Victor Farinelli: Chile, Um país bipolar, uma marcha com duas faces

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Um artigo testemunhal do meu querido amigo e colaborador do Maria Frô, o jornalista Victor Farinelli. Ele agora escreve para o Ópera Mundi.

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Um país bipolar, uma marcha com duas faces

Por: Victor Farinelli, de Santiago para o Ópera Mundi

31/07/2011

Cheguei ao Chile há cinco anos. Foi exatamente nessa época, durante uma de minhas primeiras conversas informais, que um desconhecido me fez a seguinte pergunta sobre o que eu acho do país: "Allende ou Pinochet?". Essas boas vindas resumiram, desde esse primeiro dia, minha vida nessa sociedade, que há 38 se encontra dividida por esses dois nomes e seus legados.

Na manhã de 14 de julho deste ano, enquanto caminhava para encontrar a marcha organizada pelos estudantes chilenos, a qual eu cobriria para o Opera Mundi, me deparei novamente com essa dicotomia já na primeira esquina antes de chegar à estação do metrô. Às 9h40, uma pequena parte dos estudantes estava reunida em frente à Universidade de Santiago, porque a autoridade metropolitana responsável por permitir as marchas havia dito que aquele deveria ser o local de concentração. Curiosamente, a estação de metrô mais próxima de casa ficava ali em frente, e lá eu os vi reunidos, em dezenas.

Victor Farinelli/Opera Mundi Dezenas de milhares de estudantes se reuniram para protestar por melhorias na educação chilena

Sabia que os líderes do movimento estudantil haviam decidido insistir em começar a marcha na Praça Itália, como normalmente ocorre em manifestações desse tipo em Santiago, e como haviam feito nas gigantescas marchas anteriores. Uma certa intuição me inspirou a caminhar entre eles, e a começar a conversar com alguns daqueles jovens. "Essa é a velha estratégia dos pinochetistas, querem nos dividir para nos debilitar", foi a queixa feita por todos, de diferentes formas, enquanto descíamos as escadas como uma onda barulhenta, a qual eu acompanhava em silêncio.

A cada nova estação alcançada subiam trabalhadores do cobre, funcionários públicos, ecologistas, associações de pais de estudantes, de direitos humanos, de direitos dos homossexuais, ou de combate ao feminicídio, à xenofobia, ao massacre contra o povo Mapuche, sindicatos de diferentes setores, artistas de rua, blogueiros, todos em direção à mesma Praça Itália.

A indignação estudantil havia sido capaz de se alimentar da indignação geral do povo com o modelo de país existente no Chile desde os tempos da ditadura, o qual a Concertação, aliança da chamada "centro-esquerda neoallendista", após vinte anos no poder, não mudou mais que alguns meros detalhes – e por isso perdeu o poder para os neopinochetistas do atual governo de Sebastián Piñera. Descemos do trem por volta das 10h15 e subimos todos as escadas como se fôssemos uma torcida, e não um time percorrendo o túnel que dá acesso ao campo de jogo. Ele terminaria se tornando um campo de batalha e alguns sinais disso já se faziam notar.

Passei os primeiros minutos tirando fotos e falando com gente – um dos maiores prazeres desta profissão é poder conversar com as pessoas, das mais diversas, e saber o que elas pensam. Logo, procurei os organizadores e os fui encontrar numa conversa muito pouco amigável com um comandante dos carabineros, espécie de polícia militar do Chile. O chefe policial ressaltou o fato de que a autorização dada à marcha era para que se realizasse em outro ponto da cidade.

Os estudantes disseram que aquela gigantesca concentração respaldava a desobediência, através da insatisfação popular e considerando o fato de que as marchas anteriores haviam partido daquela mesma praça, seu direito de seguir com seu plano inicial. Faltavam poucos minutos para as 11h, horário marcado para o início da marcha. Fiz uma medição com o olhar, que calculou haver ali o equivalente a um Pacaembu lotado, algo entre 35 e 40 mil pessoas, embora a polícia informasse cifra bem menor.

Após entrevistar algumas figuras importantes do movimento estudantil e do Sindicato dos Professores, entre outras figuras que achei interessantes, passei a desfrutar outro dos inegáveis prazeres da profissão jornalística: observar, ser testemunha, admirar o acontecer da história como "O Popular" do Veríssimo, com seu embrulho debaixo do braço, que no meu caso era somente uma bolsa azul.

Vi a primeira face da marcha: o mosaico de cores, fantasias e coreografias era um convite que os olhos não poderiam recusar. Alguns cartazes eram bastante significativos: um deles levava caricaturas dos presidentes durante os anos da Concertação em comunhão com Piñera e Pinochet, dizendo "estes são partidários do mesmo roubo", para depois assinar como: "estudantes sem partido". Os disfarces eram dos mais variados, mas se destacavam os dos personagens folclóricos e das figuras históricas.

