O historiador estadunidense Daniel Jonah Goldhagen criou a expressão "carrascos voluntários" em livro que a utilizou como título - Os Carrascos Voluntários de Hitler - para definir os colaboracionistas do nazismo.
Goldhagen argumenta que o projeto genocida de Hitler teve o sucesso que teve porque contou com a colaboração engajada dos alemães. Com uma rica pesquisa de imagens e documentos, Goldhagen aponta o fato de vários campos de concentração ficarem às vistas de cidadãos alemães; os maquinistas que levavam milhares de judeus para campos de extermínio ou quando relata a ocupação da Polônia, ele nos mostra o zelo e a presteza da polícia de Hitler em procurar judeus para o extermínio.
Safatle usa a ideia de "carrascos voluntários" para os colaboracionistas da Ditadura Militar nesse texto primoroso sobre os filhotes de Olavos e afins que vivem infestando a rede com seu suposto medo do comunismo e querendo nos enfiar goela abaixo um revisionismo criminoso da história.
A verdade enjaulada Em um país incapaz de explicar o passado, torturadores e financiadores da repressão continuam a distorcer a história e a justificar as barbáries do regime por Vladimir Safatle, Carta Capital
02/04/2014
A mais brutal de todas as violências é, sem dúvida, a violência da inexistência. Esta é uma forma muito pior de extermínio, pois não se trata apenas da eliminação física. Ela é uma eliminação simbólica, desta que afirma que nada existiu, que a violência não deixou traços e indignação. Neste exato momento, o Brasil é vítima, mais uma vez, dessa forma mais brutal de violência.
Talvez ninguém esperasse que, em 2014, 50 anos após o golpe militar, estaríamos em um embate para saber se, no fim das contas, existiu ou não uma ditadura no País, com todas as suas letras. Era de se esperar que neste momento histórico estivéssemos a ler cartas abertas das Forças Armadas com pedidos de perdão por terem protagonizado um dos momentos mais infames da história brasileira, cartas de desculpas de grupos empresariais que financiaram fartamente casas de torturas e operações de crimes contra a humanidade. Todos esses atores não se veem, no entanto, obrigados a um mínimomea-culpa.
Há de se perguntar como chegamos a esse ponto. Uma resposta-padrão consiste em dizer que os setores progressistas da sociedade brasileira não tiveram força suficiente para impor aos governos exigências de dever de memória e justiça de transição. A história brasileira recente é, em larga medida, uma história de transformações abortadas.
Já a luta pela anistia foi abortada quando o regime militar conseguiu impor sua própria lei da anistia, que livrava os funcionários de Estado responsáveis por crimes contra a humanidade, isso enquanto ainda deixava na cadeia integrantes da luta armada que participaram de assaltos a bancos e ações com mortes. Àqueles que têm o despudor de afirmar que a lei da anistia foi fruto de acordo nacional, devemos lembrar que a votação que aprovou a referida legislação no Congresso Nacional foi de 206 votos a favor e 201 contrários, sendo os votos favoráveis saídos todos das fileiras do então partido governista (a Arena). Faz parte das ditaduras a criação de uma novilíngua, na qual os termos ganham sentidos contrários. No Brasil, a imposição da sua vontade por meio da coerção é chamada de “acordo”.
Depois, a luta por eleições diretas para presidente da República foi abortada em famosa votação no Congresso, o afastamento de líderes ligados ao regime militar foi abortado com a elevação de José Sarney à Presidência do Brasil, seguido de Fernando Collor. Em todos esses processos não foi a sociedade brasileira que se mostrou fraca, mas o poder que se demonstrou suficientemente astuto para se perpetuar sob o manto da transformação. Falamos de uma ditadura que conseguiu permanecer no governo mesmo depois de seu fim, graças a uma manobra transformista que alçou o então PFL a fiador da República.
