Não havia escrito nada sobre a mulher espancada até a morte, alvo da fúria da turba de uma cidade litorânea paulista, por supostamente matar crianças para magia negra.
Havia tantos elementos nesta história macabra que nos desumaniza que só conseguia ver o corpo de Cláudia arrastado até seus ossos ficarem expostos em um camburão da polícia do Rio de Janeiro. só conseguia lembrar dos discursos medonhos, irresponsáveis e criminosos das Sheherazades da Tv aberta, estimulando linchamentos públicos: "Está com dó, adote um marginal!"
Não sei o que mais será preciso para que homens e mulheres públicos sérios neste país entendam a necessidade de um Marco Regulatório para as concessões públicas de radiodifusão, são as únicas que não obedecem os princípios constitucionais estabelecidos em 1988.
A radiodifusão é única concessão do país sem nenhuma regulação, ao contrário, trata-se do maior monopólio que temos no Brasil e que não apenas desestabiliza as instituições até mesmo num programa esportivo como descreve o professor Wagner Iglecias citado abaixo, mas também estimula a violência sem precedentes como relata o texto do professor Rafael Araujo, reproduzido no final deste post:
Aí você está as 18H parado no trânsito de SP, escutando um tradicional programa de rádio sobre futebol, quando de repente um dos participantes informa que Dilma Rousseff vai visitar a Arena Corinthians nesta semana, e outro participante, na sequência, diz que bem que um guindaste poderia despencar lá no dia. Todos riem. São comentaristas de futebol, que pouco entendem sobre política. Mas está aí mais um singelo exemplo do que pode resultar desse trabalho diário de criminalização do PT que alguns bate-paus da grande imprensa e da oposição fazem. Criminalização do PT que como consequência acaba sendo a criminalização da Política. Não tardará o dia em que as pessoas serão agredidas nas ruas deste país por conta de suas posições políticas.
Hoje leio o post de Rafael Araújo que também traz um pouco de bom senso para este debate e de novo as relações imediatas que fiz ao saber desta história que nos desumaniza - linchar uma pessoa em praça pública até a sua morte - estão presentes no texto de Rafael, destaco especialmente o papel desta mídia descerebrada em esgarçar a confiança das pessoas nas instituições democráticas e estimular a barbárie:
O fato da grande mídia associar a ideia de absurdo à inocência da mulher e não ao fato de se ter procurado fazer “justiça com as próprias mãos”, ignorando qualquer princípio de civilidade ou a existência das instituições revela como os meios de comunicação de massa têm prestado um desserviço à humanidade reforçando ideias danosas como a de que o Estado e as instituições são inúteis. Esse caso só é o extremo de outros tantos casos em que os mesmos meios de comunicação desqualificam o Estado sem compreender seu funcionamento e importância, contribuindo a cada dia para um processo de desinteresse político e de superficialização da vida.
Por Rafael Araujo* em seu Facebook
Gostaria de escrever algumas pequenas reflexões referentes ao caso da mulher que foi recentemente espancada por justiceiros no Guarujá e que resultou em sua morte:
1) O fato da população procurar fazer justiça com as próprias mãos é dos absurdos mais assustadores dos últimos tempos e é uma ideia que tem sido alimentada por programas sensacionalistas e por uma onda conservadora que nos têm rondado como um fantasma. O discurso que está por trás é o da ineficiência do Estado, cuja incapacidade de resolução de conflitos seria suficiente para que perdesse o monopólio do uso da violência física.
2) Esse discurso encoberto, a rigor, revela uma incapacidade de pensar, no sentido arendtiano do termo. Aquela população justiceira demonstra sua incapacidade de ponderar um percurso passado, que antecede o momento vivido no presente, e não avalia as conseqüências futuras de sua ação. Essa incapacidade de pensar, da mesma forma, revela um autoritarismo gigantesco que passa pela não opção pelo debate ou pelo julgamento justo e toma uma opinião imediatista e superficial como solução acertada e justa. Todos os ditadores sanguinários do passado tiveram argumentos da mesma ordem para justificar suas ações: ao final das contas se justificavam como um suposto restabelecimento de equilíbrio e concretização de uma espécie de justiça.
