Pepe Escobar: o corpo que se decompõe no Mar da Arábia é de quem?

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O dia em que bin Laden desapareceu para sempre Por: Pepe Escobar, Al-Jazeera, Qatar 8/5/2011

“Omar, Omar”. Silêncio. “Omar, Omar”. Os estalidos do rádio pouco interferem no big bang das bombas de fragmentação que chovem de um B-52 sobre Tora Bora, nas montanhas Ghar [“brancas”] no leste do Afeganistão. A mensagem é clara: “Kandahar caiu” – diz o comandante Ali Shah, enrolado em seu cobertor cinza claro.

Os mujahidin sorriem sob os chapéus pakool de lã. Recarregam os tanques, as metralhadoras antiaéreas e as Kalashnikovs e continuam a esperar novas ordens do comandante Ali Shah. Um deles diz: “Osama está lá, sim, porque Kandahar está sendo conquistada.” Osama bin Laden havia sido visto pelos mujahidin dois dias antes, a cavalo, comandando seus soldados. Ou foi remix à mujahidin de Just My Imagination[1] acionado por haxixe do bom?

Osama conhecia a área extremamente bem. Combateu naquele terreno algumas de suas primeiras batalhas nos anos 1980. Miniterremotos sacodem a noite gelada no platô Bamo Khel. Os enormes B52s continuam a bombardear Tora Bora com intervalos regulares, depois de sobrevoar lentamente em círculos, no céu negro imaculado.

Numa ex-prisão Talibã – uma caixa de cimento ao lado de um depósito abarrotado de granadas, lança-foguetes, munição – 14 mujahidin do grupo do comandante Shah e dois jornalistas, Jason Burke do The Observer e eu, sentados sobre pilhas de cobertores de lã. “Omar, Omar”. Silêncio. “Omar, Omar”. O silêncio só é quebrado pelos estalidos do rádio e de madeira queimando – nossa única fonte de luz e calor.

Um dia na vida[2]

Dormimos numa sala literalmente tomada pela fumaça. Todos levantam às 4h para o desjejum do Ramadan – fatias azedas de pão sem fermento – e voltam à guerra em comboios de caminhonetes Toyota, uns brincando com granadas de mãos como se fossem malabares, alheios ao risco de nos mandar todos direto ao paraíso.

Os B52s recomeçam o balé circular mortífero. Flashes de luz aparecem nas montanhas. A menos de 3 quilômetros, uma concentração letal de mais de mil árabes, salpicada com uns poucos chechenos e uzbeques dispostos a lutar até o último homem está sendo incansavelmente bombardeada.

Os 2.000 mujahidin afegãos são os comandos de Hazrat Ali, então o “chefe para lei e ordem” em Jalalabad. São paquis – uma subtribo pashtun que tem língua e feroz código de guerra próprios. Muitos viveram anos em Peshawar durante o holocausto Talibã.

Do outro lado, o comandante árabe é o temido Abdul Kuduz – o mujahidin o conhece porque interceptou as comunicações por rádio da al-Qaeda. Mas nenhum deles fala árabe – e nenhum dos árabes fala o dialeto paqui. Durante todo o tempo que passei no front da última, crucial batalha da Guerra de 2001 no Afeganistão, os árabes só produziram fogo de morteiro, intermitente e em pontos isolados.

As posições da Al-Qaeda estão no ponto mais alto da segunda cadeia superposta de montanhas. É a região conhecida como Tora Bora – em cujo subsolo há uma complexa rede de cavernas, algumas naturais, algumas construídas. A face da montanha é incansavelmente bombardeada, bombardeio massivo, pelos B52. Do lado oposto da mais alta cadeia de montanhas ficam as áreas tribais do Paquistão, às quais só se chega por uma trilha de 80 km que contorna as montanhas. A guerra invisível[3]

O aspecto mais absurdo dessa guerra assimétrica, surreal, é a falta de coordenação entre os ataques devastadores dos B52 e F16 e a contraofensiva ultra lenta dos mujahidin. No tempo em que posicionam um Zu – arma antiaérea de dois canos da pré-história soviética – os B52 atacam três vezes.

Mas nada se iguala ao conhecimento dos mujahidin, sobre o terreno. Dizem que os EUA deveriam estar bombardeando a base da montanha, não o topo; mais tarde eu saberia que os comandados de Hazrat Ali, terceirizados pelo Pentágono, colecionavam malas Samsonite dos EUA cheias de dinheiro, e ofereciam informação falsa (a chamada “inteligência local”).

A “guerra invisível”, tão repetidamente evocada pelo então Supremo do Pentágono Donald Rumsfeld também se mostrou – no formato de duas caminhonetes com janelas pintadas: o duplo comando, pelas Forças Especiais dos EUA e pela SAS britânica. Foram surpreendidos e ficaram visivelmente incomodados quando encontraram ali dois jornalistas.

