O XI de Agosto - Gestão Coletivo Contraponto fez uma Carta Aberta sobre a questão do presídio de Pedrinhas, a situação carcerária brasileira e sobre o Maranhão.
A carta foi assinada por diversos movimentos sociais - como Mães de maio, Uneafro e a Une - intelectuais e personalidades da sociedade civil.
Foto: PCOPedrinhas, o Maranhão e a Tragédia Carcerária Brasileira
A deflagração das 62 mortes ocorridas no presídio maranhense de Pedrinhas desde o ano passado abalou a opinião pública e foi pauta de inúmeras chamadas midiáticas nas últimas semanas. Para além do foco na crueldade dos presidiários que se pretendeu privilegiar em diversos veículos de comunicação, tornam-se imperativas reflexões mais amplas e aprofundadas sobre a calamidade da qual não escapa o atual sistema penitenciário brasileiro.
Pedrinhas, que contava com uma superpopulação de 2.186 detentos (mais de 400 além de sua capacidade de 1770) não é exceção no cenário brasileiro. O Brasil, que possui a terceira população carcerária do mundo e cujo índice de crescimento do número de encarcerados é o maior verificado atualmente, possui como marca a superlotação generalizada de suas unidades prisionais, acrescido de um sem limite de precariedades institucionais.
Nesse cenário, não é de se espantar que se repitam periodicamente massacres e tragédias dentro de tais unidades. Passados vinte e um anos do evento conhecido por “Massacre do Carandiru”, que ocasionou a morte de 111 presos, as penosas condições que assolavam a ampla maioria dos presídios brasileiros não apenas não obtiveram significante melhora, como, pelo contrário, agravaram-se. E contamos, hoje, com uma população carcerária de mais de meio milhão de pessoas, sendo que destas, mais de 1/3 sequer obteve uma condenação pelo ilícito que lhes é imputado.
Consequência disso é que a suposta função ressocializadora do sistema penitenciário, a qual paradoxalmente seria feita ao largo do convívio em sociedade, torna-se escancaradamente falha: mais de 60% dos presos primários retornam à prisão, o que significa um dos índices de reincidência mais altos do planeta. Com respostas pouco ou nada eficientes na contenção de ilícitos pelo Estado, não é de hoje, portanto, que a estrutura de um sistema criminal calcado no encarceramento das massas vem ruindo.
Em momento algum se questiona a lógica do encarceramento ou suas prováveis consequências: ao contrário, quando estas são escancaradas em episódios como o de Pedrinhas, ecoa o silêncio das autoridades, como o do Ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, que até o momento sequer se posicionou sobre a situação. Dados da ONU mostraram que dos 550 mil presos do país, 217 mil estão presos em caráter provisório. Soma-se a isso o fato de que boa parte dos detentos condenados ao regime aberto ou semiaberto cumpre a pena em regime fechado, o que contribui --e muito-- para o quadro de superlotação dos presídios.
Ao apostar na ostensiva contenção de setores marginalizados, o Estado é responsável pela produção de uma crescente população carcerária, o que inevitavelmente leva a uma também crescente demanda de criação de novos presídios. E não por mera conveniência, a privatização do cárcere surge como solução atrativa para a construção e prestação dos serviços nas unidades. Não à toa o Estado do Maranhão, chefiado por Roseana Sarney, destinou R$74 milhões de reais à terceirização ilícita de mão-de-obra nos presídios do estado em 2012.
Além do Maranhão, Estados como São Paulo e Minas Gerais já contam com unidades prisionais geridas pela iniciativa privada. O custo de um preso ou presa varia entre 2 a 4 mil reais mensais para os governos. Custo caro. O Paraná, por exemplo, desistiu do modelo adotado no presídio de Guarapuava ao constatar um aumento de quase 80% nos custos. Expor a questão em termos econômicos é importante para desfazer o mito de que a privatização das unidades prisionais acarreta diminuição de custos para o Estado, mas, para além disso, é preciso atentar para o fato de que a criação de novos presídios ou a privatização não deve ser a diretriz principal no combate à superlotação e ao caos penitenciário brasileiro.