3) O gesto ter partido da população assombra ainda mais por ter sido feito com o amparo de uma suposta intencionalidade “do bem”. A população estaria dando o troco a uma “anormal”, a uma “monstruosidade social”, pelo dano causado às famílias que supostamente teriam perdido suas crianças para rituais de magia negra. O ocorrido, então, me parece poder ser perfeitamente associado tanto ao que Hannah Arendt chama de “banalidade do mal”, quanto ao que Todorov chama de “tentação do bem”. Em nome do bem se comete um mal desmedido e sem justificativa.
4) O horror em relação ao ocorrido se amplia ainda mais quando pensamos que as pessoas e a grande mídia se indignaram pelo simples fato de que a mulher era inocente. Com isso ficamos na superfície do assunto. Não interessa se a mulher cometeu ou não um crime. Nada justifica a violência desmedida em busca de uma justiça sem julgamento. O gesto de espancar a mulher revela a barbárie em que vivemos. O fato da grande mídia associar a ideia de absurdo à inocência da mulher e não ao fato de se ter procurado fazer “justiça com as próprias mãos”, ignorando qualquer princípio de civilidade ou a existência das instituições revela como os meios de comunicação de massa têm prestado um desserviço à humanidade reforçando ideias danosas como a de que o Estado e as instituições são inúteis. Esse caso só é o extremo de outros tantos casos em que os mesmos meios de comunicação desqualificam o Estado sem compreender seu funcionamento e importância, contribuindo a cada dia para um processo de desinteresse político e de superficialização da vida.
5) Em um dos vídeos, um homem amarra o braço da mulher a uma corda para depois arrastar o corpo por alguns metros. Pergunto-me se esse gesto não teria sido uma forma de repetição da imagem recente dos policiais que arrastaram o corpo de outra mulher, caso tão absurdo quanto, que caíra do camburão enquanto estava sendo levada como carne de segunda para um hospital. Foi como se o homem, ali naquele momento de selvageria, dissesse ao público que o assistia: “Se a polícia fez, também faço”. Por outro lado, na visão da sociedade do espetáculo, o gesto do homem também dizia: “aquele gesto do camburão estava errado porque aquela mulher era uma mãe de família inocente, vítima de uma bala perdida, algo que pode ocorrer a qualquer um aqui. Então vou corrigir os fatos e aplicar a mesma barbárie, mas a quem de fato merece”.
6) Por fim, resolvi escrever esse post ao invés de responder às perguntas de uma jornalista sobre o caso. Justifico: todo o problema de banalização, de superficialização da vida, de desinteresse pelo Estado e pela política, de produção de totalitarismos e conservadorismos, todo esse problema que temos visto ganhar forma em pleno século XXI, em larga medida, é o resultado de um afastamento do público de uma reflexão mais cuidadosa. Isso tem sido produzido por uma indústria da informação que preza muito mais o lucro que a consciência, que busca explicações ligeiras e simplistas e, com isso, ocupa um tempo precioso de promoção do pensamento. Então, dessa vez não cometo o erro de mastigar os fatos para a mídia, para que não sejam divulgados fora de contexto e de forma banalizadora. Os jornalistas interessados em minha opinião têm aqui meu conselho: analisem os fatos à luz das ideias de Hannah Arendt, leiam seus textos (não apenas o verbete da wiikipedia). Se esse modelo for inútil porque não irá se adequar à estrutura banalizadora do jornal ou da TV, não tem problema. Pelo menos o jornalista terá caminhado um pouco em direção à reflexão. E se dessa leitura ainda não for possível extrair nada, se as relações forem impossíveis de serem feitas, minha sugestão é que procurem outra pauta, em um caso tão delicado como esse, é preferível não noticiar a escrever algo superficial. Talvez assim, com silêncio, estejamos contribuindo para frear a emergência do espírito de patrulha.
*Rafael Araújo: coordenador acadêmico da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo