- foto extraída do Documentário Hiato
Por Renam Brandão e Olavo Carneiro, especial para o Maria Frô
Os rolezinhos, grandes encontros marcados por adolescentes da periferia em shoppings centers, entraram na pauta política nacional, com direito a matérias na grande imprensa e análises sociológicas. O assunto foi alvo também de iniciativas governamentais, com prefeitos, governadores e ministros conversando com as associações dos shoppings para tomar "medidas".
Este fenômeno social não é totalmente original. No ano 2000, sem-tetos no Rio de Janeiro promoveram o que hoje podemos chamar de rolezinhos, e o ato foi objeto de documentário (http://www.youtube.com/watch?v=UHJmUPeDYdg).
Contudo, enquanto os sem-teto cariocas organizaram uma ação política pensada e planejada para denunciar as desigualdades sociais, os atuais rolezinhos surgiram em São Paulo com jovens combinando nas redes sociais encontros que se tornaram enormes.
Esta juventude da era PT na Presidência da República, que está imersa na internet e inserida no consumo de massa, não tinha como foco o protesto ou a manifestação.
A manifestação moderna é caracterizada pelo sociólogo francês Patrick Champagne como uma “ocupação temporária, com finalidade demonstrativa, do espaço público urbano”, ou como um tipo de mobilização onde se busca chamar a atenção dos agentes do campo político para os seus problemas pela expressão de uma opinião política, através de um repertório de técnicas,
[...] utilizadas para subverter o espaço sonoro da cidade (cantos, gritos, ritmos, sonorização e animadores que lançam por alto-falante determinados slogans que são retomados pelos manifestantes, etc.) e o espaço visual habitual da rua (objetos inesperados ou insólitos tais como tratores ou gado nas cidades, disfarces, etc.) com o objetivo de chamar a atenção dos citadinos e transformá-los em espectadores de um conflito. (CHAMPAGNE 1996:190).O sociólogo entende como opinião política a tomada de posição pública que visa a ser normativa e ter a possibilidade de se impor a todos a fim de se tornar a opinião oficial. Os rolezinhos não buscavam nenhuma normatização, esta juventude queria se encontrar.
Em sua expressão primeira os rolezinhos se parecem mais com o que Patrick Champagne caracteriza como manifestações de primeiro grau - manifestações ‘para si’ de grupos reais em que cada participante limita-se a representar a si mesmo.
Ressalvando que nem toda manifestação ocorre no espaço "urbano", como bem demonstra nossa persistente questão agrária (que hoje aparece mais fortemente como dimensão ambiental e social), os rolezinhoss não tinham a finalidade de chamar a atenção do conjunto da sociedade para um conflito, ainda que existam ali latentes conflitos de distintas naturezas conexas, que ganham contornos claros e visibilidade justamente com a reação das nossas elites. É uma boa síntese dizer que os rolês possuem conotação política não planejada.
É cedo para percebermos se há e qual seria a relação entre os rolezinhos e as manifestações de junho de 2013 - estas inaugurando no Brasil a inovação das ações coletivas do século XXI em que as redes sociais convocam mobilizações, assim secundarizando as formas tradicionais de mobilização e organização da população (sindicatos, partidos, movimentos sociais). Essa inauguração foi possível pela melhoria nas condições de consumo que deu aos jovens brasileiros acesso a aparelhos eletrônicos e, consequentemente, o direito de fazer parte de redes sem intermediários clássicos.
Os eventos de 2000 e de 2013 guardam com os rolezinhos a diferença de serem deliberadamente protestos em seu nascedouro, ou conforme Champagne, manifestações de segundo grau - que visam efeito demonstração e atenção da sociedade como um todo.
Em comum entre os rolezinhoss, manifestações de junho de 2013 e a visita dos sem-teto em 2000 se vê a discriminação e o preconceito de classe e cor, tão marcantes e enraizadas em nossa sociedade. Preconceito que alimenta o autoritarismo da nossa sociedade, sempre expresso na forma de atuação das PMs e, no caso dos rolezinhos, de forma direta pelos empresários do comércio. Para as classes dominantes, povão reunido - que não seja para futebol, festa e seus golpes de Estado - precisa ser reprimido.
Assim como as manifestações de junho de 2013, a truculência e a discriminação aos rolezinhos geraram a solidariedade que engrossou novos rolês. Foi a reação, mais uma vez, da burguesia, que abriu a possibilidade de politizar (compreensão das inaceitáveis diferenças econômicas, sociais e culturais) nossa juventude e a sociedade brasileira, pois escancarou os divergentes interesses materiais e simbólicos.
Impedir os rolezinhos é de certo modo dizer que ali não é o lugar dessa juventude da periferia, com sua linguagem própria e valores distintos dos cultivados nos "templos de consumo". Corroborando Jessé Souza[1], o rolezinho se tornou um problema sério e ameaçador quando rompeu "as linhas de demarcação implícitas do nosso apartheid real, ainda que não legal. E as classes populares passam a fazer de conta que não sabem qual é seu lugar. É isso que confere caráter político a essas aparentes brincadeiras de jovens da periferia. Eles ameaçam a fronteira de classes, vivida por todos nós de modo implícito."