Da mesma forma, as Forças Armadas conseguiram criar a ilusão de ser um ator que deveria ser deixado em paz, sob o risco de maiores instabilidades institucionais. Essa lógica levou os primeiros governos realmente pós-ditadura (Fernando Henrique Cardoso e Lula) a nunca adotar uma política efetiva de criminalização da ditadura. Assim, chegamos em 2014 sem um torturador punido, sem um general obrigado a reconhecer a experiência terrível dos anos de chumbo.
Dentro desse quadro desolador, o governo Dilma Rousseff resolveu criar uma Comissão da Verdade, que deve entregar o relatório de suas atividades ainda neste ano. Composta de alguns nomes de inquestionável valor e dedicação, indivíduos com largo histórico de defesa dos direitos humanos e intervenções na mídia em favor de uma política efetiva de memória, a comissão teve condições mínimas de trabalho.
Dos sete integrantes iniciais, ela agora funciona com cinco. Mesmo ao levantar novos dados, principalmente a respeito da repressão no campo e contra indígenas, ela não conseguiu mobilizar a opinião pública, talvez por ter preferido não divulgar parcialmente resultados ou encaminhá-los diretamente às cortes internacionais de Justiça (pois as cortes brasileiras estão açodadas devido à decisão canalha do Supremo Tribunal Federal a respeito da perpetuação das leituras correntes a respeito da lei da anistia). Caso tivesse optado pela ampla divulgação e enviado os resultados às cortes internacionais, uma situação jurídica nova teria sido criada e obrigaria o governo a sair de sua política de minimização de conflitos. Foi graças a uma intervenção exterior, lembremos, que o Chile conseguiu, enfim, começar a enfrentar a brutalidade de seu passado. Se Augusto Pinochet não tivesse sido preso na Inglaterra por causa de um pedido do juiz espanhol Baltasar Garzón, há de se imaginar que o Chile estaria em situação muito diferente.
A Comissão da Verdade brasileira deveria assumir experiências de outras comissões e, ao menos, desenvolver um procedimento parecido àquele aplicado na África do Sul. Nesse caso, antigos funcionários do apartheid tiveram seus crimes perdoados se os confessassem abertamente diante das vítimas ou familiares das vítimas, pedindo publicamente perdão. Certamente, no Brasil, algo dessa natureza teria, neste momento, grande força, certamente muito maior do que aquela que o procedimento demonstrou na própria África do Sul. Pois, entre nós, o verdadeiro problema é interromper, de uma vez por todas, a violência produzida pela tentativa de jogar o sofrimento social do período militar à condição de inexistência.
Creio ser útil partilhar um fato pessoal. Depois de escrever um artigo a respeito da tendência de negação predominante em parte de nossa historiografia recente, com seu desejo de apagar os traços da ditadura, recebi uma mensagem singela de alguém que dizia que a ditadura não existiu para ele, cidadão ordeiro e trabalhador. Ela existiu apenas para os indivíduos que queriam transformar este país em uma nova União Soviética. Eu diria que ele tem razão. De fato, a ditadura não existiu para ele, pois esse senhor, como vários outros, fez parte da ditadura. Não haveria ditadura sem cidadãos como este, que hoje não temem em demonstrar claramente suas escolhas.
Não há ditadura sem um conjunto de “carrascos voluntários”, que, mesmo não trabalhando diretamente nos aparatos repressivos, atua indiretamente no suporte e na reprodução das justificativas de suas ações. Há de se apontar para os carrascos voluntários da ditadura brasileira. Por isso, o País nunca conseguirá encerrar o legado ditatorial sem um processo de culpabilização coletiva. Quem votou na Arena foi um carrasco voluntário da ditadura e há de se tratar tais indivíduos dessa forma. Muito mais gente deveria estar no banco dos réus. Pois devemos lembrar, mais uma vez: só há perdão quando há, do outro lado, reconhecimento do crime. Você não pode perdoar o que não existiu. Então, se para certas parcelas da população, a ditadura não existiu, não há razão alguma para perdoá-los. O Brasil segue e seguirá em conflito, como quem vive uma história em suspenso.
*É professor de Filosofia da USP e colunista de CartaCapital