A tragédia em Santa Maria e a lógica do capitalismo
Victor Farinelli
No dia 1º do agosto de 2004, em Assunção do Paraguai, uma seção inteira do supermercado Ycuá Bolaños foi consumida, em questão de minutos, por um fogo do qual ninguém soube constatar a origem. Com a mesma velocidade com que as chamas se alastravam, o pânico dominava as cerca de 900 pessoas que tentaram fugir do local, mas se encontraram com uma trágica surpresa: as saídas de emergência, suficientes para salvar a vida da maioria das pessoas ali presentes, haviam sido bloqueadas. Os donos do local alegaram que a medida visava impedir roubos e fuga de clientes que não pagaram por seus produtos. Foram 426 mortos e 510 feridos, dos quais 321 tiveram graves sequelas físicas.
No último dia daquele mesmo 2004, a mesma lógica seria adotada, em um episódio cruelmente idêntico ao que se viu em Santa Maria, neste último e triste fim de semana. Era véspera de ano novo em Buenos Aires, e dentro da discoteca República de Cromañón, cuja capacidade era de 1,3 mil, havia mais de três mil pessoas, para o show da banda Callejeros. Os fogos artificiais em contato com o material inflamável do teto gerou a mesma fumaça tóxica que se espalhou rapidamente. A boate tinha seis vias de escape, mas quatro delas estavam trancadas com cadeado. A saída principal era uma porta dupla que estava aberta só de um lado, e custodiada por seguranças, a outra se manteve fechada para evitar a fuga dos que queriam sair sem pagar. A asfixia pela fumaça tóxica foi a causa da maioria das 191 mortes. O processo não terminou somente com a prisão do dono da boate e dos músicos, também revelou a existência de uma máfia que vendia alvarás de funcionamento para locais mesmo quando não cumpriam as normas de segurança.
Algo parecido aconteceu no Chile, na madrugada de 27 de fevereiro de 2010, quando um dos mais fortes terremotos da história sacudiu toda a região central do país. Na pequena cidade de Talca, a capital provincial mais próxima do epicentro do sismo, um pequeno bar chamado Calabozo foi o calabouço da morte para as 27 pessoas que se encontravam em seu interior. O proprietário também ordenou que ninguém saísse sem pagar, e as portas trancadas fizeram com que não houvesse sobreviventes – o próprio dono do local foi uma das vítimas. O caso teve pouca repercussão internacional, já que foi pequeno diante das centenas de mortes causadas pelo terremoto em todo o território chileno.
O que liga todos esses casos à tragédia de Santa Maria não é a falta de saídas de emergência (pois havia saídas suficientes no supermercado em Assunção e na boate de Buenos Aires) e nem pelo uso irresponsável de fogos de artifício (o que não aconteceu nem no caso paraguaio nem no chileno), embora esses problemas também sejam condenáveis.
O que realmente liga essas variações da mesma desgraça é o fato de que na hora do desespero não predominou o sentido de sobrevivência individual ou coletivo, com ou sem solidariedade. Mesmo que alguns dos afetados tenham tentado salvar seus companheiros, os proprietários, as pessoas que tinham o controle sobre a vida e a morte em todos os casos, preferiram o egoísmo de salvar primeiro o seu lucro.
O capitalismo se impôs sobre o instinto mais natural do ser humano.
Os urubus da mídia
A lógica do capitalismo também se impõe no debate que os meios de comunicação propõem para o país. Alguns incitam o pior tipo de revanchismo. Buscar subterfúgios jurídicos para transformar o homicídio culposo cometido pelos músicos da Gurizada Fandangueira em homicídio doloso, aproveitando o vale tudo tradicional da nossa Justiça, só para que tenham uma sentença maior. Isso sugere que a dor das famílias que perderem seus filhos só será curada com a maior vingança possível. Não é muito diferente da pena de morte, e não é muito diferente da lógica do olho por olho.
