"La Iglesia dice: El cuerpo es una culpa. La ciencia dice. El cuerpo es una máquina. La publicidad dice: El cuerpo es un negocio. El cuerpo dice: Yo soy una fiesta" - Eduardo Galeano
Fiquei espantada ontem do quanto o episódio do casal nu performático da Marcha das Vadias e o beijo gay na JMJ (que se destaque o beijo parece ter chocado bem menos os olhos moralistas que a quebra de santos e a dessacralização das estátuas em performances com corpos nus) escandalizaram a comunidade à esquerda e à direita no Facebook.
Espantada por ver que até os fatos mais básicos foram ignorados no repúdio em comoção aos 'ataques' aos 'católicos' (como se questionar a instituição católica fosse um ataque direto às pessoas que se autodeclaram católicas). Vejamos: 300 árvores centenárias foram abatidas sem autorização do poder municipal (com a justificativa que estavam com cupim e coincidentemente todas elas ficavam na área da tal da construção no campo de Guaratiba que consumiu milhões dos cofres públicos e não aguentou dois dias de chuva, inviabilizando inclusive receber os peregrinos para o evento) o que fez que a desastrada e incompetente organização da JMJ transferisse o evento para Copacabana (e o inconsequente do Paes permitisse), local reservado há meses para na mesma data ocorrer a Marcha das Vadias. Portanto, houve sim um fato inconstitucional e ele não foi provocado pela Marcha.
"Constituição Federal de 1988 Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: XVI - todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente."
Aliás, a Marcha deve ser inclusive parabenizada pela abnegação de não estimularem o confronto. Ao serem desrespeitadas constitucionalmente pela organização da JMJ e pela prefeitura do Rio decidiram ir em direção contrária a dos peregrinos.
Quando lemos até mesmo a mídia tradicional como a matéria linkada acima percebemos o quanto o ato do casal foi isolado a ponto de vários peregrinos que cruzaram com a Marcha tirarem até foto com os manifestantes e vice-versa. Quando nos damos ao trabalho de ler o relato de participantes da Marcha (Sobre santas quebradas e violência) sabemos que mesmo para os participantes da Marcha o fato não foi apenas isolado ele era desconhecido até a autora chegar em casa e ler a rede! No entanto, o moralismo de uns e machismo de outros foram capazes de generalizar a desqualificação para toda a marcha e à luta da juventude feminista. Foram capazes de desviar o debate sobre o que de fato está em jogo em nosso país: o enfrentamento de um fundamentalismo crescente, organizado na bancada religiosa que vota leis esdrúxulas, que além de não avançar em favor dos direitos das mulheres e LGBT propõem leis ainda mais retrógradas que pretendem retirar o mínimo que a luta do combate ao machismo avançou. Essa bancada fundamentalista com seus negócios, tvs e rádios querem aprovar, por exemplo, o estatuto do nascituro que fere direitos já estabelecidos em lei como o que garante à mulher que sofre a violência do estupro fazer aborto caso engravide pelo SUS, com direito a ser tratada com dignidade e sem preconceitos e não ser presa por isso.
Um dos aspectos interessantes da marcha das vadias na minha opinião é que sua horizontalidade e irreverência atrai jovens do sexo masculino solidários à luta feminista. Nas marchas das vadias não é incomum a presença de namorados, maridos, irmãos e amigos heteros e gays junto às jovens 'vadias'. O último post da Marcha das Vadias do blog Maria Frô foi escrito por Rony Marques, um jovem e talentoso estudante de jornalismo. É muito bacana a forma delicada e respeitosa que ele foi capaz de abordar o tema, veja aqui, aqui.
Marcha das Vadias SP, junho 2013. Foto Rony Marques.Transformar uma sociedade doente em uma sociedade que não ache que seja culpa da mulher o estupro, que não a responsabilize pelo seu espancamento praticado por namorados e maridos ciumentos e até por serem mortas por seus companheiros necessita que também os homens compreendam a importância da luta das mulheres pelo controle de seus próprios corpos.
