Paradoxos da refor-lução árabe Por: Asef Bayat*, em Jadaliyya Tradução: Marinilda Carvalho3/3/2011 Surgem preocupações atualmente na Tunísia e no Egito quanto a ações de sabotagem das elites derrotadas. Muitos falam, nos círculos revolucionários e pró-democracia, de uma insidiosa contrarrevolução. Não surpreende. Se revolução é luta intensa por mudança profunda, qualquer revolução deve esperar uma contrarrevolução, sutil ou grosseira. As revoluções francesa, russa, chinesa, iraniana e nicaraguense enfrentaram prolongadas guerras civis ou internacionais. A questão não é se a ameaça da contrarrevolução é esperada, a questão é saber se as "revoluções" são revolucionárias o suficiente para contrabalançar os perigos da restauração. Parece que as revoluções árabes são mais vulneráveis exatamente por sua peculiaridade: sua anomalia estrutural expressa na trajetória paradoxal das mudanças políticas.
Colagem JadaliyyaHistoricamente, destacam-se três tipos de mudança de regime. A primeira é a “mudança reformista”. Aqui, os movimentos sociais e políticos se mobilizam para exercer pressão sobre os regimes vigentes para que empreendam reformas com as instituições de Estado existentes. Apoiada na energia dos movimentos populares, a oposição obriga a elite política a reformar leis e instituições, muitas vezes com pactos sociais. Assim, a mudança ocorre no âmbito do regime político existente. A transição para a democracia em países como México e Brasil na década de 1980 foi dessa natureza. A liderança do movimento Irã Verde segue hoje trajetória reformista semelhante. Nesse modelo, a profundidade e a extensão das reformas variam. Pode ser superficial, mas pode também ser profunda se concretizada por reformas cumulativas de caráter legal, institucional e político-cultural. Diretas Já (Candelária, Rio, 16/2/1984)
O segundo é o "modelo insurrecional", em que um movimento revolucionário se constrói em período prolongado durante o qual reconhecida liderança e organização emergem com algum projeto futuro de estrutura política. Ao mesmo tempo em que o regime no poder resiste com a polícia ou o aparato militar, erosão gradual e deserções começam a rachar esse corpo. O campo revolucionário empurra para a frente, atrai desertores, forma governo paralelo e constrói órgãos de poder alternativo. A governabilidade do regime fica paralisada, levando a um estado de "dualidade de poderes". O estado de "poder dual" termina em batalha insurrecional em que o campo revolucionário assume o poder via força, desaloja os antigos organismos de autoridade e estabelece novos. Aqui temos uma reforma profunda do Estado, com novos funcionários, ideologia e modo de governo. A revolução iraniana de 1979, a Revolução Sandinista na Nicarágua e a revolução cubana de 1952 exemplificam tal curso insurrecional. A revolução islâmica iraniana
A terceira possibilidade diz respeito à "implosão do regime", quando o movimento revolucionário constrói-se com greves gerais e práticas de desobediência civil, ou por meio de guerra revolucionária que progressivamente cerque o regime, por fim implodindo-o. Ele cai na desordem total. Em seu lugar vêm elites e instituições alternativas. O regime de Ceausescu na Romênia implodiu em caos político e violência dramáticos em 1989, mas originou grande diversidade de sistemas políticos e econômicos sob a nova estrutura, a Frente de Salvação Nacional. A Líbia de Kadafi pode experimentar essa implosão se a insurgência revolucionária continuar a estrangular Tripoli. Tanto na "insurreição" como na "implosão", e ao contrário do modelo reformista, as tentativas de mudar a estrutura política não se realizam com instituições preexistentes no Estado, mas fora delas. A revolução romena
Agora, a revolução do Egipto, tal como a da Tunísia, não se parece com essas experiências. No Egito e na Tunísia, os poderosos levantes políticos criaram as mais rápidas revoluções de nosso tempo. Tunisianos em um mês e egípcios em 18 dias conseguiram desalojar antigos governantes autoritários, desmantelaram várias instituições a eles associadas, incluindo os partidos do governo, o corpo legislativo e ministérios, estabelecendo uma promessa de reforma constitucional e política. Tudo isso de maneira civil, pacífica e rápida. Mas esses espantosamente rápidos triunfos não deixaram muito tempo para a oposição construir instituições paralelas de governo capazes de tomar o controle do novo Estado. Em vez disso, a oposição quer que as instituições dos regimes antigos – por exemplo, a militar, no Egito – realizem as reformas em nome da revolução, ou seja, que mudem a Constituição, assegurem eleições livres, garantam partidos políticos livres e, no longo prazo, institucionalizem o governo democrático. Aqui também reside anomalia-chave dessas revoluções – desfrutam de enorme poder social, mas lhes falta autoridade administrativa; conseguem hegemonia notável, mas na verdade não governam. Assim, os regimes permanecem: não há novos órgãos de governo que incorporem a vontade da revolução. O Muro de Berlim (logo) vai abaixo
