Chile: estudantes marcham e a direita avança
por Victor Farinelli*, especial para a Maria Fro
Muitas coisas que acontecem hoje no Chile poderiam servir como um exercício à fantasia, de desenvolver a hipótese de "o que aconteceria no Brasil se 2010 tivesse terminado diferente". Sei que muitos criticam o titubeante primeiro ano de mandato de Dilma, principalmente no que diz respeito a algumas das mais emblemáticas bandeiras sociais, como a luta contra a homofobia e os conflitos camponeses e indígenas, o primeiro golpeado pelo avanço da tese bolsonarista, o segundo pelo terrível código desflorestal, que ainda sonhamos que possa ser vetado pela presidenta.
Mas, diante de muitos colegas do twitter que começaram a defender a tese de que seria melhor que o Serra tivesse ganhado, eu sempre retruco, porque se alguém duvida de que o serrismo no poder seria MUITO PIOR (sempre digo isso no twitter) venha para o Chile e veja que isso está longe de ser verdade.
Minha tese é a de que o Chile está à mercê da direita mais radical, e vou começar a defendê-la trazendo os dados que a desmentem, porque quem acompanha o noticiário chileno sabe que a popularidade do presidente Sebastián Piñera está pelo fundo do poço (23% o aprovam, 62% o rejeitam, 69% dizem que não é uma pessoa confiável, segundo pesquisa divulgada há duas semanas pelo instituto CEP, o mais conceituado do país), que além da crise educacional, o governo enfrenta crises trabalhistas, meio ambientais, sanitárias, e de segurança pública. Como pode então a direita governante estar bem num cenário desses e sem apoio popular?
O apoio popular (a cada dia me convenço mais disso) para eles parece ser o de menos. O sistema eleitoral chileno, um dos mais absurdos do mundo, sempre garantiu e continuará garantindo que os eleitores só têm duas opções, ou a direita dura ou a pseudo esquerda neoliberal, não há a menor possibilidade de que outra força possa quebrar esta lógica, a não ser que se mude o sistema. E se isso não é suficiente motivo para se duvidar de que o tradicional pragmatismo eleitoral da direita mantém os conservadores cômodos apesar da rejeição a Piñera, o governo ainda lança uma proposta de reforma eleitoral, que não altera a bipolaridade nefasta do sistema, e tampouco permite o voto dos chilenos que votam no estrangeiro (cuja maioria é de exilados e filhos de exilados pela ditadura de Pinochet), senão que prevê dois instrumentos estranhíssimos, como a inscrição automática e o voto voluntário, o que significa que, se a reforma for aprovada, nas próximas eleições presidenciais, as pessoas poderão se inscrever no mesmo dia da eleição e já ir direto à urna votar - ou não, já que será voluntário. Não sou um especialista eleitoral, e ainda assim consigo visualizar diferentes modalidades de fraude eleitoral num sistema onde não se tem a menor ideia do universo total de votantes. E aqui nem precisam de uma fraude eleitoral, basta moldar o padrão eleitoral de forma a que dar mais facilidades aos eleitores do seu setor, enquanto continua alimentando a desilusão com a política daqueles que poderiam votar no único setor opositor capaz de lhe roubar a presidência – setor esse que colabora com o projeto de poder da direita, por ser incapaz de ser uma esquerda de verdade, de responder positivamente aos evidentes anseios da sociedade e dos movimentos sociais, por um compromisso velado com a agenda técnica economicista.
E enquanto os estudantes marchavam durante o ano inteiro pelas ruas do país, os coronéis do pinochetismo ortodoxo (reunidos no partido UDI) marchavam pelos corredores do Palácio La Moneda, ameaçando e amedrontando um presidente frágil, que ultimamente tem permitido até que o seu ministro de economia anuncie as reformas ministeriais unilateralmente, entre outras humilhações. Os pinochetistas começaram exigindo ministérios estratégicos, e que suas figuras saíssem dos ministérios "malditos", como o da Educação, mas, finalmente tendo todo o poder nas mãos outra vez, não suportaram nem três meses à tentação de reescrever a história.
