Como o professor Possenti já havia apontado neste artigo aqui, a falsa polêmica entre norma culta e falar coloquial só mostra o quanto a mídia institucional é analfabeta funcional:
Não deixe de ler também no Portal do MEC uma seleção de artigos sobre a falsa polêmica.__________ Publicidade //JORNALISTAS COM DÉFICIT DE LETRAMENTO
Prof. Dr. Wedencley Alves Santana, UFJF/NEAD, no CEPAD, publicado primeiro no blog do Nassif 24/05/2011
Diz o dito popular que médicos enterram seus erros. E os jornalistas os repercutem.
A falta de atenção e capacidade de compreensão do que diz o livro didático Por uma Vida Melhor, da editora Global, é indicativo de déficit de letramento entre jornalistas. Junte-se a problemas de leitura, interesses mercadológicos, ignorância científica, leviandade intelectual e oportunismo político.
São inúmeros os sintomas do déficit de letramento. Entre eles, dificuldade de relacionar textos (problemas com a intertextualidade), desatenção ao cotexto em que aparecem as sentenças e incapacidade de associar o texto ao contexto de enunciação - para não falar nas posições discursivas, mas isso é outra história.
O problema não é só encontrado no ensino básico. É comum que o déficit de letramento seja detectado também em outros níveis de escolaridade, mesmo entre aqueles que, em suas profissões, fazem largo uso da leitura e da escrita.
Linguístas já chamaram a atenção para o fato de que se estes jornalistas fossem submetidos ao PISA seriam reprovados.
Aqui a lista de jornalistas e intelectuais que precisam aprimorar sua leitura.
No caso deles, talvez não seja difícil.
Clóvis Rossi (Folha de SP): atribuiu aos autores do livro "crimes linguísticos" e "argumentos delinquenciais". Fundamentou seus ataques a uma pequena passagem do livro. O capítulo não era tão grande para ele se abster da leitura. Uma das marcas do déficit de letramento é a incapacidade de fazer correlações cotextuais. Interpretou "demonstração linguística" com "pregação linguística", o que não cabe a este ramo do saber.
Flávia Salme (IG): levou a escolas sua leitura equivocada do livro. Induziu alunos a se pronunciarem contra. No seu texto, confunde modalidade e registro com normas.
William Waack (Rede Globo): iniciou o programa Painel, da GloboNews, perguntando se é "certo ensinar errado". Tímido com a explicação de Maria Alice Setubal, professora convidada, pergunta :"Embarcamos numa furada?". Ela responde: "sim". Nem Afonso Romano o apoiou.
Mônica Waldvogel (Globo): a reportagem de abertura do programa Entre Aspas, por meio de um recorte descontextualizado do livro, induz os entrevistados a condenarem a obra, os autores e o MEC. Cala-se diante das intervenções de Cristóvão Tezza e Marcelino Freitas.
Jornalista do jornal O Globo (vários): as reportagens sobre o livro didático foram assinadas por vários jornalistas. Todos insistiram na tese - não confirmada - de que o livro contém "erros grosseiros de português".
Augusto Nunes (Veja): perseguiu a professora Heloísa Ramos, durante dias. A professora é consultora da revista Nova Escola, da própria Abril, a que serve o jornalista.
Reinaldo Azevedo (Veja): a partir de trechos soltos, confundiu demonstração linguística com pregação política. Partidarizou o que é consenso no campo da linguística internacional.
Merval Pereira (Globo): fez afirmações fora do escopo da obra: "o Ministério da Educação está estimulando os alunos brasileiros a cultivarem seus erros”. Não há passagem clara neste sentido no livro.
Carlos Alberto Sardenberg (Globo): chegou a afirmar que o livro defende o modo de falar do ex-presidente Lula. Não leu o livro.
A mea-culpa da Folha de São Paulo, no editorial "Os livro", não foi acompanhada do necessário pedido de desculpas aos autores da obra. A seu favor, deve-se frisar que o jornal publicou dois artigos que mostram que nem todos deixaram de se ater à obra para comentá-la. Ressalte-se aqui a honestidade intelectual de Hélio Schwartsman e de Thais Nicoleti de Camargo.
Quem mais criticou sem ler?
Marcos Vilaça (Presidente da Academia Brasileira de Letras). Caso gravíssimo. O presidente da instituição responsável pela memória das letras no país sequer teve o cuidado de consultar a obra. Acreditou no que foi levado pelos jornalistas. Desacreditou a instituição.
Ruy Castro (Escritor). Ele não leu o livro e se indignou com o que não havia sido escrito na obra. O escritor vive da leitura de livros. Mas ele mesmo não deu o exemplo.
Evanildo Bechara (Gramático). Cometeu o erro mais grave de sua carreira acadêmica. Criticou autores sem ter lido o livro. Um gramático não pode desconhecer a necessidade de ler para emitir juízos.
Edgar Flexa Ribeiro (Educador). Ele também não leu o livro e emitiu opinião a partir de trechos descontextualizados. Envolvido com educação, deu um passo em falso e será cobrado por isso.
Cristóvão Buarque (Senador). Sem ler o livro, diz que a obra pode prejudicar alunos. Este é um caso bastante sintomático. Como sua bandeira é a Educação, poderia ter sido mais cuidadoso ou pelo menos ter lido o capítulo em que aparecem as citações da imprensa. Sem fundamentação na realidade do que estava escrito no livro, declarou: "Existe um risco de se criar duas formas de falar o português" (existem várias formas de falar português, até porque toda língua é constituída por dialetos, como fica claro nas diferenças entre o Português Europeu e o Português Brasileiro); "os estudantes da rede pública, ao adotar erros de concordância verbal como regra, não terão a menor chance de passar em um concurso" (o livro em nenhum momento diz isso); "Tem que se ter em mente uma questão fundamental: sotaque e regionalismos são uma coisa, a língua portuguesa é outra" (esta diferença é absurda do ponto de vista das ciências linguísticas").
Todos os personagens acima devem desculpas à professora Heloísa Ramos e à ONG Ação Educativa. Eles se deixaram levar pela cobertura da imprensa. Pode-se desculpá-los por isso, mas é bom que reflitam.
Considero que estamos diante de um novo caso Escola Base, e todos que não se retratarem terão ajudado a constituir um novo crime de imprensa.
A professora Heloísa Cerri Ramos foi atacada pelos blogs da Veja, que tentaram ridicularizá-la. Já a Ação Educativa, com 15 anos de existência, e inúmeros projetos de pesquisa no campo da educação*, além de ações como pontos de leitura, também foi caluniada sem direito à resposta.
Todos estes jornalistas e intelectuais citados apresentaram problemas graves de letramento. Recomenda-se que repensem o que disseram e tenham a humildade de consultar o capítulo, antes de emitir novas opiniões.
Além disso, um pedido de desculpas não faz mal a ninguém.
A educação brasileira agradece.
* A ONG é responsável, junto com o Instituto Paulo Montenegro, pelo Indicador Nacional de Alfabetismo Funcional, pesquisa de acompanhamento permanente.