Além disso, a inserção das penitenciárias na lógica de mercado se converge em mais uma forma de desumanização do detento, contribuindo para o quadro de violações de direitos individuais. A grande aprovação da sociedade à severidade punitiva faz da prisão o local em que se materializa não só a punição, como a vingança. E, nas sistemáticas violações aos direitos humanos, torna-se palco de exceção à legalidade.
A invisibilização constante das situações de barbárie presenciadas no cotidiano das cadeias, em que os setores marginalizados seguem sendo o alvo preferencial de nossa política de segurança pública, tem como pano de fundo a demonização de um perfil idealizado do agente criminoso. Quem encarna a figura do “bandido” pertence à parcela da sociedade que só entra no sistema jurídico enquanto réu, reincidente, criminoso; e não como sujeito de direitos.
Negros compõem 60% da população carcerária brasileira, 58% são de jovens entre 18 e 29 anos e 77% não passaram do ensino fundamental, o que mostra o presídio como verdadeiro mecanismo de detenção criminalização da população pobre, jovem e negra. Nesse sentido, cabe ressaltar a dificuldade dos mais pobres em ter acesso à assistência jurídica, quadro que também concorre para a ocorrência de rebeliões internas com vistas a exigir melhores condições para o cumprimento das penas.
O sistema carcerário brasileiro é inegavelmente falido, inflado, e incapaz de suportar a grande demanda e de realizar os seus propósitos de ressocialização.Muito pelo contrário, tais ambientes hoje são, na realidade, berços e oportunidades de aperfeiçoamento de esquemas criminosos.Muito embora o cenário seja de esgotamento, o que se observa é uma cruzada cada vez maior por mais encarceramento e um injustificável recrudescimento da máxima segundo a qual "bandido bom é bandido morto". Questões nevrálgicas como o excesso de presos em caráter provisório, a privatização de presídios e a política de drogas são apenas alguns pontos nos quais deve se debruçar qualquer um que queira propor soluções para o novelo de problemas que a política de encarceramento do Brasil virou.
Maranhão: um caso particular
A tragédia em pedrinhas adquire também contornos especialmente diferenciados por se tratar do Maranhão. Esse estado possui o segundo pior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), a menor expectativa de vida e as mais altas taxas de mortalidade infantil dentre todos os estados brasileiros.Dentre as principais causas para tamanha tragédia social, podemos destacar o fato de que ele é governado desde 1965 por uma oligarquia liderada pelo ex-presidente da República José Sarney. Mesmo com a derrota eleitoral daquele grupo em 2006 para Jackson Lago, o grupo oligarca conseguiu se manter no poder a partir da cassação do então governador pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) num processo político totalmente questionável.
Vale ressaltar que desde que iniciou sua carreira política, José Sarney apoiou praticamente todos os governos de nosso país. Foi presidente do Senado durante a ditadura militar, presidente do partido governista ARENA e, também, vice-presidente de Tancredo Neves, chapa oposicionista, em meados dos anos 1980. Apoiou posteriormente os governos civis de Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma Rousseff, presidindo o Congresso Nacional nestes períodos.
Dentre as principais características da oligarquia Sarney destaca-se o poder econômico e midiático.José Sarney é proprietário da Rede Mirante de Televisão, que reúne seis afiliadas da TV Globo, além de emissoras de rádio e jornais.Essa propriedade cruzada de meios de comunicação é um dos principais motivos de sua força política. Uma das principais características de seu período na presidência da República inclusive foi a distribuição de concessões de rádio e televisão para seus aliados em todo o país. Assim, figuras como Jader Barbalho, Antônio Carlos Magalhães e Edson Lobão tornaram-se donos de emissoras de TV naquele período.
O Maranhão é um exemplo emblemático da necessidade de transformações mais estruturais em nosso país.É prova inequívoca da necessidade de uma Reforma Política que a partir do financiamento público de campanha rompa com o domínio do poder econômico nos processos eleitorais. Também nos mostra a necessidade de democratizarmos as concessões de rádio e TV, bem como a necessidade de proibição da propriedade cruzada de meios de comunicação, que cria enormes concentrações e impérios midiáticos cuja funcionalidade é claramente manipuladora e autoritária.
