Li bons textos sobre o assédio online e comportamentos invasivos, Jarid Arraes, blogueira querida aqui da Fórum, escreveu o melhor deles. Ela não menciona diretamente o caso Idelber onde algumas mulheres, cinco mais precisamente, incluindo duas menores decidiram denunciar o professor Idelber Avelar publicando prints dos diálogos e relatos num tumblr.
Quando soube na sexta à noite sobre o caso fui ler o tumblr. No primeiro relato me perguntava como as mulheres puderam se submeter àquela humilhação. Levei um puxão de orelha de minhas amigas e amigos feministas porque estava me tomando como parâmetro. Idelber jamais me mandaria um 'pirocopto' porque não me enquadro no perfil da mulheres que ele escolhia para o seu jogo sexual não consensual e invasivo.
Tenho diferenças com Idelber, há um bom tempo não o acompanho na rede. Desde 2010 travei alguns debates públicos com ele no Facebook, onde por várias vezes ele tentou dar carteirada acadêmica em assuntos que não dominava, seu anti-petismo chegou ao nível Veja. Houve inúmeras polêmicas onde Idelber protagonizou linchamentos morais, semelhantes ao que ele hoje está sofrendo por parte da rede. Nunca aprovei suas generalizações que invariavelmente serviam para atacar a blogosfera progressista. A gota d'água foi quando ele me acusou de plágio em um texto linkado (já que o texto foi postado como comentário num post de meu perfil do Facebook e eu não o seguia e foi assim linkado). Por todas essas diferenças me abstive de escrever um post pra além de um comentário no Facebook onde declarava que sua pavonice, seu autoritarismo desagradável fizeram com que eu não me surpreendesse muito quando vi as denúncias das mulheres assediadas. Seu discurso feminista no público não tinha espelho na prática quando queria determinar como mulheres com alguma relevância na rede deveriam se posicionar politicamente, por exemplo.
Não tive paciência e estômago para ler todos os prints e não param de chegar relatos ainda mais desconcertantes. Dos que li no sábado, achei as cantadas baratas e não consegui ver onde estava o apelo sexual daquele monte de bobagens. Jarid pontua o assédio online como crime, o envolvimento de menores e o aliciamento é agravante. De todo modo, no início as mulheres toparam o jogo e isso faz com que muitos ao analisar o caso criminalizem as mulheres já expostas ao máximo aos julgamentos e antes às humilhações do 'jogo sexual' do professor.
Quanto a Idelber, ele deletou seus perfis e não se posicionou. Discordo de todos que fazem linchamento público. O debate não pode descambar para isso. Parto do pressuposto que os relatos e prints são verdadeiros e há muitos outros que não são apenas das mulheres envolvidas, mas dos maridos ou ex-maridos.
Como não posso me colocar como parâmetro para as mulheres que denunciaram o assédio (acho que todas as mulheres e homens deveriam fazer o mesmo e não julgarem aquelas mulheres) gostaria de propor algumas leituras sobre o caso. Elas divergem e mostram a complexidade que envolve sentimentos, sexualidade, postura política, relações de poder, assédio, aliciamento e tantos outros elementos que saíram das quatro paredes para a Ágora virtual.
Lola escreveu o primeiro post, Mameha publicou no sábado, depois Cynthia e Túlio Vianna escreveram dois posts no Facebook, Lola os respondeu e Lucya Tobleronne também questionou Cynthia que escreveu uma tréplica e novamente Túlio Vianna respondeu às críticas de sua primeira postagem.
Ivana Bentes também deu sua opinião, Pablo Villaça, Pablo Ortellado, Niara de Oliveira se posicionaram.
Maria Clara Bubna, que foi perseguida pelo Constantino da Veja, expôs sua visão lembrando quando ela foi alvo de violação de privacidade, Daniela Lima chama a atenção para leituras legalistas que ignoram o central deste debate.
Resolvi trazer o texto do professor André Godinho que me parece fazer a síntese de boas intervenções que vi na rede sobre o caso, concordo com ele, mais que os campos da Justiça ou da moral, trata-se a meu ver de um descolamento absoluto entre o discurso público e a prática fora dos holofotes e em se tratando de um ativista trata-se de Ética e de política e deste debate não deveríamos nos furtar.
Atualização 1: Mais três textos com opiniões divergentes Karina Buhr da Carta Capital e os de Lívia Magalhães e Sabrina Fernandes em seus perfis do Facebook.
Atualização 2: em matéria de 02/12 em O Globo, na coluna de Ancelmo Goes, finalmente Idelber se pronuncia, por meio de advogados, nega o assédio, mas confirma que as meninas não mentem ao publicar os prints e relatos ao reconhecer a existência das conversas que segundo sua defesa foram "consensuais". A coluna de Mônica Bergamo também deu uma nota a respeito:
Por André Godinho
Sobre o caso do Idelber, tenho a dizer que não se trata de uma questão judiciária ou moral, mas ética e política.
Não sei se algo ali pode vir a configurar crime pelas leis vigentes, e nem acho que é isso que está em jogo. Acontece que são denúncias de práticas abusivas que, sendo crime ou não pelas leis de um Estado que serve acima de tudo aos interesses de opressores, devem ser respondidas sempre que ocorrem. A questão não é judiciária, mas ético-política. Não dá pra compactuar com práticas abusivas de quem ocupa espaços de militância, inclusive virtual, dentre outros motivos porque elas tornam esses espaços inseguros para as mulheres que (neste e em muitos outros casos) são os alvos desse tipo de abuso. Não se trata de expor "criminosos". Estes, a depender do crime (e especialmente se este não coloca o criminoso no papel do opressor), que sejam muito bem-vindos. Não se esqueçam que quem ocupa e resiste no campo e na cidade é para o nosso Estado criminoso, o mesmo para as mulheres que interrompem a gravidez. O modelo punitivista da justiça estatal não me parece parâmetro adequado para um debate ético-político. Com todas as suas formalidades e garantias constitucionais, incluindo a presunção de inocência, a justiça mantém há mais de um ano o Rafael Braga preso por porte de Pinho Sol.
