Farinelli: Dilma em terra de homens

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DILMA EM TERRA DE HOMENS

por: Victor Farinelli*, de Santiago, Chile, especial para o Maria Frô

06/04/2011

Dejà vu!! Eis que vejo, sem muita surpresa, que a mídia brasileira, reunida na oposição a Lula (a quem continuam atacando), resolve dar uma trégua inicial a Dilma, a primeira mulher presidenta do Brasil, nos seus primeiros meses de mandato. Minha pouca surpresa não diz respeito aos meus dotes premonitórios, é que eu já vi esse filme antes, mas com outra atriz principal.

A ex-presidenta chilena Michelle Bachelet foi a primeira protagonista desse neoclássico da política sulamericana - Cristina Kirchner vive papel parecido na Argentina, mas com enredo muito mais dramático, como pedem os melhores tangos. Nos casos de Michelle e Dilma, até os arquétipos são os mesmos, a conferir:

1) a primeira mulher a chegar ao poder, socialista, com passado em organizações que combateram a ditadura em seu país, torturada por essa ditadura, questionada eleitoralmente por ser solteira, por ser atéia, mas eleita presidenta por ser a melhor figura do ministério de um governo com incontestável aprovação - Bachelet ocupou dois ministérios distintos no governo do seu antecessor, o da Saúde (ela é médica pediatra de formação) e o da Defesa, e foi bem sucedida em ambos. O mesmo ocorreu com a protagonista da versão brasileira, Dilma Rousseff, nos ministérios de Minas e Energia e Casa Civil.

2) o ex-presidente socialista pero no mucho, que sai do governo com uma popularidade que incomoda e muito a direita que governa a mídia nacional, que o vê como o verdadeiro inimigo a ser vencido para se conseguir a vitória no pleito seguinte. A diferença é que o intérprete brasileiro, Lula da Silva, não tem só respaldo popular, mas também origem. Na versão chilena, Ricardo Lagos tem origem acadêmica e gosto pelos bons e caros vinhos da Borgonha.

3) o candidato derrotado pela primeira presidenta, que já havia sido derrota em pleitos anteriores, que conta com respaldo total da mídia (os que não são seus amigos ou seus empregados, diretos ou indiretos, ele compra) e que organiza quatro anos de ofensiva comunicacional incessante, prá que seja impossível perder novamente as eleições, quando poderia, enfim, satisfazer seu desejo obsessivo de conquistar o principal cargo público do país. O intérprete da versão chilena é Sebastián Piñera, o empresário mais rico do país. O ator brasileiro é José Serra, que não é empresário mas tem o empresariado todo com ele.

4) a imprensa, ultradireitista, a serviço de uma elite racista, fascista e ortodoxamente católica e falsomoralista. A diferença da versão brasileira é uma elite que à vezes tenta posar enganosamente de liberal, enquanto a chilena não perde tempo escondendo seu preconceito doentio, já público e notório. No primeiro ato do filme chileno, a protagonista gozou da imunidade que a mídia lhe concedeu enquanto desconstruia a imagem de Ricardo Lagos, o antecessor que lhe deixou como herança a popularidade que a permitiu ser eleita - embora ela, como ministra, tenha ajudado a construir essa popularidade. O cenário é o mesmo da versão brasileira, na qual Dilma é até elogiada pela imprensa, que ataca Lula com mais vontade do que a vista em seus tempos de presidente vigente.

A dúvida está em como se desenvolverá a trama e como será o desenlace. De cara, é preciso dizer que a origem do Lula e sua ligação com o povo são muito mais difíceis de desmontar, que a do professor universitário Ricardo Lagos, que está mais prá FHC - aliás, Lagos é amigo pessoal do tucano. Mas nada é impossível, e a distância do poder tirou de Lula a possibilidade de se defender melhor da ira jornalística. Vou ser estraga prazerese e contar o final do filme, pois, neste caso, creio ser produtivo apontar como a história pode terminar.