Também reforça o que é o capitalismo e a sociedade de classes, lembrando que nem tudo o que é produzido é para todos, na mesma qualidade e no mesmo local. É a sociedade da distinção (Bourdieu, 2007) atenuada pela viabilização do consumo massificado, mas ainda extremamente hierarquizada e segmentada. Nossas classes sociais, inclusive as elites e a classe média, se definem e se hierarquizam entre si pelo consumo material, e as classes populares só desenvolvem uma distância crítica em relação ao consumo em circunstâncias excepcionais, observa Jessé Souza[2].
Importante dizer que cabe aos partidos de esquerda e aos governos encabeçados por eles um papel de destaque nessa politização e não a função de conciliação do que não pode ser conciliado – a não ser como farsa, onde um lado acaba por se submeter ao outro. É mais uma ótima oportunidade para se enfrentar problemas concretos, como a questão da (des)militarização das polícias e o debate ideológico da propriedade privada. Evidenciando que no caso da polícia a questão não é ela em si, mas nossas profundas desigualdades sociais que criam a cultura de violência e a polícia que temos.
Na disputa cultural (politização) que as esquerdas devem travar constantemente, pois, para transformar de verdade nosso país e não apenas "melhorar a vida do povo", os rolezinhos também colocam a questão da identidade e explicitam o grande equívoco teórico e político de atribuir a categoria classe média aos trabalhadores que ascenderam economicamente no período Lula-Dilma.
O momento é mais uma oportunidade para o governo e o PT confrontarem representações seculares no Brasil, notadamente uma noção de representação como elaboração e imposição de uma dada visão de mundo social capaz de obter a adesão do maior número possível de cidadãos e que busca a conquista de poderes e privilégios, como nos diz Bourdieu (1998). O semblante das vendedoras e vendedores no documentário sobre a visita dos sem-teto em 2000 e a adesão incondicional ao consumo por parte das classes populares dá a dimensão da necessidade da luta ideológica acompanhando as medidas de superação de desigualdades materiais. Nenhuma experiência de transformação profunda ocorreu sem alteração de consciência coletiva.
Jessé Souza[3] sintetiza bem este desafio: "Ainda que a classe média - e suas frações mais conservadoras - não decida mais eleições majoritárias no Brasil, é ela que detém a hegemonia política e cultural e influencia não só amplos setores das próprias classes populares, mas também decide o que é julgado nos tribunais, o que é publicado nos jornais, dito na TV e o que é discutido nas universidades. Ela domina a esfera pública que decide o que é certo e errado na prática cotidiana real e é por isso que temos uma agenda de 'políticas públicas informais' que inclui, por exemplo, matança indiscriminada e violência contra os pobres sem que ninguém - salvo em exceções dramatizadas pela mídia como o caso de Amarildo no Rio - seja responsabilizado."
Os trabalhadores que melhoraram de vida não se reconhecem como classe média e não são reconhecidos por ela. Como bem assinala André Singer, "segmentos de classe média têm reagido com verdadeiro ódio às tímidas mudanças do último decênio. Uma atitude segregacionista, que estava encoberta pela relativa passividade dos dominados, veio à tona quando os estratos antes excluídos começaram a ocupar aeroportos, frequentar clínicas dentárias e a encher as ruas de carros." [4].
A truculência e intolerância aos rolezinhos revelam como é crível falar de classe social, no sentido abordado por Thompson, onde a classe se dá na articulação de identidades de interesses entre indivíduos com experiências comuns: “A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus.” (THOMPSON 2004:10).
Os rolezinhos se tornaram um momento de um processo do fazer-se classe. Jovens da periferia em suas experiências comuns, antagonizados pelas classes dominantes e médias, se deparam de forma mais explícita com o seu lugar nas relações de classes de nossa sociedade.
Do ponto de vista da iniciativa do poder público é correto defender o diálogo, mas isto não pode se tornar cortina de fumaça para a inércia ou a adoção dissimulada dos interesses das elites. E quando esse poder público está sob condução, ainda que parcial, das forças políticas de esquerda, seu protagonismo deve se dar em todas as dimensões da vida social (econômica, cultural, ideológica), fortalecendo as perspectivas de superação das relações de dominação.
Bibliografia citada:
Bourdieu, P. (1998) O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.
Bourdieu, P. (2007) A distinção: crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre, RS: Zouk.
Champagne, P. (1996) Formar Opinião: o novo jogo político. Petrópolis: Editora Vozes.
Thompson, E. (2004) A formação da classe operária inglesa: a árvore da liberdade. Rio de janeiro:Paz e Terra (4ª Ed.).
Olavo Carneiro - doutorando no CPDA/UFRRJ e assessor do senador Lindbergh Farias (olavorio2002@gmail.com)
Renam Brandão - membro do Diretório Estadual do PT-RJ (renam.brandao@gmail.com)
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