Eu sei que diferentes identidades se sobrepõem em diferentes lutas. Sou do time das feministas que virou mexeu trás para o debate a questão de classe e de raça que sei não podem ser apartadas do debate da luta contra a opressão machista. Mas a Marcha das Vadias não ignora estas questões, longe disso!
Mas achei bastante infelizes e deslocadas as críticas à luta da marcha das vadias vindas de diferentes cantos. As publicadas no texto da Afropress, por exemplo, como se o fato de o movimento ter nascido no Canadá desqualificasse-o de algum modo. Os trabalhadores brasileiros não deveriam ter como dia de luta o 1º de maio? Ou nós brasileiras deveríamos também ignorar o 8 de março? Não aprendemos, nós da esquerda, que a luta contra toda forma de opressão é internacional?
Duas pessoas e sua performances não podem servir pra desclassificar a luta das meninas da marcha das vadias, um movimento horizontal desde o seu primeiro ato. Como bem lembra minha querida amiga, a professora Tânia, aos que se ofendem com a quebra de ídolos de gesso, a CNBB, seus bispos e a Igreja Católica no mundo todo são campeões em nos ofender: Arcebispo espanhol justifica estupro de mulheres que fazem aborto; Bispo de Guarulhos, responda-nos: que fé é esta que prega ódio, desrespeito? Dilma tem até 5ª para sancionar lei sobre vítimas de violência sexual- A proposta trata da "profilaxia de gravidez", ponto considerado polêmico por entidades religiosas, que se mobilizam para pedir vetos ao projeto; CNBB apoia veto parcial a projeto de lei sobre violência sexual.
Ouvi argumentos que condenavam a intolerância. Eu confesso a minha imensa antipatia pelo termo 'tolerância' e seus derivados. Quem tolera estabelece uma relação de poder. Não é que o tolerante aceite o outro em todo o seu direito de existir em sua plenitude, o tolerante parte do princípio que seus valores são o padrão e ele permite que o outro viva a sua 'diferença'.
O que grupos excluídos e que lutam por empoderamento que lhe permitirá no caso das mulheres decidir o que fazer com o próprio corpo sem que com isso seja presa ou espancada (ou até mesmo morta) ou aos LGBT decidirem sobre sua própria vida sexual, sua forma de ser e estar no mundo, sua identidade sexual querem, exigem e tem direito de ter é respeito! Respeito como cidadãos, nada além da Constituição, ser tratados com a igualdade prometida no artigo 5º. Mas sabemos que no Brasil de uma lei votada a uma lei aplicada e assim garantida pelo Estado, há uma grande distância, quem dirá aos que sequer conseguem aprovar leis que tornem crimes de ódio crimes hediondos? Mais uma vez a professora Tânia num caloroso debate ontem no Facebook nos lembra que o discurso legalista faz com que as pessoas argumentem sobre as leis como se a garantia da aplicação delas fosse do cidadão e não do Estado e completa:
A mesma lei que garante a liberdade de culto aos religiosos, também garante a minha liberdade de não ser religiosa. Se a ICAR pode ir para a rua pregar os seus princípios que combatem meu ateísmo, tenho eu o mesmo direito de ir para a rua pregar os meus princípios que combatem a religião. O Estado deve garantir ambos os direitos. Quando alguém evoca a lei por ter seus direitos ofendidos ( em um confronto livre de ideias), na verdade está (embora não perceba isso) evocando a força repressiva do Estado contra o pensamento oposto.
O grande problema que vi em várias críticas mesmo entre as bem intencionadas vindas da esquerda guardam semelhanças com a maior parte das críticas da esquerda aos atos da juventude nas jornadas de junho: uma incompreensão diante das novas formas de luta dos mais jovens que inicialmente leva a negação e a desqualificação destas lutas.
