Mais Sírio Possenti: Não, Folha de São Paulo, "o problema é bem mais em cima"

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No twitter o artigo de hoje do linguista, Sírio Possenti, publicado em sua coluna no Terra Magazine e replicado aqui foi muito bem recebido, @marinamiyazaki lembrou de outro bom artigo do autor sobre o tema, reproduzo-o também.

Variação e mudança

Por: Sírio Possenti, no Terra Magazine

27/11/2008

A maioria absoluta dos brasileiros - talvez não só os brasileiros - alfabetizados ou letrados tem uma idéia completamente equivocada do que seja uma língua. Para eles, língua é a que a escola ensina, ou o que está nos manuais do tipo "não erre mais". O resto é erro. Todos consideram que as variantes são erros.

Ocorre que o que a escola ensina também é mais ou menos variado. E depende muito também do desempenho lingüístico dos professores. Como eles são membros da sociedade, são afetados pelas mudanças que a língua sofre com o correr do tempo, de forma que seu "português" é, de alguma forma, o português de seu tempo. O que não é necessariamente ruim.

Isto quer dizer que o português que os professores falam e mesmo o que escrevem não é necessariamente o português dos livros adotados nas escolas. O que vale para professores de português vale também para os das outras disciplinas, claro. E vale também para os jornalistas e para as personalidades que eles entrevistam, tenham elas a formação que tiverem (em geral, são especialistas em alguma coisa, sempre especialistas). É só ouvir os debates ou os programas de entrevistas para verificar isso.

Dou dois exemplos banais. Duvido que haja 10% de professores ou falantes letrados que profiram o dito futuro (aplicarei minha poupança em ações da empresa X). Todos dizem "vou aplicar". Outro exemplo? Quase ninguém diz "nós". Diz-se "a gente". Como pouco se diz "tu", exceto em algumas regiões, a conjugação verbal do futuro é

Eu vou aplicar

Você vai aplicar

Ele/ela vai aplicar

A gente vai aplicar

Vocês vão aplicar

Eles/elas vão aplicar.

Ou não é? Quem não fala assim que atire a primeira pedra. Não vou dizer (!!) que todos falam sempre assim porque sei que uma língua sempre apresenta variação. Alguns entrevistados, ou jornalistas, dirão (!!), talvez, de vez em quando, no meio da conversa, "falaremos disso na próxima entrevista", claro, sendo mais formais. Em compensação, alguns também dirão "vamo falá disso na próxima veiz", sendo bem mais informais. E ninguém nota que falou errado durante a entrevista. Por que? Porque ninguém fala errado mesmo! Isso não é erro. Esse é o português falado culto do Brasil hoje. É um fato. Só isso.

Numa certa ocasião, fui entrevistado por uma emissora de TV (eu no estúdio e um folclorista em outra cidade). Argumentava que a linguagem popular não tinha nada de errado, era só diferente, e era enfrentado pela apresentadora que "defendia nossa língua". Para dobrá-la, só me restou um recurso: ficar atento ao que ela dizia e citar os "erros" que ela ia cometendo, segundo os próprios critérios dela. Ficou meio sem jeito, e eu tive que insistir que ela falava corretamente... o português real (e que aquele que ela defendia não existe mais, pelo menos na fala).

O que muita gente não entende - ou não quer entender, porque significaria perder uma boa teta! - é que a variação tem tudo a ver com a mudança. Todos acham normal que aquila tenha derivado para águia, que asinus tenha derivado para asno (tem muita coisa mudada aí, mas o básico é que a palavra latina proparoxítona se torna paroxítona), mas acha ridículas formas como fosfro (para fósforo), corgo (para córrego), xicra e chacra (para xícara e chácara), embora a regra antiga que explica a mudança e a atual que explica a variação sejam a rigor a mesma (os falantes seguem regras, não erram!!!), sem contar que dizem, numa boa, sem se dar conta do que fazem, xicrinha e chacrinha. Quá!

Variação tem tudo a ver com mudança. Mas, se entendêssemos isso, muita gente perderia uma grana preta!!

*** Pode até ser que o preconceito racial diminua com o tempo ou que venha a se manifestar de forma diferente, menos agressiva, mais "cordial" (como sugere o caderno especial da Folha de 23/11/2008). Mas o preconceito lingüístico está mais firme do que nunca (mais ou menos sutil): Fernando de Barros e Silva escreveu na Folha (24/11/2008) que o "pobrema" é mais embaixo. Por que uma forma lingüística popular representa um problema mais embaixo? É lá embaixo que está o povo? E o colunista diz isso logo em uma época em que ficou claro que o problema é bem mais em cima!!

A FSP, aliás, é useira e vezeira em referir-se a autoridades menos letradas como "otoridade" e a políticos nordestinos como aqueles que exercem o "pudê". Não se dá conta do que há nisso de preconceito? E de burrice?

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