Cristina Neme: Punições não bastam para conter violência policial

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Punições não bastam para conter violência policial, diz socióloga

Por: Por Fabíola Perez,  No Vermelho

15/05/2011

Num estado que já viveu o Massacre do Carandiru (1992) e os Crimes de Maio (2006), os abusos da repressão policial prosseguem em prática. Temida sobretudo pela população de baixa renda, a polícia de São Paulo até dispõe de instâncias de controle, como ouvidoria e corregedoria. Mas a rejeição popular à instituição é o que sobressai.

“Não basta apenas fazer um controle e punir as ações incorretas e ilegais”, declara ao Vermelho a professora da USP Cristina Neme, mestre em Ciências Sociais e especialista em Sociologia da Violência. “É preciso também transformar a instituição por dentro, através da formação e do treinamento, com esse conteúdo dos direitos humanos aplicado de forma transversal.”

Hoje pesquisadora da Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, Cristina aponta que as atitudes discriminatórias dos policiais reproduzem os próprios preconceitos da sociedade e a origem autoritária do Estado. “Existe um senso comum de que o brasileiro é cordial e não é violento, mas na verdade se está encobrindo um problema estrutural de uma sociedade escravocrata.”

Confira abaixo a entrevista. Vermelho: Como você avalia o uso da força policial empregada nas operações de grande porte, como a ocupação do Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro? Cristina Neme: O padrão dessas operações tem sido o de usar um forte aparato de força em intervenções pontuais, que acabam tendo um caráter pontual. A polícia, em geral, não permanece nesses locais. As regiões centrais, mais nobres, têm uma presença policial mais efetiva, com qualidade e permanência. Já nas áreas mais periféricas – sejam os morros do Rio de Janeiro ou as periferias de outras capitais –, há presença policial apenas em momentos de crise.

O grande aparato de força, com intervenções de caráter repressivo, não permanece como um policiamento preventivo, cotidiano. Isso acaba complicando a relação entre polícia e comunidade. A polícia não estabelece vínculo ou algum tipo de relação mais positiva com essa população.

Vermelho: Nessas operações, a polícia age, em grande parte das vezes, movida pelo preconceito racial ou pelo preconceito contra as minorias? CN: Há atitudes de preconceito em caráter institucional que reproduzem a discriminação existente na nossa sociedade. Quando a instituição policial acaba fazendo isso, é um complicador muito grande, que a prejudica em vários sentidos. Na hora de fazer essa abordagem, o policial está reproduzindo o preconceito, mesmo que ele não tenha essa intenção clara, como indivíduo. É uma coisa insuportável para as pessoas que são vitimas dessas ações – essa população pobre que está nas ruas, o jovem, do sexo masculino.

Vermelho: Qual é o treinamento ou a capacitação que a polícia recebe hoje para respeitar os direitos humanos dos chamados “elementos suspeitos”? CN: Houve muitas mudanças no treinamento e na capacitação dos policiais desde a redemocratização até hoje. Existe maior intercâmbio com a sociedade – mais diálogo hoje do que uma década atrás entre polícia e as universidades, a sociedade, a Cruz Vermelha, organizações dos direitos humanos nacionais e internacionais. Mas, por outro lado, até mudar as práticas no cotidiano é um longo caminho.

As mudanças não foram suficientes. Por exemplo, o efetivo da Polícia Militar de São Paulo é muito grande – o maior efetivo entre as polícias estaduais do Brasil. Leva tempo até você treinar, capacitar, requalificar, fazer os novos treinamentos ao longo da carreira. É um investimento muito grande, um custo grande em termos materiais, e os governos nunca querem tirar policiais da rua – querem sempre mais policiais na rua, porque é uma demanda da população.

Vermelho: Na prática, no contato com a população, a polícia cumpre seu papel de protetora ou é temida por ela? CN: Acredito, sim, que seja temida, principalmente pela população de baixa renda, periférica, que tem uma visão mais negativa da polícia do que as classes média e alta. Isso já foi mostrado por pesquisas. Embora todo mundo reclame, a visão mais negativa é dessa população que está nas margens, na periferia, que tem uma experiência mais negativa com a polícia, de abuso, de desrespeito. Há uma diferença de classes. A população que está nas classes mais baixas quer uma polícia mais democrática, que não faça apenas intervenções de caráter pontual e repressivo.