É verdade que, como seus homólogos árabes, as revoluções do Leste Europeu do fim dos anos 1990 também não foram violentas, mas civis e notavelmente rápidas (a revolução da Alemanha Oriental durou 10 dias), mas conseguiram, ao contrário de Tunísia e Egito, transformar completamente os sistemas político e econômico. Isso foi possível porque implodido o Estado comunista a Alemanha Oriental pôde simplesmente dissolver-se na já existente Alemanha Ocidental. Em geral, uma vez que a diferença entre o que a população do Leste Europeu tinha (partido e Estado comunista) e queria (democracia liberal e economia de mercado) era tão radical, a trajetória da mudança tinha de ser revolucionária. Se fosse apenas reformista teria sido facilmente detectada e reprimida. Algo diferente das revoluções árabes, nas quais as demandas de “mudança, liberdade, justiça social” são amplas o bastante para serem encampadas até pela contrarrevolução. Por isso, as revoluções árabes lembram mais a Revolução das Rosas da Geórgia em 2003 e a Revolução Laranja da Ucrânia (novembro 2004-janeiro 2005): em ambos os casos, maciços e prolongados protestos populares derrubaram o governo. Assim, a trajetória da mudança parece mais reformista do que revolucionária, no sentido estrito. Revolução das Rosas (Tbilisi, Geórgia)
Mas há um lado mais promissor nos levantes políticos árabes. É inegável o modelo revolucionário poderoso nestes episódios políticos, que os tornam mais profundos que os da Geórgia ou da Ucrânia. Na Tunísia e no Egito, a partida dos governantes despóticos e seu aparato de coerção abriram espaço sem precedentes para os cidadãos livres, em especial os subalternos. Como na maioria dos momentos revolucionários decisivos, enorme energia foi liberada na política. Partidos clandestinos vieram à tona e novos se estabelecem. Organizações sociais se tornaram mais vocais e extraordinárias iniciativas populares estão em andamento. No Egito, os trabalhadores, sem medo de perseguição, agressivamente defendem suas reivindicações, pressionam por novos sindicatos independentes, e alguns deles já formaram a "Coalizão Operária Revolução 25 de Janeiro” para afirmar os princípios revolucionários de "mudança, liberdade e justiça social". Os pequenos agricultores (com menos de 10 feddans) nas zonas rurais estão se organizando em sindicatos independentes, outros continuam lutando pela melhora de salários e condições. A primeira organização dos Moradores de Ashwa'iyyat Cairo (favelas), criada recentemente, conclama à remoção de administradores corruptos e à extinção conselhos locais patrocinados pelo regime. Grupos de jovens se organizam para limpar as áreas de favela, participam de obras de reforma e recuperam seu orgulho civil. Estudantes saem às ruas para exigir do Ministério da Educação que revise os currículos. As histórias da cooperação entre coptas e muçulmanos no combate a rumores e provocações sectários já são conhecidas. E, claro, a Frente Revolucionária Tahrir continua a exercer pressão sobre os militares para que acelerem as reformas. Tudo isso representa engajamento popular de tempos excepcionais. Mas o extraordinário sentido de libertação, o desejo de autorrealização, o sonho de uma nova e justa ordem, em suma, o desejo de "tudo o que é novo" define o espírito dessas revoluções. Nesses momentos decisivos, estas sociedades foram muito à frente de suas elites políticas, expondo a anomalia dessas revoluções – a discrepância entre o desejo revolucionário do "novo" e um caminho reformista que pode levar ao “velho”. Revolução Laranja (Kiev, Ucrânia)
Como então tiramos sentido das revoluções árabes? Não podem ser caracterizadas nem como "revoluções" nem como simples "reforma". Em vez disso, podemos falar em “refo-lutions” – revoluções que pressionam por reformas de dentro, com as instituições dos Estados preexistentes. Como tal, as refoluções expressam processos paradoxais: algo a ser protegido e ainda assim vulnerável. Refoluções têm a vantagem de garantir a transição ordenada, evitando violência, destruição e caos, males que aumentam dramaticamente o custo da mudança. Além do mais, o excesso revolucionário, o "reinado de terror", a exclusão, a vingança, os julgamentos sumários e as guilhotinas podem ser evitados. E há as possibilidades de transformação real por meio de pactos sociais, mas apenas se a sociedade civil, a base, associações, sindicatos e movimentos sociais, continuam vigilantes, mobilizados e exercendo pressão. Caso contrário, refoluções carregam em si os perigos da restauração contrarevolucionária precisamente porque a revolução não foi feita nas instituições-chave do poder do Estado. Podemos facilmente imaginar atores poderosos, feridos por levantes populares, buscando desesperadamente se reagrupar, iniciar sabotagem e instigar a contrapropaganda. Ex-altos funcionários do Estado, apparatchiks do antigo partido-chave, editores-chefes, grandes empresas, os serviços de informação, para não mencionar os militares, podem penetrar no aparelho de poder e propaganda para transformar as coisas em seu benefício. O perigo pode ser especialmente maior quando desaparece o fervor revolucionário, a vida normal volta, a dura realidade da reconstrução se impõe, e a população fica desencantada. Há pouca chance para mudanças significativas sem que se transformem refoluções em revoluções.
*Asef Bayat: Professor de Sociologia e Estudos de Oriente Médio na University of Illinois, Urbana-Champaign. Coautor de Being Young and Muslim (Oxford University Press, 2010) e autor de Life as Politics: How Ordinary People Change the Middle East (Stanford University Press, 2010).
"a questão é saber se as "revoluções" são revolucionárias o suficiente para contrabalançar os perigos da restauração"
Escrito en
BLOGS
el