CLÁUDIO JOSÉ LANGROIVA PEREIRA: Inoportunas Questões

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Inoportunas questões

POR CLÁUDIO JOSÉ LANGROIVA PEREIRA*, Carta Capital    

 27/10/2012

Sistema jurídico não estava preparado para as novas interpretações

O julgamento do "mensalão" produziu uma série de inoportunas questões de ordem penal, para as quais nosso sistema jurídico não estava preparado. () Fato é que os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) se posicionaram, em várias ocasiões, violando princípios legais e constitucionais.

A questão que atormenta todos os juristas, quando afirmações dessa natureza são feitas, envolve a pergunta: "Como eles (ministros do STF) podem fazer isso, se são da mais alta Corte do País?" Exatamente porque são da mais alta Corte é que o fazem. Quem define o que é constitucional e inconstitucional, o que é ou não nulidade é o tribunal que, hoje, de forma equivocada, julga. Entre os diversos aspectos do julgamento que afetaram posicionamentos consolidados em nosso sistema jurídico, destacamos três: o ônus da prova, a ocultação de bens e valores ilícitos e a flexibilização no uso de provas indiciárias. Vamos a eles:

O ÔNUS DA PROVA

O STF assumiu, durante o julgamento, uma visão nebulosa, ao aplicar o Artigo 156 do Código de Processo Penal em desconformidade com os direitos constitucionais. Essa postura terá reflexos na ordem jurídico-penal na medida em que decisões paradigmáticas como essa darão as diretrizes para novos julgamentos.

Ainda que a sociedade esteja empolgada com a "moralização política", a perspectiva de um futuro sem corrupção e sem abuso de poder político não nos parece clara. Ao menos no âmbito jurídico não podemos afirmar que trilhamos o caminho mais adequado para a solução dos problemas criminais, particularmente no que se refere ao ônus da prova.

Durante o julgamento, os ministros adotaram os mesmos parâmetros do processo civil em relação à prova dos fatos. Coube à acusação provar os fatos que constituem o seu direito, conforme apresentados na denúncia. Já à defesa, a obrigação de provar fatos que impediam, modificavam ou extinguiam o direito da acusação.

No processo penal prevalece, porém, o princípio constitucional da presunção de inocência e o in dubiopro reo (havendo dúvida, prevalece a interpretação mais favorável ao acusado).

Como já dissemos, além de indicar as formas de violação das garantias constitucionais, os procedimentos adotados pelo STF sedimentam caminhos que servirão como diretrizes para as decisões de outras instâncias judiciais.

No processo penal, não é admissível reduzir os deveres da acusação e atribuir ao acusado o ônus de provar que as alegações feitas contra ele não são verdadeiras.

Essa postura amplia significativamente os deveres da defesa que, a todo tempo, assume um ônus indevido 110 processo penal, passando a ser obrigada a provar fatos impeditivos (no caso do réu, alegar a atipicidade); modificativos (como as excludentes de ilicitude) e extintivos (como a extinção da punibilidade).

O princípio constitucional da presunção de inocência garante a todos os cidadãos que, em caso de persecução penal, o acusado será sempre considerado inocente, até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. Isso significa que ele possui a garantia constitucional de sempre ser considerado inocente, até que provem o contrário. Dessa forma não precisa provar que é inocente, uma vez que já está presumido.

Mais uma vez chamamos a atenção para os reflexos desse entendimento do STF. A nova conduta poderá servir como indicativo para uma interpretação diferente dos magistrados, a respeito da regra do ônus da prova no processo penal. Se adotado esse novo posicionamento, estaremos diante de uma realidade que imporá ao cidadão de bem provar que o Estado errou em processá-lo (e não mais o Estado provar que o cidadão é culpado).

Percebemos daí uma total subversão da forma adequada e necessária de proceder no Estado Democrático de Direito. É dever do Estado provar a culpa do acusado, de forma a garantir que a presunção de inocência efetiva seja respeitada no processo penal.

Em seu artigo 5°, inc. LVII, a Constituição defende o princípio do estado de inocência. O réu tem interesse em se defender dos fatos alegados contra ele; não lhe acarretando qualquer ônus. Portanto, o réu não tem dever de provar nada. Ao contrário. No processo penal, o dever de provar é de quem acusa.

E importantíssimo que a sociedade atente para a diferença quanto à disciplina probatória nos processos penal e civil. Não se pode simplesmente aplicar ao processo penal os conceitos fixados no processo civil. Não existe igualdade entre as partes no processo penal. De um lado está o Estado, representado pelo Ministério Público, do outro o acusado. A desproporcionalidade de poder e de capacidade é, portanto, enorme.

A inversão do ônus da prova não deve ocorrer em desfavor do vulnerável. O ônus da prova, em matéria penal, deve recair sempre sobre os que têm todos os meios para produzi-la. E se ainda assim não for comprovada a culpabilidade dos supostamente envolvidos, esses devem ser absolvidos.

A CONDUTA DE OCULTAÇÃO DE BENS E VALORES ILÍCITOS

Por ser signatário de convenções e tratados internacionais a respeito do combate à corrupção e à lavagem de dinheiro, o Brasil é obrigado a adotar medidas alinhadas à estratégia internacional.