No caso do Chile, passado o primeiro semestre de lua de mel, e uma vez que conseguiram finalmente perceber uma queda na popularidade de Lagos, a ultradireitista mídia chilena foi com tudo prá cima da presidenta. Era fácil encontrar motivos: o sistema educacional, todo ele privatizado, desencadeava uma revolução de estudantes universitários e secundaristas descontentes; o caos no transporte público da capital do país, também todo privatizado, era provocado por empresas concessionárias que chantageavam o governo por mais ajuda financeira estatal; a eterna crise energética do Chile, país totalmente dependente de combustíveis provenientes de países vizinhos, com quem tem relações historicamente conturbadas. Tudo isso era cobrado como se fosse culpa da sua recém iniciada gestão. Os preceitos eram sempre os piores: a presidenta não tinha pulso, não batia na mesa, estava perdida. O machismo da sociedade chilena, superior ao que se vê na sociedade brasileira, não perdeu a chance de apimentar o caldo. Não eram poucos os colunistas e comentaristas televisivos que insinuavam (alguns chegavam a dizer clara e maliciosamente, de forma chauvinista) que Michelle Bachelet não era capaz de impor sua liderança frente aos ministros homens por uma questão natural. Oscar Godoy, cientista político e amigo pessoal do atual presidente Sebastián Piñera, usava seu espaço dominical no canal estatal TVN prá repetir semanalmente seu mantra: "Bachelet é uma má presidenta, e creio que as pessoas, com esse exemplo, não vão querer outra mulher na presidência tão cedo". Dizia isso todo santo domingo, mesmo quando, na segunda metade do mandato, seus ataques começaram a fortalecer a presidenta.

Que não pensem que os ataques à presidenta detiveram a desconstrução do antecessor. Lagos, aliás, continua a ser atacado, mesmo após terminado o mandato de Bachelet. Porém, numa incrível resposta popular, e numa clara vitória do movimento feminista, os 39% que Bachelet reuniu ao termino do seu primeiro ano de mandato, foram quase duplicados ao final do segundo. Os ataques machistas, cada vez mais desavergonhados, despertaram uma reação nas mulheres, que deram o respaldo popular que animaram Bachelet a virar o jogo.

Entre os muitos acertos de Bachelet como presidenta está o de reforçar o seu vínculo com os mulheres, que já era forte quando ela foi eleita e apostou na imagem da mulher no poder prá animar o eleitorado feminino a seu favor. Como presidenta, ela transformou o Sernam (Serviço Nacional da Mulher) numa instituição realmente eficaz na antecipação dos problemas que geravam violência doméstica, agressão a mulheres e crianças, e finalmente no feminicído, o assassinato de mulheres por motivos passionais.

A mídia mordeu a isca. Passou a relatar os casos de feminicídio, como se isso pudesse atingir a presidenta. O aumento de casos de feminicídio relatados pela mídia deveria, segundo os colunistas do PIG chileno, questionar o trabalho do Sernam de Bachelet. Pelo contrário, o movimento feminista considerou uma vitória a chegada do tema ao noticiário nacional, finalmente. Inquieta, a mídia respondeu destacando que os índices de feminicídios iam em aumento, o que seria prova de incompetência do Sernam, e as feministas respondiam que antes da presidenta não havia um trabalho seguro de registro desses casos, como prá servir de base segura de comparação, e que era costume, anteriormente, maquiar os crimes contra as mulheres como se fossem meros acidentes domésticos, e que o trabalho do Sernam acabou com essa hipocrisia.

O apoio feminino maciço percebido por Bachelet manteve sua popularidade acima dos 80% até o final do seu mandato. A mídia perdeu a batalha por desconstruir a presidenta. Porém, o filme chileno não teve final feliz, e o empresário Sebastián Piñera (também conhecido como o Berlusconi chileno) ganhou as eleições de 2009, como a mídia queria. Por que isso aconteceu? Bom, na minha nunca humilde opinião, o fator primordial é o fato de que no Chile não existe reeleição. Está claro que Bachelet, com 83% de aprovação ao final do mandato, venceria tranquilamente se tivesse a chance.

