá assistindo demais o desenho do pica pau, meu camarada?

nessa situação de rua tudo bem, disse ele, bastante nervoso, e dentro de casa, eu não posso me defender?

bom, cara, se você mora em um condomínio fechado não vai precisar de armas, pois o segurança armado tá lá para te proteger, já tá incluso no pacote. e depois que, acordar no meio da noite, de cuecas e com os olhos cheios de remela e trocar tiros com um bandido, só vai expor mais ainda sua família. não seja irresponsável.

e o que você sugere?, perguntou o do petróleo.

não sugiro nada, cara. quem tem que sugerir algo são os especialistas em segurança. o que digo é que você deve ter uma tara irrefreável por dar tiro em pobres, porque duvido muito que você iria à porta da Câmara Federal, com sua arma comprada num shopping, para dar um tiro na cabeça do Eduardo Cunha, mesmo sabendo que ele te assaltou e anda a sorrir de sua cara passeando em carros de luxo comprados com uma grana que ele bateu de sua carteira.

e você daria um tiro em alguém do PT ao saber que ele roubou a Petrobrás?

eu sou contra dar tiros, amigo. não sei se você percebeu. e já que você falou em PT e Petrobrás, imagina aquela louca que xingou o Suplicy numa livraria com uma pistola na mão, uma mulher que entra numa livraria com uma vuvuzela é capaz de tudo; imagina um rifle nas mãos do sicário que sacudiu um cadeirante na rua só porque ele usava uma blusa vermelha, pense num revoltado on ou offline com uma metralhadora em punho. o diabo, cara, que sua incapacidade de interpretação iria reprová-lo no exame do ENEM. pessoas como você já são perigosas demais desarmadas.

aí a chapa esquentou - ele já tentara discutir comigo antes sobre a frase de Simone de Beauvoir que ele não conseguiu compreender - aí, sentindo-se acuado e sem argumentos lógicos, ele virou hominho, tirou o imaginário macacão da Petrobrás e ficou sem camisa, me chamando para a briga.

mas mostrou um físico frágil, uma bunda mole e pouca agilidade para o pugilato. pensei em quebrar o nariz dele, mas preferi mostrar-lhe o óbvio.

enquanto a turma do deixa disso o segurava eu disse: já pensou, cara, se você tivesse com uma pistola na cintura e eu com outra?

nessa de olho por olho e dente por dente, seu bunda-mole, vamos acabar todos cegos e banguelos.

palavra da salvação.