O que se viu em Pedrinhas serviu para reacender discussões de fundo sobre como o domínio político e econômico das oligarquias é um ponto fulcral de todo o quadro de desigualdade que culmina com a seleção da clientela do direito penal. Repensar As desigualdades sociais e a política carcerária brasileira é quebrar a sazonalidade das tragédias que se repetem nas penitenciárias ao longo da história recente do nosso país, para que Carandirú e Pedrinhas sejam retratos de um passado superado pelo sistema prisional brasileiro. SUBSCREVEM ESTE DOCUMENTO ? Entidades, organizações e movimentos sociais: UNE – União Nacional dos Estudantes UEE-SP – União Estadual dos Estudantes de São Paulo AMPARAR – Associação de Amigas/os e Familiares de Presas/os CAER – Centro Acadêmico Emílio Ribas (Faculdade de Saúde Pública da USP) Clínica de Direitos Humanos Luiz Gama (Faculdade de Direito da USP) Coletivo Feminista Dandara (Faculdade de Direito da USP) Departamento Jurídico do XI de Agosto (Faculdade de Direito da USP) Diversitas – Núcleo de Estudo das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos (USP) GDUCC – Grupo de Diálogo Universidade-Cárcere-Comunidade (Faculdade de Direito da USP) Movimento Mães de Maio Movimento Negro Unificado NEI – Núcleo de Estudos Internacionais (Faculdade de Direito da USP) SASP – Sindicato dos Advogados do Estado de São Paulo UNEAfro Brasil – União de Núcleos de Estudo Popular para Negras/os e Classe Trabalhadora ? Juristas, professores/as e personalidades: Alexandre Pariol Filho, diretor do SINTUSP – Sindicato dos Trabalhadores da USP. Alysson Leandro Mascaro, professor da Faculdade de Direito da USP. Amélia Cohn, socióloga, professora da Faculdade de Medicina da USP. Antonio Carlos Morato, professor da Faculdade de Direito da USP. Balmes Vega Garcia, professor da Faculdade de Direito da USP. Carlos Bacellar, professor do Departamento de História da FFLCH-USP. Celso Fernandes Campilongo, professor da Faculdade de Direito da USP. Clarice Cohn, antropóloga, professora da UFSCar. Conceição Oliveira, blog Maria Frô Conrado Hübner Mendes, professor da Faculdade de Direito da USP. Diogo Coutinho, professor da Faculdade de Direito da USP. Douglas Belchior, professor de História e blogueiro. Elizabeth Balbachevsky, professora do Departamento de Ciência Política da FFLCH-USP. Elza Boiteux, professora da Faculdade de Direito da USP. Emir Sáder, sociólogo, professor da UERJ. Ermínia Maricato, professora da FAU-USP. Gabriel Cohn, professor do Departamento de Ciência Política da FFLCH-USP. Gilberto Bercovici, professor da Faculdade de Direito da USP. Jorge Luís Souto Maior, professor da Faculdade de Direito da USP. Laurindo Dias Minhoto, professor do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP. Lincoln Secco, professor do Departamento de História da FFLCH-USP. Marco Zingano, professor do Departamento de Filosofia da FFLCH-USP. Marcus Orione, professor da Faculdade de Direito da USP. Maria Lêda Oliveira, professora do Departamento de História da FFLCH-USP. Pedro Serrano, professor da Faculdade de Direito da PUC-SP. Pedro Vieira Abramovay, ex-Secretário Nacional de Justiça e ex-presidente do CA XI de Agosto. Ricardo Musse, professor do Departamento de Sociologia da FFLCH-USP. Roberto Quiroga Mosquera, professor da Faculdade de Direito da USP. Rossana Rocha Reis, professora do Departamento de Ciência Política da FFLCH-USP. Samuel Barbosa, professor da Faculdade de Direito da USP. Sérgio Cohn, poeta e editor. Sérgio Salomão Shecaira, professor da Faculdade de Direito da USP. Sheila Neder, professora da Faculdade de Direito da USP. Otávio Pinto e Silva, professor da Faculdade de Direito da USP. Zilda Iokoi, professora do Departamento de História da FFLCH-USP
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