Ontem não fiz absolutamente nada a não ser entrar em um profundo luto, coisa que parecia antiquada em tempos de naturalização da barbárie. Nele tentei buscar algum equilíbrio diante do horror factual de 12 crianças assassinadas dentro do espaço escolar e da espetacularização desta tragédia por uma mídia profundamente irresponsável e desrespeitosa.
Não me lembro de ficar tão chocada desde a chacina da Candelária, em junho de 1993, onde seis crianças e dois jovens (quando dormiam juntamente com mais de 70 crianças na escadaria da igreja da Candelária) foram assassinados.
Temos tendência de procurar explicações, porque precisamos entender o que é injustificável. Mas nenhuma explicação é fácil para esta situação. Reação ao racismo, ao bullying, à cultura de violência nas escolas ou o abandono e a desvalorização da educação pública por décadas de descaso governamental são problemas sérios que devemos sem dúvida agir buscando soluções efetivas, mas esses problemas não conseguem explicar o que ocorreu em Realengo.
Não adianta exigir que nossas escolas se transformem em cadeias, lembrando que a escola municipal Tasso da Silveira é uma escola com história acolhedora, inclusiva e tinha a 'segurança' da cultura moderna: câmeras nos corredores. Do que elas adiantaram?
Várias escolas estadunidenses além das câmeras têm detectores de metais, eles não impediram massacres como o que aconteceu ontem em Realengo; a Finlândia, país tido como modelo da melhor educação pública do mundo, já vivenciou tragédia semelhante a esta.
Heloisa Villela mostra que um estudo do serviço secreto estadunidense de perfis das dezenas de atiradores que provocaram chacinas em escolas, universidades e locais de trabalho nos EUA aponta que além de serem do sexo masculino nada mais nos ajuda a perceber a existência de um futuro matador. Eles são inclassificáveis como bem mostrou Flávio Gomes.
Proselitismos políticos e religiosos como os de Garotinho ontem, diante das câmeras de tevês, atribuindo como causa da tragédia o fato de sua lei oportunista ter sido revogada de nada nos ajudará. Ensino Religioso como o praticado na época do governo Garotinho tende ao proselitismo, a catequização, à intolerância religiosa, porque o currículo não é calcado na antropologia das religiões, na valorização da diversidade religiosa. Mas explicações de políticos proselitistas e fisiólogicos aparecerão. Veremos políticos conservadores e oportunistas afirmando que não temos 'deus no coração' e por isso estamos pagando caro, como afirmou com todas as letras o infeliz fundamentalista cristão, deputado Marco Feliciano. Aparecerão os do estilo Bolsonaro que atribuirão etiquetas e mais etiquetas nos adolescentes e exigirão medidas de segurança máxima em nossas escolas oprimindo ainda mais os adolescentes. Alex Antunes nos dá algumas pistas psicanalíticas para lidar com os moralistas de plantão. Ana Flávia C. Ramos também argumenta na linha de que nossas escolas não estão descoladas da sociedade.
Era possível evitar esta tragédia? Muito possivelmente não. Talvez se tivéssemos como política de saúde pública o atendimento psiquiátrico a todos. E é a falta de explicações racionais para o que aconteceu em Realengo que mais nos desespera, nada pode explicar a ação psicótica deste jovem que diante do desespero de crianças dentro da escola, onde o mesmo atirador estudou, não se sentiu comovido e executou à queima roupa 12 crianças, ferindo outras três dezenas delas.
O que nos resta? Precisamos tocar a vida, como fazem as vítimas da tragédia no Japão. Resta-nos recuperarmos a perspectiva proposta por Pablo Villaça: não nos condenar como espécie; não nos nivelar pela psicopatia. Lembrarmos de como nas redes sociais, nós brasileiros, nos mobilizamos pra fazer coro ao @hemorio e convocar os cariocas a se dirigirem aos bancos de sangue para doar sangue às crianças feridas que passaram por várias cirurgias. Devemos focar na solidariedade daqueles que correram pra socorrer as crianças, que fizeram fila no Hemorio:
Voluntários comparecem ao Hemorio para doarem sangue após pedido do próprio banco de sangue no Rio de Janeiro para atender os feridos no ataque na escola municipal Tasso da Silveira, em Realengo, zona oeste da cidade. Foto: Simone Marinho/Agência O Globo.
É importante que lembremos a esta imprensa irresponsável que em busca de audiência adora espetacularizar as tragédias, especialmente aos veículos que assumiram a defesa da indústria armamentista, que políticas públicas de desarmamento são saudáveis. A Capa de Veja durante o referendo sobre o comércio de armas que defendeu abertamente a indústria armamentista. Dados que mostram que o desarmamento provoca a queda abrupta de assassinatos de crianças.
É importante que façamos como Adriana e repudiemos toda a psicologização de quinta categoria dos jornalistas televisivos que sugerem que adoção, internet, deixar crescer a barba sejam indícios de qualquer coisa.
É importante que esta tragédia nos humanize mais, que choremos por nossos 'brasileirinhos':
Para depois, findado o luto, repudiemos com todas as nossas forças a violência e possamos proteger nossa espécie de nós mesmos.