Recebo por mail, carta de um docente da Escola Estadual "Dr. Álvaro de Souza Lima", que fica no Jardim São Savério, zona Sul de São Paulo.
O relato é assustador sobre as condições em que se encontram a escola e as arbritrariedades sofridas pelos professores que cansaram de trabalhar sem o mínimo de condições.
Para preservar o docente das arbitrariedades preservo sua identidade.
_________ PublicidadeCara Conceição,
Estou lhe escrevendo com um nome falso, pois preciso de que minha identidade seja mantida em sigilo. Caso queira falar comigo, pode escrever para este e-mail que indiquei, que poderei responder e revelar minha identidade. Segue o texto de minha denúncia:
Sou professor da Escola Estadual "Dr. Álvaro de Souza Lima", que fica no Jardim São Savério, zona sul de São Paulo, e gostaria de manifestar minha indignação diante de algumas posturas tomadas pela gestão escolar e pela diretoria de ensino em relação aos problemas de nossa escola.
Três dias sem água foi a gota d'água
Na quarta-feira, dia 17 de agosto, diante de uma falta de água que já chegava ao terceiro dia, os professores do período matutino entraram em um consenso e resolveram não dar aulas às crianças naquelas condições. O vice-diretor foi chamado à sala onde os professores estavam reunidos e foi avisado da decisão. A primeira reação do vice-diretor foi recusar veementemente a decisão dos professores, alegando que não tinha autorização para paralisar as atividades da escola (mesmo com a escola estando sem água desde segunda-feira). Obviamente, os professores mantiveram sua posição e, após isso, o vice-diretor sugeriu que houvesse aulas até a hora do intervalo, que só ocorreria às 10h20min (eram sete da manhã no momento da reunião). Os professores continuaram mantendo a posição, afinal, além de passarem a segunda e terça-feira sem água nos bebedouros e nos banheiros, os alunos passariam mais três horas e meia sem água, isso sem falar que, momentos antes, a merendeira constatou que não havia água na cozinha e que não havia condições de cozinhar, ou seja, as crianças ficariam sem almoço ou então teriam uma refeição inadequada. Sendo assim, o vice-diretor acatou a decisão dos professores e os alunos foram dispensados.
Suspensão de aulas só com ordens da dirigente regional
À noite, durante a reunião do horário de trabalho pedagógico coletivo (HTPC), a diretora repreendeu, aos berros, todo o corpo docente, dizendo que os professores "passaram por cima da autoridade" do vice-diretor, que os professores não têm direito de tomar tal tipo de decisão e que só com ordens da dirigente regional de ensino as aulas podem ser suspensas, tendo ou não tendo água na escola. Devido a isso, todos os professores ficaram com falta naquele dia de trabalho, mesmo tendo comparecido ao trabalho e mesmo não tendo podido trabalhar por conta das péssimas condições da escola.
O Manifesto e a passeata
A partir disso, professores, membros do Conselho de Escola e da comunidade escolar redigiram um manifesto reivindicando melhorias na escola, como o repasse de verbas de manutenção, que está bloqueado há mais de dez anos por conta de uma má prestação de contas de um ex-diretor. Outras reivindicações são feitas, como: abertura da sala de informática, contratação efetiva pelo Estado de funcionários em quantidade suficiente para suprir a demanda da escola (faltam funcionários em todos os setores), execução de reparos emergenciais na infraestrutura escolar (como o reparo de portas e janelas, que estão totalmente destruídas, tirando a segurança e a privacidade de professores e alunos durante as aulas). Nesse contexto, o problema da falta de água foi apenas "a gota d'água" que faltava para encher o copo de paciência de professores, alunos e comunidade escolar, que já não aguentam tal situação, que só tem servido para estressar professores e funcionários, aumentar os pedidos de licença e remoção, fazendo com que faltem cada vez mais funcionários em todos os setores e com que os níveis de aprendizagem dos alunos caiam ainda mais, mesmo já sendo os mais baixos de São Paulo. O manifesto também prevê uma manifestação, que está marcada para o dia 23 de agosto, terça-feira, a partir das 18h, seguida de passeata.
Ameaça da Diretora: sindicância para punir "ato de insubordinação"
Diante de todas essas evidências de que as coisas estão péssimas em nossa escola, a diretora, além de não remover a falta dos professores da quarta-feira, se comprometeu a abrir uma sindicância para apurar o fato, denominado "ato de insubordinação" por ela. Por que não há o mesmo empenho em fazer os reparos necessários na escola, em consertar a tubulação danificada para que os problemas com falta de água não voltem a ocorrer, chamar professores eventuais para susbstituir aulas vagas, abrir a sala de informática etc.? Por que tanta eficiência quando o assunto é castigar arbitrariamente professores que não fizeram mais do que cumprir uma obrigação humanitária de não deixar que crianças ficassem sem água dentro de um colégio? A justificativa da diretora para tais atitudes é a legislação e a diretoria de ensino, que segundo ela, dizem que é necessário haver aulas a qualquer custo. Porém, a LDB, carta magna da educação em nosso país, diz em seu artigo 4º, incisos VIII e IX, que a educação escolar pública deve garantir "atendimento ao educando, no ensino fundamental público, por meio de programas suplementares de material didático-escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde" e "padrões mínimos de qualidade de ensino, definidos como a variedade e quantidade mínimas, por aluno, de insumos indispensáveis ao desenvolvimento do processo de ensino aprendizagem", respectivamente. Sendo assim, sabendo que a água é algo fundamental para a manutenção da higiene e das funções fisiológicas de qualquer ser humano, podemos entender que uma escola que funciona por três dias sem água, além de ferir a lei, fere também um princípio moral.
LDB propõe a gestão democrática do ensino público
Vale ressaltar também que a LDB propõe a gestão democrática do ensino público, ou seja, quando a diretora da escola diz que a escola só pode paralisar as atividades a partir de uma ordem de uma dirigente de ensino, de apenas uma pessoa, onde fica a solução democrática para a questão? Não é necessário ter muita erudição para saber que "democracia" não é um regime em que apenas uma pessoa decide pelas demais, sem consultá-las. Se alunos, professores e pais, ou seja, a maioria das pessoas envolvidas, não aceitam que uma escola funcione sem água, o que deve ser feito? Acatar uma ordem "superior" que mande a escola funcionar assim mesmo? É claro que não. E, por isso mesmo, todos os professores acreditam que tomaram a decisão mais acertada. Mesmo com todas as tentativas de repressão de nossos movimentos por parte da direção da escola (além de atribuir faltas injustificadas aos professores, repreendê-los publicamente, houve episódios particulares de coação contra alguns docentes), não recuaremos e não toleraremos mais tanta humilhação. Isso deve acontecer em todas as escolas que passam por problemas semelhantes, pois o Estado de São Paulo, o mais rico da nação, é um dos que pior pagam seus professores e que apresentam piores condições de aprendizagem. Mesmo com este contexto desolador, em 2011 não houve greve em São Paulo, fato que é muito estranho, já que houve greves de professores por todo o país. Talvez este breve relato ajude a entender como a Secretaria da Educação de São Paulo está agindo para coibir todo e qualquer "ato de insubordinação" dos professores e, assim, inibir toda e qualquer tentativa de se fazer uma gestão democrática de nossa educação. Lamentável. Grato, Erico