Victor Farinelli/Opera Mundi Para alguns estudantes apartidários, não há muita diferença na classe política pós-pinochetista

Um grupo ligado à causa mapuche realizava sua dança típica, a poucos metros de onde o grupo de teatro da Universidade de Santiago representava alguns ex-presidentes chilenos, com óbvio destaque para Salvador Allende. Havia também outro grupo de estudantes com escudos, capacetes e cassetetes de papelão, decorados por suásticas, fazendo genial paródia da repressão policial, enquanto uma figura solitária, emulando um travesti com boina militar, carregava o brasão da república e dizia que "este governo se traveste de popular para enganar a sociedade, enquanto governa para os empresários com a mesma ideologia militarizada da ditadura".

Um dos elementos que comprovou a ausência de influência da oposição na marcha dos estudantes eram os lemas gritados durante o trajeto, que não eram neoallendistas, eram de um allendismo puro. "Nacionalização do cobre já!" e "A educação do pobre pagaremos com o cobre!" soavam mais forte que qualquer outra consigna.

Victor Farinelli/Opera Mundi A repressão dos carabineros também não escapou do bom humor dos manifestantes

Era fácil saber porque se destacavam. A ideia de se renacionalizar o cobre (como fez Allende em 1971) e utilizar esse recurso para financiar a educação pública gratuita – no Chile, o maior exportador mundial de cobre, não existe ensino gratuito, mesmo as escolas públicas cobram mensalidade, e muitas são terceirizadas.

Quando a caravana passou (pouco depois das 12h) em frente ao Palácio de La Moneda, sede do governo chileno, cercada por biombos metálicos barricadas e tropas policiais, os gritos passaram a um tom mais ofensivo, insultando o presidente Sebastián Piñera, o ministro de educação Joaquín Lavín, e lembrando sempre a ligação de ambos com o regime do ditador Augusto Pinochet (1973-1990). "Vai cair, vai cair, a Educação de Pinochet vai cair!" era o mais publicável dos cânticos. Mas isso não mudou o caráter descontraído e cultural da manifestação.

As performances pitorescas ainda chamavam mais a atenção que os ânimos exaltados, como, por exemplo, as moças seminuas (enfrentando um frio de pouco mais de 5ºC, apesar do sol), tapadas apenas com toalhas de banho, alegando que as caras mensalidades escolares as deixaram sem ter o que vestir.

Victor Farinelli/Opera Mundi Preço abusivo das universidades chilenas também é alvo de protestos bem-humorados

Às 12h30, a marcha se deteve na Plaza Los Héroes, em frente à Embaixada do Brasil, localizada bem no centro das duas pistas da Alameda Bernardo O'Higgins, a principal avenida de Santiago. No meio da praça, um palanque já estava preparado para os discursos dos líderes do movimento.

Coloquei-me ao lado do palanque, junto aos demais jornalistas, e esperei, enquanto a multidão se aglomerava em volta do palco, o início dos pronunciamentos. Subi numa pequena plataforma onde pude ter uma maior percepção da dimensão da marcha, e meus cálculos já observavam mais de dois Pacaembus lotados.

Percebi também que os grupos mais distantes eram escoltados por carros blindados da polícia, e tropas policiais surgiam de ruas adjacentes, algumas montadas a cavalos, outras com escudos, capacetes e cassetetes, mas não de papelão, como os da paródia do início da marcha. A multidão não tardou em estar toda reunida na Praça dos Heróis, e pouco antes das 13h30, quando o presidente do Sindicato dos Professores realizava o primeiro discurso da jornada.

Uma bem coordenada ação policial transformou o primeiro discurso também no último. Veio a segunda face da marcha: de trás do palanque, surgiram quatro veículos blindados, dois maiores, um em cada lado da avenida. Se dirigiram à multidão atirando jatos d'água sobre os estudantes e, segundos depois, dois blindados menores passaram lentamente pelas laterais do palanque despejando nuvens de gás lacrimogêneo sobre discursantes, jornalistas e os estudantes e professores que se encontravam mais próximos ao palco.

O presidente do Sindicato dos Professores tentou manter sua fala, primeiro pedindo calma aos manifestantes, depois acusando as autoridades de estar atacando uma mobilização pacífica sem motivos. Sua tosse e lágrimas, mais intensas que as minhas, o impediram de continuar por muito mais tempo.