Portanto, havendo ou não indícios de crime nas denúncias, o ponto que se coloca não é o criminal, mas o da presença do assédio, da manipulação, do uso e do abuso de privilégios sociais, etc. Autodefesa não é só fazer escudo pra encarar o choque, é também criar ambientes cada vez mais livres de opressão e nos quais se possa ter uma base de confiança. Autocrítica não é só fazer análise de experiências de organização e luta, é também reconhecer e combater os comportamentos opressivos que cada um de nós trazemos, especialmente aqueles que vêm de vivências privilegiadas. Ação direta não se pratica só em atos de rua, se pratica também em formas de lidar com opressões que não necessariamente passam pelos canais institucionais - e a exposição pública de opressões privadas é uma dessas formas. Uma forma de ação que a tecnologia facilita e que, como qualquer outra, está sujeita a erros a serem objetos também de autocrítica sempre que for o caso.
Pode ser uma perseguição injusta e mal-intencionada? Sempre pode ser, mas essa hipótese nunca, de maneira alguma, deve ser colocada antes das demais num caso em que quem expõe são pessoas em situação social (especialmente, neste caso, de gênero) desprivilegiadas. As palavras delas vêm primeiro e deslegitimá-las por princípio é silenciá-las e contribuir para perpetuar um ambiente tranquilo para todos os abusadores. Quem foi exposto não é alguém sem condições de contrapor as acusações, na verdade é precisamente o contrário: é alguém com domínio das linguagens socialmente aceitas e com projeção razoavelmente grande para ser ouvido por muita gente. Alguém que deve ser ouvido atentamente assim que se pronunciar a respeito. Não se trata nem de linchamento extra-judicial, nem de justiça estatal, e sim de autodefesa e de uma oportunidade de autocrítica para todos nós. Penso que para que seja isso, e para que não façamos disso um tribunal moral, importa tanto agir com cautela com relação aos desdobramentos da exposição quanto, principalmente, fazer um debate qualificado, que vá para além do indivíduo. E penso que isso vale pra todos os casos do tipo, pois o Idelber não é o primeiro nem será o último. Para um debate qualificado, uma das questões que se colocam é a da confusão entre o que há de fetiche e o que há de abuso nos diálogos expostos. Quer dizer, existem limites bem marcados entre práticas fetichistas/BDSMers e abuso. Limites que são debatidos e reconhecidos pelas comunidades praticantes dessas formas de expressão da sexualidade e que duvido que alguém com tanto acesso a bens culturais e residente nos EUA não tenha tido contato. Limites que em grande medida são simples decorrências da ética mais elementar que vale pra todo o resto do que diz respeito a sexualidade, pois seu fundamento central é o consentimento. Dito isso, tudo indica que o Idelber ultrapassou bastante esses limites. Portanto, é um erro atacar o fetiche para atingir o abuso. Essas coisas não se misturam, ainda que exista sim muito abuso entre fetichistas, como também existe entre não-fetichistas. Situar o problema aí, recriminando que ele fale em "marido corno", ou que use vocabulário escroto numa conversa sexual, dentre outras coisas, é errar feio o alvo. O problema aí é outro, é o assédio na abordagem, é o constrangimento com foto de pau não solicitada, é a manipulação de quem está entrando num jogo sem estar consciente de que jogo se trata, etc.
Resumindo, o problema é que não é consensual porque pra ser consensual não basta a pessoa dar continuidade à conversa. É preciso, dentre outras coisas, que haja interesse de todos os envolvidos em participar de um jogo sexual, seja real ou virtual, e que este interesse não seja manipulado através da exploração das fragilidades das pessoas. A conversa suja em si, por mais suja que seja (e conversas bem mais sujas que essas podem não ter absolutamente nada de abusivas) não é o que desqualifica o cara. Se fosse esta a questão seria puro moralismo, pura inquisição. Então se trata de separar o abuso, de combater o abuso, porque a confusão entre abuso e fetiche só serve para que abusadores usem fetiche de fachada e para que fetichistas/BDSMers sejam recriminados sem terem cometido abuso algum.
Entendo, portanto, que a exposição do assédio pelas duas mulheres se coloca numa esfera que não é nem a judicial nem a moral, mas de natureza ética e política. Sendo que a questão colocada nos relatos é sobretudo a da consensualidade, que no meio da treta muitas vezes é reduzida à opção dessas mulheres em continuar ou não conversando com ele - uma das muitas variantes da culpabilização da vítima. Só que consensualidade não é só isso. Para não serem opressivas e abusivas, as práticas sexuais podem escapar a normas morais estabelecidas, mas não podem ignorar questões éticas, o que é bem diferente. Os relatos indicam se tratar de jogos recorrentes nos quais as regras não são claras para as mulheres envolvidas, que são abordadas de forma abusiva e que são manipuladas por alguém que usa privilégios sociais para explorar suas fragilidades. Se fosse apenas conversa suja, mesmo que muito suja, entre duas pessoas adultas, cada qual buscando seu prazer, daria pra falar em tribunal moral. Mas não é o caso, o caso é de autodefesa das mulheres e de necessidade de autocrítica para todos nós. Nenhuma dessas questões se esgotam neste caso e espero que ele sirva para o aprendizado de todos.