O outro motivo é um alerta ao qual a protagonista brasileira deve estar atenta. O candidato governista a sucessor de Bachelet foi Eduardo Frei Ruiz-Tagle, o democrata cristão que tocou a política de privatizações nos Anos 90 (continuação das privatiações realizadas nos Anos 80 por Pinochet, ditador teleguiado economicamente pelos Chicago Boys), e que, dessa vez, queria se eleger com um cínico (por partir dele) discurso de fortalecer o estado. Esse é outro arquétipo que se apresenta igualmente em ambos os filmes: a Concertación, aliança governista de Bachelet e Lagos, unia o Partido Socialista e o Partido Democrata Cristão, mais ou menos comparáveis ao PT e ao PMDB, respectivamente. A diferença é que a Concertación governou por quatro mandatos consecutivos, e os dois primeiros foram de presidentes do PMDB, digo, do Partido Democrata Cristão do Chile.

O metafórico filme de Bachelet não é tão metafórico assim. A história toda está dentro de um livro que há meses lidera o ranking dos mais vendidos do Chile, e que conta toda a história acima relatada com riqueza de detalhes. Foi escrito pela periodista Patricia Politzer e, embora tenha suavizado a perseguição da imprensa sofrida pela mandatária, é um excelente trabalho jornalístico. Se chama "BACHELET EN TIERRA DE HOMBRES". Segundo o que li no noticiário político, esse foi o livro de cabeceira da Dilma no período entre a vitória dela no segundo turno e o dia da posse. Espero que tenha apreciado todas as lições ali contadas, e que tenha uma visão crítica de certos eventos ali narrados, prá que possamos ver um final diferente numa provável publicação de "DILMA EM TERRA DE HOMENS".

PS: não queria deixar de destacar também o epílogo dessa história, pelo menos na versão chilena, pois acredito que não seria muito diferente de um fictício Governo Serra, agora ou em 2014: Piñera venceu, enfim. Chegou a La Moneda e trouxe de volta ao palácio os velhos pinochetistas e a neodireita enrustida, aqueles que passaram anos negando ter ajudado a ditadura e que, uma vez de volta ao poder, resolveram sair do armário e hoje defendem abertamente o indulto aos militares presos por crimes contra os direitos humanos - e Piñera está a ponto de ceder, segundo ele, porque são octagenários e merecem o divino perdão cristão. Hoje, o Chile fala em privatizar o pouco de estatal que existe na Codelco (a Vale chilena) e a ideia do atual governo a respeito das novas jazidas descobertas no país é a mesma defendida por David Zylberstein desde a época da Petrobrax do FHC: "isso não é nosso, é de quem pegar primeiro". Também foi retomada a valorização do militarismo. Decretou-se guerra contras as drogas ao estilo Colômbia (Álvaro Uribe visita o país com frequência, em palestras para empresários) e contra o terrorismo ao estilo Estados Unidos - a Constituição chilena ainda é a mesma dos tempos de Pinochet e o seu pior mecanismo, ainda existente, é a chamada Ley Antiterrorista, uma aberração jurídica que permite acusações com "provas ocultas" (entenda isso como quiser), prisões arbitrárias e cerceamento do direito de defesa a suspeitos de terrorismo. Apesar do apoio maciço da imprensa, que o aplaude e o respalda em todos os seus atos, a popularidade de Piñera ao final do primeiro ano de mandato foi de 42%. Bachelet, hoje Secretária Geral da recém criada ONU Mulher, agência das Nações Unidas responsável por políticas de proteção às mulheres (ela é a primeira em exercer o cargo, na brevíssima história da entidade), apesar dessa distinção, passou a ser ignorada jornalisticamente, pois mesmo falar mal dela a mantém em evidência, e os ataques parecem ser contraproducentes, devido ao escudo feminista sobre sua imagem. Ainda assim, segue sendo a figura política chilena melhor avaliada pela opinião pública. Sua popularidade após deixar o governo chileno sempre foi e continua sendo superior aos 75%.

*Victor Farinelli é jornalista, com experiências vividas na Argentina e no Chile, onde se radicou em 2006. Acompanhou a trajetória de Bachelet desde a eleição que a levou ao poder. Siga-o no Twitter: @vfarinelli