Excelente o texto de Juliana Moura Bueno analisando o novo aplicativo Lulu que assim que foi lançado já se tornou polêmica nas redes sociais.
Curioso o fato de a empresa lançar primeiro um aplicativo voltado ao consumo das mulheres, até nisso a estratégia de mercado que transforma inclusive as relações pessoais em mercadoria visa antecipar as críticas feministas. Mas não se enganem, a versão Bolinha já deve ter sido feita, inclusive antes da versão Luluzinha.
“Lulu”: Por que estamos usando isso?
Por: Juliana Moura Bueno*, Especial para o Maria Frô
Ontem mesmo um amigo comentou comigo sobre esse tal aplicativo, para meninas, chamado “On Lulu”. O receio dele era sobre o fato dele estar sendo avaliado, o que ele também não via com bons olhos. Eu, não entendendo nada do que estava acontecendo, disse que iria baixa-lo, para ver como funcionava.
Assim como toda ‘viagem exploratória’ dos aplicativos e gente precisa fuçar pra entender como ele funciona, justamente. Você é recepcionada por um layout rosa e um pedido para “sincronizar seu perfil do aplicativo com o facebook” para que ele possa listar seus amiguinhos (ou exs, ou decepções amorosas, ou fdps que passaram na sua vida, ou crushes, enfim). Depois disso você é apresentada a uma tela na qual aparecem várias fotos e perfis que já tem notas, estrelas e “hashtags”, tanto de conhecidos quanto de desconhecidos.
Na ferramenta de busca, há filtros que você pode utilizar como “meus amigos”, “meus favoritos”, “minhas reviews”, “garotos nas cercanias”, “os mais pops do aplicativo”, ‘últimas reviews”, “melhores notas”, “piores notas”, “divertidos”, “gostosões”, “garotos doces”, panteras sexuais”, “bons beijos”, “inteligentes” - sim, esse por acaso é um dos últimos filtros na lista dos oferecidos, assim como os “fiéis”.
Além disso, você também pode favoritar os meninos que aparecem, assim, eles sempre ficarão no seu “radar”. Já as “reviews” ou “avaliações” são a parte mais complexa do aplicativo. Fiz uma avaliação teste em um amigo (que, em tempo, não conclui) para ver qual é o procedimento exato. De início, você é apresentada a uma tela na qual você escolhe qual sua relação com o cara em questão. A garantia é de que todo o processo de avaliação é anônimo e a autoria das avaliações nunca será revelada.
Ao contrário do que muitos homens devem estar pensando, ao verem suas características e performances avaliadas com números que contém até casa decimal, as mulheres não dão notas. Elas respondem a perguntas que tem um gradativo semi-evidente e o próprio aplicativo faz o cálculo da nota em cada categoria.
Um outro amigo ainda (sim, são tantas pessoas falando sobre o aplicativo que não sei nem contar quantos amigos/as já citei, ou ainda citarei nesse texto) disse que nunca viu tamanha histeria de seus colegas homens. Há desde aqueles que sabem que “a nota vai baixar”, até aqueles que estão tristes porque ainda não foram avaliados. Ou aqueles que agora cogitam quem pode ter feito quais avaliações, resgatando os episódios nos quais eles não foram “tão gentis assim” de suas passagens. Acho que é ai que entra, como ele bem apontou, o caráter da situação de vulnerabilidade a que os homens estão agora sendo expostos. E, pelo jeito, e pela histeria, a situação é bem nova. Nunca antes os homens foram colocados nessa corda bamba, e o que pode atingir mais um homem, nesse mundo machista que valoriza aquele que “pega mais meninas”, “os garanhões”, ou os que “comem mais” do que ser avaliado, por vezes negativamente, sobre sua performance? E o que fica de fora das avaliações também há de sofrer com o mundo machista, não é mesmo? Porque se ele não é avaliado, significa que ele não “pega ninguém”. Ao torturar o ego do homem e colocar em questão sua forma de relacionar nas já pré-determinadas categorias do aplicativo, cria-se no avaliado uma vulnerabilidade que muitos, provavelmente, nunca sentiram. Mas ao atingir as pessoas de forma tão diferente, o aplicativo acaba trazendo questões perenes nas nossas relações (em especial as entre homem e mulher, mas não só) e que muito se relacionam ao machismo, afinal, sofre o avaliado, sofre o não-avaliado, sofre a avaliadora que precisa refrescar a memória com as experiências possivelmente ruins que teve e sofrem, eventualmente, aquelas que agora se relacionam com os avaliados.
Ouvi de umas amigas que já estavam “baixando a nota de vários caras”. Eu perguntei, curiosa, “Por quê? Por que você quer fazer isso?” E a resposta que ouvi foi “Os que foram filhos da p&%$ merecem, vai?”. Ao mesmo tempo, também tenho relatos de amigos e amigas que acham o aplicativo um absurdo, uma forma de reafirmar a objetificação das relações. É o retrato da revanche das oprimidas: são as mulheres dando o troco da objetificação cotidiana com... voilá: objetificação.
Afinal, seria isso mesmo a que nossas relações foram reduzidas? O tipo de análise que está sendo feita nesse aplicativo lembrou-me daquelas comandas de restaurante que respondemos após o jantar, sugerindo que o serviço seja avaliado, do estilo “Dê uma nota de 0 a 5” e as perguntas: “Você gostou ou não gostou do nosso restaurante?”; “A comida estava boa?”; “O serviço estava bom?”, “Você voltaria ao nosso restaurante?”. Acho que essa é a parte inevitável da transformação das nossas relações em mercadoria, algo que já é presente, mas que um aplicativo como esse mostra como essa concepção de relacionamento interpessoal é tão comum que nem nos questionamos sobre, ou achamos uma boa idéia, avaliar nossos amigos, amantes, namorados, ex-namorados, paqueras, destruidores de nossos corações, etc, da mesma forma com a qual responderíamos uma pesquisa de mercado sobre um absorvente “hum, gostei”, “formato bom”, “confortável”, “nota 4”, “ótimo material”.