Vermelho: Existem mecanismos para ampliar a eficiência das ações policiais hoje e, ao mesmo tempo, minimizar o uso exacerbado da violência? CN: Isso tem de ser pensado em várias dimensões. Com relação a políticas públicas, há a dimensão do controle externo e interno, do controle da própria polícia e das instituições, do Judiciário e da sociedade. A ouvidoria é uma dessas instâncias de controle. O controle é necessário – toda instituição que tem o poder de usar o controle precisa ser controlada. É um poder do Estado muito grande, e ela tem de ser controlada com transparência.

Existem também as corregedorias, que fazem um controle interno. Mas não basta apenas fazer um controle e punir as ações incorretas e ilegais. É preciso também transformar a instituição por dentro, através da formação e do treinamento, com esse conteúdo dos direitos humanos aplicado de forma transversal – não apenas uma disciplina. A concepção do papel da polícia como uma instituição defensora dos direitos humanos é importante para garantir esses direitos, e essa consciência tem de estar em todas as práticas, sobretudo nas práticas operacionais.

A dimensão política é muito importante também. O que os governos dizem sobre o papel da polícia? Os governadores estaduais são as autoridades políticas que controlam as polícias. A mensagem – a ideologia do governo em relação ao uso da força – é fundamental também. Isso influencia muito toda a corporação policial.

Vermelho: Como você avalia a capacidade de resposta da polícia? CN: É difícil de avaliar. Mas o que se percebe, impressionisticamente, é que, como em outros serviços públicos, a tarefa policial é muito ampla – eles atendem desde ocorrências simples até as coisas mais complicadas e graves. O leque de atribuição policial é muito amplo, as demandas são numerosas e diversificadas. Por isso, é como se as políticas públicas fossem sempre insuficientes. É uma torneira aberta. Você está enxugando, mas a água continua caindo.

Vermelho: Como a fama de “cordialidade” do brasileiro se relaciona com o uso indevido da força policial? Há uma má interpretação desse conceito? CN: O Sérgio Buarque de Hollanda faz justamente a crítica a essa concepção positiva da cordialidade brasileira, essa fama da sociedade, que acaba encobrindo relações muito violentas. Existe um senso comum de que o brasileiro é cordial e não é violento, mas na verdade se está encobrindo um problema estrutural de uma sociedade escravocrata.

Isso vai se reproduzir nas instituições do Estado, que não nasceu de forma democrática. Tivemos muito mais momentos autoritários do que momentos democráticos. Agora, estamos em um dos períodos democráticos mais longevos da nossa história. Isso é uma conquista, mas as instituições ainda reproduzem uma lógica bastante autoritária.

Vermelho: O uso da força policial segue nesse caminho? CN: Na medida em que a polícia é a instituição que aplica a força e que é monopolizada pelo Estado, a violência policial exacerbada é um grande exemplo dessa violência do Estado que se perpetua na sociedade. Nem o cidadão comum, nem ninguém, pode usar a força de qualquer jeito. Na relação diferenciada que a polícia tem com as populações pobres, negras, ela está reproduzindo a lógica desse Estado autoritário. Essa ideia de que o brasileiro é cordial é, na verdade, o outro lado da moeda dessa sociedade que não é nada cordial.

Vermelho: A população de classes mais baixas tem plena noção de seus direitos para responder a esses abusos? Qual a atitude da população atingida? CN: Ela tem consciência, sim, e até tem canal institucional para se proteger, para reclamar. Por meio de associações, de corregedorias, eles sabem que podem fazer isso. Só que, muitas vezes, eles não têm respaldo – eles têm medo. É uma estratégia de sobrevivência. Num momento de intervenção comum, sem tanta luz, muita gente que denunciou foi morta.

Vermelho: Quando há violência por parte de alguns policiais, a solução é demitir pontualmente cada um dos executores da ação? Ou existe uma saída que corrija a instituição de forma conjunta? CN: Tem de haver uma reestruturação. Claro que individualmente os policiais precisam ser punidos, mas tem de haver uma mudança conjunta. As medidas têm de ser mais estruturais para conseguir mudar, porque é um problema da instituição. Punir apenas individualmente não resolve o problema.

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