A "sombra da impunidade" e o desejo de justiça para pôr fim à corrupção institucionalizada no País estão levando, porém, a alterações nas leis brasileiras, que se refletem na jurisprudência dos tribunais superiores. Entre elas citemos a Lei 12.683, de 9 de julho de 2012, que alterou e ampliou os conceitos e os procedimentos relativos ao crime de lavagem de dinheiro.

O resultado do julgamento do mensalão trouxe situações similares. Percebemos uma "ampliação" ou "flexibilização" dos posicionamentos jurídicos do STF quanto aos limites da per-secução penal dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro. () tema tem trazido a público calorosas discussões sobre possível violação dos direitos e garantias fu ndamentais.

Um exemplo dessa situação envolve as discussões sobre os crimes de corrupção passiva, supostamente praticada pelos partidos da base do governo, e de lavagem de dinheiro, atribuído a alguns réus. O STF assumiu a possibilidade jurídica de condenaros réus por concurso de crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Esse posicionamento foi defendido por Joaquim Barbosa e sustentado por outros ministros. Já para os ministros Ricardo Lewandowski, revisor, e Marco Aurélio Mello, na conduta dos réus não houve lavagem de dinheiro. A ocultação dos valores recebidos com a corrupção passiva se enquadraria como mera consumação do crime de corrupção e não como lavagem de dinheiro. Isso porque as ações de dissimular a origem do dinheiro e ocultá-lo integram o crime de corrupção passiva.

Para a posição minoritária do STF, a dupla punição por corrupção passiva e lavagem de dinheiro seria vedada pelo princípio non bis in idem (o mesmo fato não pode ser punido duas vezes). Mas a maioria dos ministros defendeu que os dois crimes podem, sim, ser cumulados, por terem sido praticados por meio de condutas diversas (receber e dissimular), e decidiu por condená-los pelos dois crimes.

Outro fator que distingue a corrupção passiva da lavagem de dinheiro é a intenção dos réus, em cada um dos crimes, quanto aos atos de receber e ocultar algo. Isso significa que uma única conduta não poderia indicar a ocorrência de dois crimes.

Em relação à lavagem de dinheiro, o STF entendeu que os réus sabiam da origem espúria dos recursos ou ao, menos, assumiram o risco de receber dinheiro fruto de crime. Os tribunais brasileiros tendem, no entanto, a afirmar que para a condenação por lavagem de dinheiro é preciso prova da consciência inequívoca sobre a origem ilícita do recurso.

Outro posicionamento consolidado pelos tribunais que favorece os réus do chamado mensalão é o de que o crime de lavagem de dinheiro se concretiza no momento em que se esconde o capital, para depois reintroduzi-lo na economia com aparência lícita. Esse entendimento indica que, na lavagem de dinheiro, existe uma conduta diversa do simples uso do produto do crime, como na corrupção passiva. O STF, mais uma vez, decidiu de forma contrária.

A "elasticidade" da interpretação acolhida pelos votos dos ministros é preocupante. A dimensão atribuída ao delito de lavagem de dinheiro, cumulado com o crime de corrupção, repercutirá pelos tribunais brasileiros tanto quanto nos órgãos de prevenção e investigação. Diante desse cenário, caberá ao Poder Judiciário a prudência de não adotar ações desmedidas, contrárias aos propósitos da legislação internacional sobre a matéria, e ter cautela para não dar guarida a eventuais violações de direitos e garantias fundamentais.

Outro aspecto tormentoso envolveu a flexibilização, nos votos dos ministros, do acolhimento de provas produzidas na fase de investigação policial ou. ainda, pelas Comissões Parlamentares de Inquérito, onde não ocorreram o contraditório e a ampla defesa.

Nas hipóteses a envolver o julgamento de réus ligados a cargos de direção, como, por exemplo, de instituição financeira supostamente envolvida com o mensalão, a posição que prevaleceu no STF foi a de acolher provas de caráter indiciário. Assim reconheceram que, quando o acusado ocupava posição de direção, esse deveria presumir que todas as relações que envolviam alto valor poderiam estar viciadas. Ora, trata-se de responsabilização em razão do cargo ou função que o acusado ocupava à época dos fatos, e não em razão de suas condutas.

Para prevalecerem condenações dessa natureza, é imprescindível que durante o devido processo legal a acusação apresente provas, sob o crivo do contraditório e da ampla defesa, que demonstrem inequivocamente a realização de atos compatíveis com as condutas criminais atribuídas aos acusados. Do ponto de vista técnico, a mera especulação e os indícios que tratam de circunstâncias, levando a concluir algo sem recriarem fatos apenas indicando-os de forma indireta, não são suficientes para a condenação por uma conduta dolosa.

As decisões que acolhem uma relativização de provas indiciárias para alcançar a condenação na ação penal mostram-se como uma sombria realidade para o futuro do processo penal no País, em que a simples participação em sociedade empresarial poderá resultar em uma possível condenação.

A propósito, lembro uma frase do ministro Lewandowski proferida em um julgamento de 2006:

"Não cabe ao Poder Judiciário pressupor ou tecer conjecturas sobre a prática de eventual crime, mas sobre a ausência de provas cabais. III - A abertura de sociedade empresária, por si só, representa o exercício lícito de um direito assegurado a todos os cidadãos" (HC 88344, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 12/12/2006, D.J 23-02-2007 PP-00025 EMENT VOL-02265-02 PP-00322).

*Professor doutor de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da PUC-SP

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