Venício Lima: Não é bom para a cidadania saber como nosso dinheiro está sendo distribuído para empresas de comunicação?

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MARCO REGULATÓRIO Mais de duas décadas depois

Por Venício A. de Lima, no Observatório da Imprensa

12/4/2011

Em audiência pública na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática da Câmara dos Deputados, realizada no último dia 6 de março, o ministro das Comunicações, Paulo Bernardo, afirmou que o projeto para um marco regulatório do setor "se centrará em modernizar a legislação defasada e regulamentar os artigos da Constituição que tratam da comunicação" [ver aqui matéria da Agência Câmara].

Regulamentar os artigos da Constituição já seria um avanço importante.

Decorridas duas décadas e mais de dois anos da promulgação da Constituição de 5 de outubro de 1988, a inoperância do Congresso Nacional em relação à regulação do Capítulo V ("Da Comunicação Social"), Título VIII ("Da Ordem Social), já mereceu, inclusive, uma Ação de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO), que aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal (ver, neste Observatório, "Três boas notícias").

Benefícios para a cidadania

Ao contrário do que a grande mídia alardeia em sua campanha permanente contra qualquer tipo de regulação – o temor de que regular é censurar – existem inúmeras conseqüências imediatas e benéficas para a cidadania de uma possível regulação que cuidasse de "regulamentar os artigos da Constituição que tratam da comunicação".

Sem mencionar a consequência fundamental para o processo democrático que se refere ao aumento da quase inexistente diversidade e pluralidade de idéias e opiniões no espaço público midiático – menos perceptível para o conjunto da população –, e sem pretender ser exaustivo, basta ler os cinco artigos do Capítulo V para que se revelem exemplos de benefícios imediatos.

Artigo 220

O professor Fábio Konder Comparato, em recente entrevista, lembrou que o Inciso II do parágrafo 3º do artigo 220 manda que lei complementar estabeleça os meios legais que garantam à pessoa e à família a possibilidade de se defenderem da propaganda de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao meio ambiente. Tal lei não existe.

A Organização Mundial da Saúde, desde 2005, tem lançado advertências sobre os efeitos nocivos à saúde, provocados pela obesidade, sobretudo entre crianças e adolescentes. Neste sentido, a Anvisa – Agência Nacional de Vigilância Sanitária, baixou, em 15 de junho de 2010, a Resolução, RDC n º 24, regulamentado...

"...a oferta, propaganda, publicidade, informação e outras práticas correlatas, cujo objetivo seja a divulgação e a promoção comercial de alimentos considerados com quantidades elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio e de bebidas com baixo teor nutricional" (ver aqui).

A Associação Brasileira das Indústrias da Alimentação (Abia), vendo seus interesses empresariais contrariados, ingressou com ação na Justiça Federal de Brasília contra a Anvisa pedindo que esta não aplicasse aos seus associados os dispositivos da referida resolução, de vez que só uma lei complementar poderia regular a Constituição.

Resultado: a 16ª Vara da Justiça Federal suspendeu os efeitos da resolução em liminar posteriormente mantida pelo Tribunal Regional Federal da Primeira Região.

Não interessaria à cidadania, sobretudo a mães e pais de crianças, a regulação da propaganda de "alimentos considerados com quantidades elevadas de açúcar, de gordura saturada, de gordura trans, de sódio e de bebidas com baixo teor nutricional"?

Da mesma forma, não interessaria a regulação do parágrafo 4º do mesmo artigo 220, que se refere à propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias?

O parágrafo 5º do artigo 220, por outro lado, é aquele que reza que "os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio". Sua regulação teria, necessariamente, que restringir a propriedade cruzada – um mesmo grupo empresarial controlando diferentes meios (rádio, televisão, jornais, revistas, provedores e portais de internet), num mesmo mercado – como, aliás, acontece nas principais democracias contemporâneas. Ao mesmo tempo, deveria promover o ingresso de novos concessionários de rádio e televisão no mercado de comunicações.

Não interessaria à cidadania ter mais alternativas para escolher a programação de entretenimento ou de jornalismo que deseja ouvir e/ou assistir?

Artigo 221

Os quatro incisos do artigo 221 se referem aos princípios que devem ser atendidos pela produção e pela programação das emissoras de rádio e televisão. São eles: preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei; e respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Não interessaria aos produtores independentes de cinema e vídeo a geração de empregos, a promoção da cultura nacional e regional e o incentivo à produção cultural, artística e jornalística regional? E a todos nós o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família?

Artigos 222 e 223

Dos artigos 222 e 223 – deixando de lado a questão crítica das outorgas e renovações das concessões de rádio e televisão – talvez o benefício mais perceptível para a cidadania fosse a regulamentação do "princípio da complementaridade" entre os sistemas privado, público e estatal de radiodifusão. Combinado com a regulação do parágrafo 5º do artigo 220, possibilitaria o equilíbrio hoje inexistente no mercado das empresas de rádio e televisão com os benefícios já mencionados.

Artigo 224

O último dos artigos do Capítulo V cria o Conselho de Comunicação Social, que, apesar de regulamentado por lei de 1991, depois de precários quatro anos, deixou de funcionar em 2006. Registre-se: por responsabilidade exclusiva do Congresso Nacional (ver, no OI, "Quatro anos de ilegalidade").

O descumprimento da lei 8339/91, todavia, não deve impedir a criação dos conselhos de comunicação estaduais. Em alguns estados e no Distrito Federal eles já estão previstos nas respectivas Constituições. Quando isso não acontece, emenda aprovada nos legislativos estaduais poderá fazê-lo. Os conselhos constituem um importantíssimo instrumento, por exemplo, de acompanhamento e controle dos gastos públicos com publicidade, nos termos da lei 12.232/2010 (ver "Sobre inverdades e desinformação" e "Sopro de ar puro no DF").

Não interessaria à cidadania saber e controlar como seu próprio dinheiro está sendo distribuído pelos governos estaduais para a mídia regional e local?

Atraso extraordinário

Ao fim e ao cabo, o atraso do Brasil no que se refere à regulação do setor de comunicações continua extraordinário. Tanto é verdade que apenas a regulação de normas e princípios que estão na Constituição há mais de vinte e dois anos já significaria um avanço importante.

E mesmo assim, como se vê diariamente, essa eventual e ainda desconhecida proposta oficial de marco regulatório – tímida e insuficiente – enfrenta a feroz resistência organizada de atores da mídia tradicional.

Seria porque eles continuam se beneficiando com o velho status quo?