O papel das TVs públicas no Brasil é um tema que volta e meia dá pano pra manga, algo que se deve, entre outras coisas, à falta de experiência no assunto, já que a TV Brasil ainda esta engatinhando e mesmo os melhores os canais regionais públicos tem um público cativo muito reduzido se comparados com o das TVs comerciais.
Talvez por isso mesmo seja importante reforçar o debate sobre esses espaços televisivos públicos e o conteúdo dos mesmos. Ainda mais nesses tempos em que o conceito de Estado laico está cada vez mais ameaçado, o que se reflete também neste contexto, pois já não são poucos os casos de canais regionais públicos que cedem espaço para programas católicos e evangélicos e a própria TV Brasil transmite eventos litúrgicos.
Além desse problema também está o contraditório obstáculo imposto por setores tradicionais da mídia brasileira, que questionam a criação da TV Brasil por parte do Governo Lula e a veem como "uma tentativa de criar um aparato midiático para beneficiar o PT", mas não encontram nenhum problema quando é o PSDB que instrumentaliza um canal estatal, como a TV Cultura de São Paulo - que, aliás, abriu espaço para programas dedicados a alguns dos meios que geralmente bajulam os tucanos.
E o caso paulista não é o único. O leitor Bertoni, de Curitiba, envia um relato para o blog:
Aqui no Paraná, o tucano Beto Richa destruiu a TV Paraná Educativa, primeiro demitindo todos os funcionários contratados na gestão Requião, principalmente aqueles que eram ligados aos movimentos sociais e progressistas. Depois chamando-a de É-Paraná e somente retransmitindo a TV Cultura de São Paulo. Agora, aluga horários para a igreja do evangélio quadrangular...
Porém, infelizmente, aqui no Paraná são poucos os que se preocupam com a TV Pública... Tanto é que a TV Brasil não tem um canal aberto em Curitiba e região...
Mas a ideia principal deste tópico é propor o debate do estado laico dentro das TVs públicas. O caso que o Bertoni traz de Curitiba também fala em horários reservados para programas evangélicos na TV pública paranaense, e algo ainda mais controverso poderá acontecer na TV da Cämara Municipal de Forteleza. O presidente da Câmara pretende vender espaço no canal para a transmissão de cultos e missas, iniciando uma polêmica sobre se isso seria compatível com a missão do canal legislativo.
Neste dia 24/01, a seção Confronto de Ideias, do jornal cearense O Povo, traz dois artigos sobre a possibilidade de a TV Câmara de Fortaleza passar a transmitir cultos e missas, onde os jornalistas Vandelúcio Souza (a favor) e Alberto Perdigão (contra) divergem sobre o papel das TVs Públicas em um Estado laico. Este blog reproduz as duas opiniões abaixo, mas acrescenta também uma terceira opinião para fortalecer o debate: se o Estado laico não pode ignorar a importância das religiões no Brasil, talvez que sua missão, através do canal de TV estatal, não seja a de transmitir cultos e missas, que já têm espaço abundante em diversas emissoras comerciais, e sim o de abordar as religiões a partir de uma visão mais jornalística e documental, garantindo, ademais, amplo espaço para o conhecimento das diferentes crenças, e inclusive aos que não crêem em nada.
Fica a dica, mas sem ignorar o Confronto de Ideias abaixo:
Proposta do presidente da Câmara de Fortaleza reativou o debate sobre a TV pública. Cultos e missas devem ter espaço na sua programação?
TV PÚBLICA
SIM - A religiosidade é um elemento da cultura cearense e como tal precisa ser preservada e respeitada, também na TV pública. As raízes deste povo estão arraigadas no anúncio do Evangelho que já perpassaram mais de 400 anos a contar da fundação do Forte de São Tiago em 1605 na Barra do Ceará por Pero Coelho de Sousa.
Segundo o Censo 2010, a população cearense chega a 8.448.055 habitantes. Destes, 7,8 milhões se declaram cristãos, sendo 78% católicos e 14,5% evangélicos. Apesar de maioria, os cristãos convivem em harmonia com as demais formas de espiritualidade, prática que parece desagradar aos “laicistas” que em nome de uma interpretação errônea da concepção de estado laico pretendem desconsiderar o ethos religioso desta gente.
Volta e meia o assunto retorna à discussão e a ditadura do relativismo que avançou neste século quer cumprir o vaticínio do filósofo que pretendeu “matar Deus”. Já que não conseguem fazê-lo no coração humano, que traz uma marca ontológica do transcendente, ao menos através dos meios que possam transmitir sua mensagem.
Em 2011 sob a égide da concepção falseada de estado laico quiseram retirar a Santa Missa e o programa evangélico Reencontro da TV Brasil. A ação impetrada pela Arquidiocese do Rio de Janeiro na Justiça Federal mostrou que a “decisão do conselho tinha forte e indesejável carga de discriminação religiosa”. Por força de liminar, os programas continuam sendo exibidos por tempo indeterminado.
Vale lembrar que no Ceará um dos programas mais antigos exibidos ininterruptamente é a Santa Missa - há 38 anos em uma TV pública. Só por este feito mereceria deferência.
A TV pública não perde sua identidade cultural, educativa, informativa, artística e inovadora e nem deixa de ser laica ao exibir uma programação religiosa semanalmente. Ao contrário, agrega valor e colabora na construção de uma cultura de paz ao propagar a mensagem de salvação do Ressuscitado que passou pela cruz.
"Ao exibir programação religiosa, a TV pública colabora na construção de uma cultura de paz"
Vanderlúcio Souza
Assessor de comunicação
NÃO - Não, e não sou eu quem diz. É a longeva Constituição “cidadã” de 1988, em seu artigo 19, que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios “estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança (...)”. Deus seja louvado por decisão tão lúcida daquela Assembleia Constituinte, que assim assegurou ao brasileiro um Estado, inclusive os seus poderes, laico, secular, leigo, não-confessional.
Sendo inconstitucional, não é justificável que emissoras de TV estatais, sejam elas do Executivo, do Legislativo ou do Judiciário, financiadas com o dinheiro público, disponibilizem espaços na programação e nossos recursos técnicos e de pessoal para dar voz aos que professam essa ou aquela religião.
Sendo o Estado laico, também seria condenável, na via inversa, destinar programas nas emissoras ditas públicas para grupos de ateus ou agnósticos pregarem a importância de não crer em Deus ou de não crer em nada.
Do ponto de vista das políticas públicas, ao propor unilateralmente incluir missas na programação da TV Fortaleza, a Câmara Municipal estará afastando a sua TV estatal legislativa da perspectiva de evoluir para o caráter de TV legislativa pública, nossa, com nossas caras e falas, nossas problematizações, argumentações e deliberações. Estará afastando o cidadão do direito a um canal de informação, de expressão e de comunicação pública. E reforçando, assim, a exclusão comunicacional.
Ao adotar missas, em vez de acolher as massas, a Câmara de Fortaleza dará um passo atrás na difícil caminhada rumo ao que é diverso e plural, ao que é democrático e republicano. E se alinhará ao que é fundamentalista e sectário.
Pelas linhas tortas de Deus, logo estará em pauta no plenário, com transmissão pela TV Fortaleza, a saudável discussão sobre o papel da TV pública no Estado laico.
Estará afastando o cidadão do direito a um canal de expressão pública"
Alberto Perdigão
Jornalista e mestre em Políticas Públicas e Sociedade