Hoje, pela manhã, a jornalista @cynaramenezes fez referência a este texto do Newton Moreno e, agora, no início da noite, @Be_neviani me encaminha.
Agradeço o presente com o perfume da prosa poética de Mia Couto, com um misto da sensibilidade dolorida dos romance de Paulina Chiziane ao falar das mulheres africanas de sua também terra natal: Moçambique.
Pensei também que temos autores com essa lavra de Moreno e temos Mervais eleitos para a ABL...
História que alguém me contou
Por: Newton Moreno, Ilustríssima
05/06/2011 Ilustração: Carcarah
UMA NEGRA BÊBADA tropeçou para dentro do metrô. Testou seus superpoderes, tentando se equilibrar com o vagão em movimento. Parecia surfar no ar já contaminado de seu bafo. Desafiava-nos com sua ousadia alcoólatra. Todos. Tenho certeza de que todos torciam por sua queda. Ela resistia e ria, zombando de nossas caras. Parecia-nos impossível para uma mulher tão alcoolizada manter-se de pé. Era uma questão de honra: tinha que cair. Iniciamos uma vibração silenciosa. Gargalhava. Uma voz antipática e sonolenta anunciou a próxima estação. A negra vitoriosa sentou-se. Conseguiu completar o percurso de uma estação a outra sem ameaçar uma queda. Esnobou. Nem nos olhou na cara. Mas começou a falar. Alto. Amplificada. Não abria os olhos e soava por todo o vagão. Decidiu nos comunicar tudo que pensava do mundo. Suas opiniões, estado d'alma, mal-estar físico, seu iminente vômito, os litros de cerveja, as marcas de cerveja, os rótulos das cervejas. A negra tagarelava e se calou apenas quando vomitou. Estabeleceu assim uma trincheira. Migramos todos para o outro canto do vagão, deixando-a só. Uma poça fétida. Um minuto sem a sua voz. O que parecia uma dádiva. Hospedou-se, por fim, na última cadeira. Tudo levava a crer que iria dormir. Braços cruzados, pernas esticadas, olhos fechados, cabeça inclinada. Aguardávamos o ronco. Esticávamos mesmo o ouvido para checar se dormia ou não. Uma velhinha deu dois passos para ver de perto, tapando o nariz. "Eu não dormi." Renasceu sonora e expulsou a velhinha de volta a sua cadeira. "Sabia que minha mãe era negra, e mãe dela, e a mãe da mãe dela?" Só então percebi suas tranças afro. Pareceu-me bonita. Duas oitavas abaixo, cantou alguma coisa em iorubá. Disse que não sabia a tradução. Disse que sua alma se perdia nas notas da canção. Como um disco em rotação alterada, iniciou uma narrativa. Tínhamos a impressão de que não conseguiria completar a frase seguinte. Mas partiu confiante e mágica, como os bons contadores de histórias. Era uma vez a África. Negros que corriam protegidos pelo sol. Amavam-se como negros e uns aos outros. Numa cidade do Atlântico, seus antepassados se casaram. Homem e mulher de grande beleza. Bentos pelos orixás, tementes a cada movimento da natureza. Da folha frágil que voava ao solo ao mais furioso trovão. Foram colhidos na noite de suas alegrias pelos homens sem cor. Isentos de sol. Os que descobriram que negro vale dinheiro. Ceifaram metade da aldeia. A mulher, negra parideira, queriam levá-la. Acorrentaram-na à noite. Na madrugada, transportariam fêmeas que gestariam dividendos para seu capital. Astuto, o homem invadiu o cativeiro. Libertou-a, mandando-a para a floresta. Vestiu seus panos. Envolveu-se no disfarce. Foi em seu lugar. Sua mãe amarrou-a à África numa árvore espessa. Cimentou-lhe os pés com cordas. Impediu que se atirasse no barco para ir junto. Ele viajou envolto em seu cheiro. Negros e negros eram semeados ao mar. Doentes, fétidos, raquíticos, loucos. Alguns choravam tanto que eles os jogavam às águas. Não aguentavam a insânia de suas dores. Mulheres deram cria no meio do esterco e dos cadáveres. Ele não largou seus panos. Desceu neste país e guardou sua alegria para o dia em que conseguisse voltar. Não sorriu desde então. Esperou pela alforria. Sobreviveu a anos sob um outro sol e chibata. Sem sorrir. Liberto pela nova lei, queria voltar. Ofereceu seus préstimos para trabalhar num navio. Limparia, lavaria, cozinharia, remaria. De pouco valem os braços de um velho cansado. Navios e navios partiam, e nenhum o aceitava. Clandestino, atirou-se a uma embarcação. Ocultou-se no porão, comendo restos de lixo, enfrentou o Atlântico para poder voltar a sorrir. Seus dentes nem estavam mais lá. Mas ele sorria ao sentir na brisa um cheiro de África. O canto dos pássaros, o céu, a cor da água, o sol. Quando, ao longe, já se via terra, atirou-se ao mar. Tinha pressa. Desembarcou junto com o dia na praia. Andou o litoral até chegar a sua aldeia. Estava mudada, mais vazia, alguns pescadores, alguns homens sem cor. Nenhum conhecido a princípio. A saudade baixou como um raio de tempestade: poderia tirar a vida de um incauto. Perguntou por sua mulher, por sua família, por seus amigos. Muitos foram levados para o outro lado do oceano. Mas a mãe sobrevivera. Encravada numa cama no núcleo da África. Num berço da selva, ungida pelos orixás, cantava seus filhos perdidos e pedia para não sofrer mais. Estava fraca do coração. Ele não sabia o que fazer. E se ela morresse ao vê-lo? Mas foi ela quem veio até ele. Pressentiu sua chegada. Arrumou-se contra a velhice. Abraçou-o como uma raiz envolve a terra. Elogiou sua força. Ele perguntou por sua mulher. A mãe calou num suspiro, por onde vazou sua alegria. "Ela fugiu para te encontrar. Entregou-se aos piratas. Foi na tua direção e morreu no mar. Iemanjá me confirmou. Iemanjá nanou essa filha. Desceu com ela para o fundo do mar para fazer um carinho. Conduziu com um cafuné até o outro lado." Foi até este ponto que ela conseguiu chegar. Agora, o ronco estrondoso enterrava-a no sono. Minha estação se anunciava na voz antipática do metrô. A negra dormia. Eu não poderia agradecê-la. Eu deveria? Por quê? A velhinha recolheu as lágrimas no rosto. O homem desapareceu para dentro do seu casaco. Eu queria acordá-la para ouvir mais ou para me redimir do meu comportamento anterior. Mas havia algo extremamente justo naquele sono. Como um troféu. Como um repouso. Como uma vitória. De alguém que tem que cruzar um Atlântico todos os dias para aguar seus mortos e entender quem é. Desci. Em algum lugar do outro lado do mar.
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