Amigas, ninguém gostaria que fizessem isso com mulheres. Já pensaram o rebuliço? E já pensaram também o tipo de coisa que apareceria em um aplicativo que faz avaliações de mulheres? Também imagino que seria bem pior do que o “Lulu”, mas isso não vem ao caso, pelo menos não por agora. Mas se não gostamos, se nos sentimos desrespeitadas, humilhadas e expostas quando fazem isso conosco, porque achar legal quando isso é feito com homens?
Sim, eu sei. Acho que muitas meninas estão se sentido como se agora fosse mesmo a hora da revanche. Que hora mais feliz! - ou não. E isso tem sim um pouco de verdade (a do sujeito, não a universal). Porque desde os casos de “revenge porn” (A exemplo da menina Fran, que considero algo um pouco mais extremo, e dos casos mais recentes das duas meninas que se suicidaram após terem suas intimidades expostas na internet) à exposição da sexualidade da mulher, dos comentários nas conhecidas rodas de “machos” sobre as performances, o julgamento de seu corpo, os cheiros, os trajes, ou basicamente toda e qualquer característica da mulher antes, durante e após os momentos de intimidade são, como bem sabemos, muito comuns. Mas muito comuns mesmo. Fico pensando inclusive que não há caso que eu conheça de homem que teve que mudar de escola ou faculdade depois que suas fotos em momentos íntimos circularem caixas de emails e grupos de whatsapp (e se houver algum caso desse, que alguém tiver notícia, me comunique e eu me retratarei), como ocorre constantemente com as mulheres.
Eu realmente tento deixar de lado o meu sentimento de “agora é a vez de vocês sofrerem” ao escrever esse texto, ao pensar em avaliar alguém (sim, eu já tive péssimas experiências íntimas que me fazem cogitar escrever uma review bem péssima, mas estou me segurando) que mereceria umas notas péssimas, em me “vingar” pelos constrangimentos que já sofri, mas que não foram muitos, porque ou eu aprendi (sim, isso demanda um tempo, acho) a escolher bem com quem eu me relaciono e esses caras nunca fariam algo/falariam algo que pudesse me expor ou tenho sorte de nunca ter chegado ao meu ouvido nada desse tipo. Ao mesmo tempo em que reluto em afirmar que “acho bom” que os homens (e sinceramente sabemos que é algo razoavelmente localizado, há um recorte de classe no acesso ao aplicativo, está restrito a certos grupos sociais, vide o fato da maioria dos meus amigos que está sendo avaliado pertencer a grupos muito bem delineados) agora estejam passando por isso, que se sintam vulneráveis, que “provem do próprio veneno”, que arranquem o cabelo pensando “aquela menina lá que eu transei, tirei foto, falei mal para todo mundo e obviamente nunca mais liguei” pode ir no aplicativo e falar mal de mim. Mas a menina que foi “bem tratada” (pros padrões patriarcais, claro), para a qual ele abriu a porta, pagou a conta, enfim, seguiu todo o protocolo da nossa sociedade que ainda insiste em questionar a conduta das mulheres principalmente no âmbito sexual, (e muitos de nós ainda insistimos em reproduzir esses valores), pode ir lá e equilibrar a nota.
Meninas, honestamente, o que estamos fazendo? Fazer com os homens o que eles fazem conosco não nos faz melhores e também não contribuirá para que soframos menos violência (física ou simbólica) no cotidiano. A questão é que ao aceitarmos o papel dado a nós de “vingativas” reafirmamos que as relações homem-mulher funcionam sempre nesse mesmo padrão no qual nunca estamos em pé de igualdade: sofremos, somos humilhadas, e agora queremos fazer com que eles “paguem por isso” já que as relações de poder entre os gêneros não devem mudar mesmo. Ao reconhecermos que a avaliação “vexatória” é algo válido, entramos no mesmo jogo a que somos cotidianamente submetidas, e sabemos que, isso, em hipótese alguma, é algo bom ou minimamente construtivo na luta por uma sociedade mais igualitária.
E para aquelas que me dirão “o aplicativo é bom porque agora eu sei quem eu devo sair e quem eu não devo”, eu digo: será que realmente chegamos ao ponto de, para além da “revanche” que o aplicativo pode proporcionar, nos deixarmos levar e fazer nossas escolhas com base nas experiências que ocorreram na vida de outras meninas e que, não necessariamente precisam ser replicadas nas nossas possíveis futuras experiências e intimidades com esse alguém? Porque, afinal, se relacionar não é exatamente isso? Quebrar a cara, sofrer, se alegrar com pequenas coisas, ficar ansiosa, arriscar, tomar a iniciativa - e as vezes só esperar, descobrir o que nos faz bem e o que não nos faz, gostar, perder o encanto, nos surpreender, nos apaixonar?
Ps: E para você que leu o texto e está desesperado com a possibilidade de ser avaliado,não se preocupe, é só você entrar em contato com a equipe do aplicativo e eles retiram seu perfil das listas das meninas – em até 72h.
Ps2: O pessoal que traduziu o aplicativo para o português já confirmou que, com o sucesso do Lulu, em breve um aplicativo para avaliar mulheres será lançado por aqui.
*Juliana Moura Bueno tem 24 anos, é cientista social formada pela USP, seus temas de pesquisa são política brasileira e comportamento eleitoral, classe e gênero. Tem especial apreço pelos debates sobre a condição da mulher na sociedade. Seu twitter é @ju_bueno1.