Dia 17/11/2001, com o regime dos Talibã já autodesintegrado, Osama bin Laden, sua família e um comboio de 21 Land Cruisers deixaram Jalalabad em direção a Tora Bora. No final de novembro, cercado pelos seus mais ferozes e mais leais mujahidin iemenitas, numa caverna fria e úmida de Tora Bora, Osama fez um discurso entusiasmado. Um de seus combatentes, Abu Bakar, depois capturado pelos mujahidin afegãos, disse que Osama os exortava a “manter firmes as posições e prepararem-se para o martírio. Muito em breve estarei outra vez com vocês.”

Poucos dias depois, dia 30/11, Osama – com quatro mujahidin iemenitas – deixou Tora Bora rumo à vila de Parachinar, nas áreas tribais do Paquistão. Andaram até lá sem serem perturbados. E sumiram para sempre. Never say die![4]

Dia 1/12, com os B52 bombardeando sem parar, Osama já deixara o prédio, como vários mujahidin disseram-me mais tarde. O ponto crucial é que – quando Osama já estava a salvo no Paquistão tribal, o general Tommy Franks no quartel-general do CENTCOM em Tampa, Florida, recebia ordem de Rumsfeld para concentrar-se em derrubar Saddam Hussein. O resto, como todos sabemos é (trágica) história.

No início de dezembro, eu encontraria também Pir Baksh Bardiwal, o homem responsável pelas operações de inteligência no leste do Paquistão, ele completamente sem entender coisa alguma. Por que o Pentágono bloqueia todas as trilhas óbvias para sair de Tora Bora, quando qualquer mujahidin de Hazrat Ali, pago pelos EUA, conhece aquelas trilhas de cor e salteado?

Só uns poucos jihadis árabes da al-Qaeda foram capturados em Tora Bora depois da partida de Osama; adiante, foram mandados para o nono círculo do Inferno de Dante em Guantánamo, com dúzias de coadjuvantes afegãos. A maioria dos combatentes da al-Qaeda que ficaram em Tora Bora morreram em combate como shaheed [“mártires”] e lá ficaram, enterrados nas ruínas do bombardeio modelo arrasa-bunkers. No que tenha a ver com o Pentágono, Pir Baksh disse nada menos que “A al-Qaeda escapou de baixo dos pés dos americanos”.

Adeus – apesar de Washington ter demorado nada menos que 3.519 dias, a partir do 11/9 para encontrar bin Laden “vivo ou morto”, como prometeu John Wayne Bush, a apenas 240 quilômetros de – você já adivinhou –, Tora Bora.

O problema é que o homem que foi visto vivo pela última vez dia 30/11/2001 foi declarado morto, mais morto, mais morto, incontáveis vezes. Um líder Talibã disse que aconteceu em meados de dezembro de 2001, perto de Tora Bora (disse que assistiu ao funeral); Osama não resistiu a um grave problema pulmonar.

No final de 2002, todos, do então presidente do Paquistão Pervez Musharraf ao presidente do Afeganistão Hamid Karzai, a inteligência de Israel e Dale Watson do FBI tinham certeza disso. E a Arábia Saudita demorou anos para, afinal, aparecer com a data ‘certa’: 23/8/2006. Ao longo dos anos 2000 confirmou-se que todos os vídeos em que Osama apareceu eram falsificações grosseiras.

Além do fato de que o principal conselheiro para contraterrorismo de Obama, John Brennan, ainda insiste que o Paquistão não estava no circuito do “assassinato seletivo”; além do fato de que Obama engoliu o que lhe disseram o serviço secreto e os militares paquistaneses; além do fato de que “fazer justiça” significa capturar, processar e julgar em tribunal e por juiz, e que “assassinato seletivo” é o mesmo que “assassinato premeditado” e é crime; além do fato muito suspeito de Washington não ter querido lucrar com a exibição do cadáver de Osama ao estilo da exibição do cadáver de Che Guevara (de fato, Osama é hoje, afinal, um mito, uma espécie de Xeique Guevara); além do fato de que a al-Qaeda já havia sido estrategicamente derrotada pela Grande Revolta Árabe de 2011, e, portanto, Osama, vivo ou morto, já era politicamente irrelevante – sobram ainda várias questões sem explicação.

E o corpo que se decompõe aos poucos nas águas do Mar da Arábia – será do mártir real, que escolheu, como prometera, não se render e morreu numa “troca de tiros”, segunda passada? Ou será cadáver cenográfico? ________________________________________

NOTAS [1] Sucesso da banda irlandesa Cranberries de rock alternativo, famosa na década dos 1990s. Just my imagination pode ser vista/ouvida aqui. Há tradução da letra aqui [NTs]. [2] Pode ser um simples "um dia na vida do Pepe Escobar", mas pode ser também A day in the life, dos Beatles, no álbum Sargent Pepper Lonely Hearts Club Band, de 1967. Pode ser vista-ouvida aqui [3] É um jogo. Alguma coisa sobre o jogo, aqui

[4] “Não desista”. Faixa-título do 8º álbum de estúdio da banda de heavy metal Black Sabbath, ainda com Ozzy Osbourne, lançado em 1978. A versão original pode ser ouvida-vista aqui. Tradução da letra em aqui __________ Publicidade //