Não se trata de defender a banda, cuja inconsequência deve servir de exemplo para muitas outras que também curtem usar efeitos especiais de forma irresponsável. Ela foi parte importante da equação que causou as mortes, mas não a variável que multiplicou as perdas.
As críticas sobre os donos da boate Kiss se enfocam na estrutura da casa: faltaram saídas de emergência, os extintores estavam vazios, não se pode revestir o teto de material inflamável. Pode ser que isso tudo seja verdade, mas vamos dar uma olhada com mais atenção e ver que grande parte, talvez a maioria das pessoas morreu asfixiada e não queimada.
Foram mortes causadas pela exposição prolongada aos efeitos tóxicos do gás, o que aconteceu devido à retenção imposta pela prioridade que a administração do local deu ao lucro. Quando a mídia fala somente dos problemas estruturais, está tentando esconder a natureza cruel da decisão dos donos, que é a mesma natureza cruel das decisões com as que o capitalismo oprime trabalhadores que devem receber menos para trabalhar mais, ou consumidores que devem pagar mais por produtos cada vez menores e de pior qualidade. Claro que quando essa lógica se aplica a situações extremas, as consequências são muito mais trágicas.
A própria mídia obedece a essa lógica do capital, e por isso precisa preservá-la dessas culpas, mas existe na sociedade, e isso pode ser visto nas redes sociais, a consciência de que a ganância foi o anjo da morte que atuou em todos esses episódios.
Evitar novas tragédias como a da boate Kiss requer a reabilitação de velhas e mofadas noções. A de que as vidas humanas valem mais que o dinheiro. A de que o prejuízo financeiro de uma noite não pode ser preferível, em detrimento da vergonha de causar a morte de centenas de pessoas por esse tipo de egoísmo perdoado para sempre pelo capitalismo. Talvez sejam sentimentos comuns à maioria de nós, ou para muitos, mas não por todos, e se ele precisa se reproduzir, será preciso iniciar esse debate na sociedade, e buscar essa maioria através da insistência.
Calhordice política
Esse afã pela crítica estrutural também cai como uma luva para os que já usaram o caso para o aproveitamento calhorda. Lamentavelmente, nada mais normal nesse Brasil de Gerson em que vivemos.
Já tem gente reclamando que a tragédia “demonstra a falta de capacidade do país em sediar Copa e Olimpíada”. Eu também tenho críticas sobre esses projetos esportivos, mas não vejo relação entre eles e o caso da boate.
Alguns foram direto ao que interessa. Uns dizendo que a presidenta Dilma Rousseff foi oportunista ao abandonar uma cúpula de chefes de estado para visitar as famílias afetadas. Outros chamando Lula de estúpido e canalha, porque emitiu uma nota de pesar, e como ex-presidente “ele não tem esse direito”.
Contudo, o mais asqueroso dos exemplos foi o de um grupo que atua nas redes sociais, vinculado ao PSDB, que repercutiu uma falsa denúncia dizendo que o deputado petista Paulo Pimenta, natural de Santa Maria, era o verdadeiro dono da boate Kiss.
Não é nada novo, já tinha acontecido algo similar após a tragédia com o vôo da TAM em 2007, e é espantoso ver que passou a ser normal no Brasil ver que nem mesmo quando uma tragédia desse tipo acontece, a turma do ódio dá trégua. E assim desperdiçamos uma grande chance de ter um país mais unido, ou pelo menos um onde os agentes da guerra partidária sejam sensíveis o suficiente para interromper o confronto em certas situações.
Já não existe respeito por nada, qualquer coisa pode ser usada em favor do aproveitamento político, em favor de ganhar alguns pontos a mais de popularidade, ou de roubar pontos da popularidade de um adversário, alimentando sua rejeição. E se a gente pensar bem, isso também é parte do espírito desse tipo maquiavélico de capitalismo vigente hoje, onde tudo é lucro, mesmo que não seja necessariamente financeiro.
Victor Farinelli: A tragédia em Santa Maria e a lógica do capitalismo
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