Piñera.Ainda na época das marchas, quando também havia universidades e escolas ocupadas pelo Movimento Estudantil, o prefeito da comuna de Santiago Centro, Pablo Zalaquett, clamou pelo uso das forças armadas para desalojar os estudantes: "¡militares a la calle!", dizia em agosto de 2011, repetindo o que diziam os oligarcas em agosto de 1973. Não foi escutado pelo governo, mas terminou sendo padrinho da Lei Hinzpeter, lançada pelo ministro do Interior dias depois, que propõe criminalizar as manifestações populares (marchas, ocupações, etc.), que deverá ser votada ainda este mês, antes do recesso parlamentar.
Logo foi a vez de Cristián Labbé, quem é especialmente recordado por ter sido agente da CNI (Central Nacional de Informações, principal órgão da repressão chilena) e chefe dos guarda-costas pessoais do ditador, e hoje exerce como prefeito de Providência, comuna de classe média alta, uma das maiores de Santiago. Labbé não clamou pelos militares, mas efetivamente os requisitou e os usou para desalojar as ocupações de colégios em sua comuna, em setembro.
Dois meses depois, cedeu um clube de propriedade da Prefeitura para a realização de uma homenagem ao brigadeiro Miguel Krassnoff, que além de ter sido chefe da CNI e um dos torturadores mais sangrentos do regime de Pinochet, também foi colega de Labbé na escola militar – La Moneda divulgou uma carta desejando “uma tarde agradável” aos organizadores do evento, depois voltou atrás e despediu a jornalista que supostamente escreveu a carta, sem nunca manifestar uma condenação contundente ao fato de se louvar a um sujeito que cumpre 148 anos de prisão por crimes contra a humanidade. Milhares de pessoas foram ao clube protestar contra a homenagem. O encontro entre manifestantes, a maioria ex-torturados ou familiares de vítimas da ditadura, terminou na previsível reação de ira dos manifestantes contra os militares da reserva que chegavam ao local sob chuva de ovos, tomates e golpes desesperados. No dia seguinte, os canais de televisão tradicionais priorizaram as imagens de militares sendo agredidos e, nas imagens, se notava uma intenção de mostrá-los, numa ironia carregada de humor negro, como uns pobres velhinhos oprimidos pela sanha das (mais ironia negra) vítimas da ditadura. Com toda a pompa, Labbé terminou posando como paladino da liberdade de expressão, dizendo que “a violência das vítimas da ditadura pretende censurar as diferentes versões da história”, e “não quero que, no Chile, o que pensa diferente seja esmagado”.
Leia também: Chile elimina o termo ‘ditadura’ dos livros didáticos: “É uma estupidez”, diz o historiador Gabriel Salazar ________________ Publicidade // //Em dezembro, a polêmica chegou através do judiciário. A Suprema Corte de Justiça chilena elegeu como presidente Camilo Ballesteros, juiz conhecido por votar historicamente em favor da prescrição de crimes da ditadura, envolvendo decisões favoráveis a Augusto Pinochet, e que será o comandante de um tribunal que ainda terá que dar sentença a pelo menos cem acusados de violações aos direitos humanos durante os dois anos do recém iniciado mandato. Há de se admitir que as suspeitas de que pudesse haver pressões do Executivo em favor de votos para Ballesteros foram menores que em outras eleições setoriais, como a que terminou com a derrota da líder estudantil Camila Vallejo, também em dezembro, quando concorria à reeleição como presidenta da Federação dos Estudantes da Universidad de Chile e perdeu para um rival da esquerda autônoma, mais radical - alguns grupos estudantis acusaram as chapas de direita de votar na esquerda autônoma para forçar a derrota de Camila, o que carece de provas concretas, embora, curiosamente, a direita, que sempre elegeu um ou dois integrantes da mesa diretora através do voto proporcional, pela primeira vez não colocou nenhum. Muitos meses antes, em janeiro do ano passado, também a Federação de Futebol do Chile se viu alvoroçada quando Harold Mayne-Nichols, desafeto de Piñera e o presidente que modernizou o futebol chileno, além de trazer o inovador técnico argentino Marcelo Bielsa (também odiado em La Moneda, e que renunciou ao comando da seleção andina após o pleito), perdeu as eleições de forma inacreditável.