No caso do texto da Rosiane Rodrigues: Feministas "tipo importação", publicado pela Afropress, cheio de verdades sobre a realidade da mulher pobre, negra em nosso país, mas com um ranço completamente desnecessário em relação às jovens da Marcha das Vadias.
De fato, são inegáveis os sérios problemas de duplas, triplas violências que os grupos mais excluídos, especialmente a base da pirâmide social brasileira - a mulher negra e seus filhos - estão submetidos. Mas o fato das questões de classe e de raça não poderem estar ausentes da luta pela libertação da mulher não torna a marcha das vadias uma luta ilegítima. Quem disse que as jovens da Marcha das Vadias são alienadas e desconhecem a realidade criminosa da mortandade materna que ceifa vida principalmente das mais pobres e em sua maioria negra?
A maioria das jovens que conheço participantes da marcha tem na ponta da língua os dados escabrosos sobre o quanto o machismo mata não apenas pelo feminicídio, mas por manter o criminoso controle sobre corpos femininos no código das leis e na ausência de políticas públicas que atendam a mulher que decida pelo aborto, por exemplo. Marcha das Vadias SP, junho 2013. Foto Rony Marques.
O moralismo sobre a forma com que se vestem algumas das manifestantes (ou como se despem) não me parece um bom argumento e a meu ver fazer uso dele para desqualificar o movimento mesmo que implicitamente é usar da mesma arma machista do opressor que combatemos.
Que me desculpem minhas amigas e amigos cristãos e cristãs e de outras religiões ou que mesmo sem perceber deixaram se afetar por dois milênios de dominação e buscaram num falso relativismo condenar um movimento que vem forçando o debate numa sociedade cínica que varre sempre para debaixo do tapete seu falso moralismo, seu machismo, sua homofobia, seu racismo e tantos outros preconceitos, mas eu escolho os argumentos das feministas que resolveram enfrentar até mesmo a antipatia dos mais próximos e dos que dizem combater o machismo. Destaco especialmente o texto de Mary W: Ui, quebraram a santa, mas há também este: Quebrar santos: liberdade religiosa e outros elefantes brancos, este: SOBRE SANTAS E VADIAS... e os já citados.
Sei bem o que é lidar com o moralismo tosco dos que se incomodam com seios nus (das Marchas das Vadias ou das mães que amamentam) nas redes sociais, mas não fazem nada em relação ao racismo, à homofobia, ao sexismo criminosos que abundam nas mesmas redes. Há mais de seis meses o blog Maria Frô foi censurado pelo Google por enfrentar moralismo tosco: FACEBURKA CENSURA PERFIL DE FOTÓGRAFA DA MARCHA DAS VADIAS; Depois do Faceburka, agora o Google sem senso quer censurar as fotos da marcha das vadias; MARIA FRO CONTINUA SOB CENSURA DO GOOGLE ADSENSE.
Para encerrar fecho com o primeiro comentário que li sobre o que indignou as pessoas no Facebook ontem, para o meu grande espanto, porque ao findar um dia pra lá de desgastante com o intenso debate que prosseguiu na minha TL o pequeno texto de Bárbara Araújo Machado continuou fazendo todo sentido: Marcha das Vadias SP, junho 2013. Foto Rony Marques.
Tá difícil sentir compaixão pelos santos de barro e pelas pessoas religiosas que sentiram ofendidas ao vê-las sendo quebradas. Os santos não são agredidos na rua e mortos por playboys homofóbicos, eles não são culpados quando são estuprados por causa da roupa que vestem, eles não morrem em clínicas de aborto clandestinas e nem são criminalizados por interromper a gravidez, eles não são obrigados pelo Estado a ter um filho que foi fruto de um estupro. A instituição Igreja Católica está apoiando que quebrem os nossos corpos e as nossas vidas há muito mais tempo."
Atualização: Bárbara acabou escrevendo um texto mais amplo no Blogueiras Feministas: Marcha das Vadias do Rio de Janeiro: os santos que nos tem quebrado