O Brasil de Lula Por: Perry Anderson, London Review of Books, vol. 33, n. 7, 31/3/2011, pp. 3-12 [excerto, trecho final], Tradução: Vila Vudu
“A geração que chegou ao poder naquele período havia passado por dois tipos de derrota: derrotados pelas ditaduras que esmagaram a esquerda imediatamente depois da Revolução Cubana e derrotados pelos sistemas de livre mercado que foram, para uns o preço, para outros o prêmio, da democratização. Essas derrotas misturaram-se numa única herança. Formas anteriores de radicalismo, político ou econômico, foram apagadas da pauta social. Mas as massas tampouco abraçaram com paixão os regimes neoliberais para os quais os generais haviam pavimentado o caminho. (...) Pela primeira vez, os brasileiros politicamente ativos estavam conectados numa rede continental com os povos falantes do espanhol nas Américas.
As solidariedades daquele período continuam ativas na paisagem política de hoje entre os governantes de esquerda, o que deu ao Brasil ambiente acolhedor. Numa dialética regional, as diferenças entre todos foram trabalhadas não raras vezes para beneficiar todos, com Lula estendendo um manto de amizade protetora a regimes – Bolívia, Venezuela, Equador – mais radicais que o seu, beneficiando-se, ao mesmo tempo, na opinião internacional, de uma opinião favorável, na comparação, entre sua moderação e o extremismo dos outros.
No mesmo período, o contexto internacional foi benéfico para o Brasil, além do cenário regional. Por um lado, os EUA deixaram de poder manter-se absolutamente concentrados no continente, depois que declararam a Guerra ao Terror no Oriente Médio e no Oriente mais remoto e na África. Com o Iraque, Afeganistão, Iêmen, Paquistão, Egito como linhas de frente da sua estratégia, os EUA, não tinham como dar muita atenção ao hemisfério.
Bush fez uma visita distraída a Brasília, e Obama deve fazer a sua, nesse mês de março. Haverá efusivas saudações ao primeiro presidente mulato dos EUA, como os brasileiros o veem (...). Mas ninguém espere que a visita venha a ser qualquer coisa além de cerimonial. Os mecanismos de supervisão, que ainda operavam com eficácia no governo de [Fernando Henrique] Cardoso, agora enferrujaram. Não só as incursões militares pelo oriente ao longo da última década, mas a bolha financeira que os precedeu e acompanha, enfraqueceram as relações entre EUA e Brasil, com vantagem para o Brasil.
Depois que a economia dos EUA passou a ser dependente de injeções cada vez mais fortes de dinheiro barato – primeiro, nos governos Clinton e Bush mediante taxas de juro muito baixas, e agora, no governo Obama, graças às máquinas de imprimir dinheiro –, o capital externo necessário para sustentar o crescimento da economia brasileira tornou-se cada vez mais e mais acessível, e a custos cada vez mais baixos. Se o fluxo de dinheiro ameaça hoje afogar o real, aí está outro, mais um, sinal perverso de o quanto se alteraram as posições relativas de EUA e Brasil. Para o Brasil, ainda mais decisivo que o encolhimento dos EUA, foi a ascensão da China como poder econômico, principal mercado para os dois principais itens de exportação do Brasil e fiel do equilíbrio da balança comercial brasileira. O longo boom chinês afetou todo o planeta, mas o Brasil talvez tenha sido o país no qual fez a maior diferença. Enquanto os EUA naufragavam e a República Popular da China viajava com vento de popa, esses mesmos ventos abriram passagem para uma nova direção social.
Se se manterão os avanços que o Brasil obteve é questão hoje indecidível. Não há dúvida de que houve uma emancipação. Mas a história do Brasil oferece paralelo e antecedente que justifica muitos temores. No final do século 19, a escravidão foi abolida no Brasil virtualmente sem derramamento de sangue, o que contrasta com o virtual massacre no qual terminou, não previsto nos movimentos iniciais da mesma abolição, nos EUA. Mas o preço que se pagou pela abolição no Brasil não foi baixo só no número de mortos em guerra: o preço da terra era também muito baixo, então, porque a emancipação foi tardia, quando a população de escravos já diminuía e a economia da escravatura estava em estado avançado de declínio. Não foi só negócio entre as elites; o abolicionismo popular também teve iniciativas imaginativas, embora sem agitação social de monta. Mas quando veio, os donos de escravos de modo algum estavam arruinados, e os escravos só conquistaram a liberdade formal, legal. Em termos sociais, os efeitos imediatamente posteriores foram modestos: o principal deles foi o aumento da imigração de trabalhadores europeus.
Vê-se aí, talvez, mutatis mutandis, alguma semelhança com o Bolsa Família, o crédito consignado, o salário mínimo? Lula gostava de dizer que “Cuidar dos pobres é barato e fácil”[1]. Estimulante? Perturbador? A ambigüidade moral dessa frase pode fazer dela uma espécie de epitáfio do governo Lula. Comparado aos antecessores, Lula teve imaginação suficiente, nascida da identificação social, para ver que o estado brasileiro tinha dinheiro para ser um pouco mais generoso com os mais pobres, e o fez ser, por vias que fizeram diferença substancial na vida de milhões de pessoas. Mas essas concessões custaram pouco aos ricos, os quais, qualquer conta que se faça, ganharam mais – muito mais – nesses anos, do que jamais antes.
Pode-se perguntar se isso faz alguma diferença real. Não será exatamente o que se espera de projetos só econômicos, um optimum de Pareto? Onde ou quando o ritmo do crescimento não se mantiver, os descendentes dos escravos talvez revivam tempos não muito diferentes dos tempos da abolição. Desde o tempo em que foi adotada, logo depois da abolição da escravatura, o motto Comteano inscrito na bandeira do Brasil – Ordem e Progresso –, sempre foi esperança desfraldada ao vento. Progresso sem conflito; distribuição sem redistribuição. Historicamente, não parecem momentos semelhantes?
Mas talvez os tempos não sejam os mesmos. A última década não assistiu a qualquer mobilização das classes populares no Brasil. O medo da desordem e a aceitação da hierarquia, que mantêm os movimentos populares separados entre si na América Latina são legado da escravidão. Mas embora a melhoria material não seja empoderamento social, uma pode levar ao outro.
O extraordinário peso eleitoral das populações mais pobres, somado à gigantesca escala da desigualdade econômica, para não falar da injustiça política, faz do Brasil uma democracia diferente de qualquer outra do norte, mesmo daquelas nas quais as tensões de classe foram um dia muito mais altas, ou o movimento trabalhista muito mais forte. A contradição entre essas duas magnitudes só agora está começando a operar. Se o melhoramento passivo algum dia levar à intervenção ativa, a história, dessa vez, poderá levar a outro resultado.”
[1] “A coisa mais fácil para … um presidente da República é cuidar dos pobres. Não tem nada mais barato do que cuidar dos pobres.” Foi dito em discurso aos novos ministros, dia 31/3/2010. Naquela ocasião, já se convertera numa espécie de motto, repetido em várias ocasições.