Foi retirado do palanque com os olhos vermelhos como morangos, pouco depois de as tropas com escudos e as tropas montadas ingressarem ao campo, que já era o de uma batalha urbana. Os que conseguiam falar ao microfone mantinham o apelo de calma e de não reagir com violência. A maioria dos estudantes reagia levantando os braços diante da ofensiva dos carabineros. Alguns respondiam atirando pedaços de paus e pedras sobre as tropas policiais.

Uma nova passagem dos tanques trouxe mais nuvens daquele gás de cor amarelo-enxofre, muito mais densas e intensas, que envolveram a todos. Meus sentidos foram todos contaminados, e a respiração falhou por alguns momentos. Caminhei cambaleante enquanto guardava a câmera fotográfica e, depois disso, cometi o grave erro de esfregar os olhos com as mãos, o que piorou a sensação de ardor. Os gritos de "todos para o chão, agachem-se para fugir do gás" emitidos ao meu redor soavam longínquos e abstratos.

Quando já não sabia se meu próximo instante seria o do desmaio ou o do vômito, senti uma mão agarrando o meu pescoço por trás, acompanhada de uma voz feminina, que disse em tom imperativo: "cheira isso aqui". Eu mal conseguia ver um pequeno pedaço de algodão que estava diante de mim, e titubeei diante daquela situação, com o que me restava de capacidade de raciocínio, até que a voz insistiu, mais veemente: "se você não quiser desmaiar, cheira isso AGORA!!!". Aceitei a ordem como se não houvesse outra opção. A mão que sustentava o algodão logo agarrou a minha, a soltou e desapareceu. Instantes depois, eu já conseguia respirar, e perceber que o palanque onde nos mantivemos em volta os jornalistas e os organizadores da marcha também estava cercado pelas tropas montadas. Pelo alto, as hélices de um helicóptero traziam a trilha sonora militar que se adequava ao cenário.

Ao lado da Embaixada do Brasil, pela Avenida Manuel Rodríguez, fluía um rio de manifestantes, que soava como uma manada correndo pelo asfalto. Também se escutavam bombas, as de gás dos policiais, e as molotov, das poucas dezenas que ficaram na praça e compraram a briga.

Pensei por um segundo em buscar a origem daquele providencial socorro para agradecer, mas havia tanta gente ali, e a situação não permitia pensar em distrações à inexorável necessidade de fugir dali o mais rápido possível – provavelmente aquela mão e aquela voz feminina já não estavam onde eu as pudesse encontrar. Passei sorrateiramente por entre um vão entre as tropas montadas onde outros também já estavam escapando do cerco.

E corri. Como nunca na vida! Com a respiração ainda afetada pelas novas nuvens de gás, tentando me esquivar das bombas e dos destroços que os dois bandos atiravam um contra o outro, sem saber direito para onde ir, mas esperando que surgisse alguma esquina que não estivesse bloqueada por uma tropa inteira com escudos. Após correr o que imagino terem sido alguns quilômetros, e quando a falta de fôlego já era mais forte que o desespero por encontrar uma saída definitiva, parei e resolvi caminhar em direção a uma dessas esquinas bloqueadas, com os braços erguidos em sinal de paz. Com um surpreendente tapa no ombro, num gesto quase amistoso, um dos policiais me deixou passar.

Victor Farinelli/Opera Mundi Estudantes fogem do gás lacimogêneo

Caminhei rapidamente por um ziguezague entre as ruas adjacentes, querendo me distanciar dali o mais rápido possível. Encontrei, pelo caminho improvisado que percorri, um cybercafé, o esconderijo perfeito onde poderia enviar as fotos e o texto ainda dentro do tempo, eram quase 15h30. Enquanto escrevia, consegui esquecer das dores musculares, da dor de cabeça, da barba e cabelos ainda fumegados pelo gás amarelo-enxofre. Todas essas sensações retornaram quase que magicamente quando já havia enviado todo o material.

Voltei para casa andando, seguindo outro ziguezague, encontrando lugares conhecidos e me orientando por eles. Algumas ruas estava cortadas, outras não. O metrô estava fechado, as linhas de ônibus estavam quase todas com seus itinerários alterados. Pelo caminho começou a chover, com aquelas finas e geladas gotas típicas das chuvas de inverno em Santiago – diante da minha necessidade urgente de um banho, elas não eram tão incômodas.

Cheguei finalmente à calçada em frente à Universidade de Santiago, local onde as autoridades haviam dito que deveria acontecer o evento, onde aquele grupo de jovens reclamava das táticas pinochetistas do atual governo chileno. Onde começou minha jornada, horas antes da experiência mais próxima ao que foi a ditadura de Pinochet vivida por mim nos cinco anos em que estou no Chile.

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