A última controvérsia foi concebida naqueles dias de dezembro, enquanto o país debatia a vitória de Ballesteros e a derrota de Camila. O CNED (Conselho Nacional de Educação), órgão que conta com a participação de membros como o ex-general da CNI Alfredo Ewing Pinochet (que não tem parentesco direto com o ditador), aprovou uma resolução que alterava os livros de história voltados a alunos do primeiro ao sexto ano do ensino fundamental, abolindo o termo "ditadura" em referência ao período de Pinochet, que passa a ser chamado agora de "regime militar". Na semana passada, quando se descobriu a mudança, a imprensa local tratou o tema da forma mais oficialista possível, dando ampla divulgação à tese inicial do governo de que "foi uma mudança técnica, para um termo mais geral, que visa fomentar um melhor debate" - palavras do ministro da Educação Harald Beyer, que ainda não havia assumido a pasta quando o CNED aprovou a resolução. Após dois dias de péssima repercussão internacional, o governo ensaiou uma proposta de revisão da mudança, enviaria um novo modelo ao CNED, que ficaria de decidir sobre o retorno do termo ditadura, mas não se comprometeu com nenhuma garantia concreta de que a retificação será realizada.
Entre os analistas políticos com bons informantes em La Moneda, se diz que o presidente aceitou a teoria dos pinochetistas, de que sua baixa popularidade é irreversível, e que o melhor que ele pode fazer é governar a favor dos 35% tradicionais da direita, que querem repressão, ordem e reconhecimento do "legado da luta contra o marxismo". Se for verdade, o Piñera que diz ter votado contra Pinochet no Plebiscito de 1988 (que marcou o retorno da democracia), e que se recusou a indultar os militares condenados em 2010 (quando surfava numa popularidade de 60%, após o resgate dos 33 mineiros), terá que renegar muitas das atitudes mais marcantes do personagem que ele mesmo criou em torno de si para se oferecer como alguém moderado e eleitoralmente viável. Algo que Serra vem fazendo no Brasil há muitos anos, e sem demonstrar maior pudor ou vacilação.
Um hipotético governo do Serra não seria idêntico ao de Piñera agora, por supuesto, mas algumas coisas poderíamos intuir, pelas semelhanças entre os dois. Por exemplo, Serra e Piñera evitam falar na condenação aos colaboradores das respectivas ditaduras, mas ambos se reuniram com os generais da reserva durante suas campanhas - onde também coincidiu o caráter estritamente secreto dos encontros. Serra, sem cargo, não pode atuar em favor de uma reforma eleitoral que lhe convenha, como faz a direita pinochetista, mas seus correligionários passaram 2011 defendendo o voto distrital e a Soninha Francine começou 2012 forçando debates nas redes sociais em favor do voto facultativo - ideia que não foi levantada em 1998, quando a obrigatoriedade do voto a muitos eleitores insatisfeitos foi um dos fatores que levou à reeleição de FHC.
As minorias históricas reagiriam mais a um governo de direita, como acontece hoje no Chile? Nisso acreditam os defensores da teoria do choque, de que um governo de direita nua e crua seria melhor que o de uma esquerda com medo de ser esquerda e de abraçar mais claramente os movimentos sociais. Mas, volto a frisar, o exemplo chileno também demonstra que enquanto os indignados marcham pelas ruas, a direita dura marchou pelos corredores dos palácios, e no confronto visível pode-se dizer que os estudantes tiveram uma vitória clara em 2011, considerando os resultados a curto prazo. O problema é não saber se, nos confrontos invisíveis, continuarão surgindo novas e assustadoras vitórias dos conservadores, cujos resultados a longo prazo são angustiantemente imprevisíveis.
*Victor Farinelli é um jornalista brasileiro e corinthiano, radicado no Chile, que colabora com o portal Opera Mundi, com a Revista Fórum, com o Diário Liberdade e com a Maria Fro