Pepe Escobar: A Rainha Hilária da Líbia

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A Rainha Hilária da Líbia Por: Pepe Escobar, Asia Times Online 31/3/2010

O impasse na Líbia pode arrastar-se por semanas, se não por meses. Nesse caso, cresce a possibilidade da balkanização. Pensem numa Líbia Leste, capital Benghazi, rica em petróleo e sob governo-fantoche lá posto pelos EUA (um Hamid Karzai líbio, como o presidente do Afeganistão). Seria uma espécie de Arábia Saudita norte-africana (a Casa de Saud adoraria).

E pensem numa Líbia Oeste, capital Trípoli, empobrecida, irada e governada por Muammar Gaddafi e filhos. Se acontecer, estaremos de volta aos anos 1950s: a Líbia como a nova Coreia. Ou, ainda pior, de volta aos anos 1960s: a Líbia como o novo Vietnã.

Vietnã? Não surpreende que um paranóico consórcio EUA-franco-inglês faça de tudo para derrubar Gaddafi. Não querem meio Bolinho Primavera: querem o Kebab inteiro.

O discurso da rainha

O novo fazedor de governos líbios é fazedora, uma rainha, a secretária de Estado Hillary Clinton. Qualquer dúvida que ainda houvesse de que o Departamento de Estado trabalha freneticamente para construir um novo fantoche-governo, apimentado com colaboradores anglófonos, desapareceu depois da conferência de Londres sobre a Líbia.

A oposição “oficial” líbia se autodenominava tautologicamente “Conselho Nacional Interino de Transição” [ing. Interim Transitional National Council]. Agora é “Conselho Nacional Interino” [ing.Interim National Council (INC). Quem correr à procura de abrigo, ao simples som da sigla INC está antecipadamente justificado. A sigla traz aterradoras memórias do Iraqi National Congress[Congresso Nacional Iraquiano] inventado por Washington[1], com as fabulosas e fabuladas “armas de destruição em massa”, na antevéspera da invasão do Iraque em 2003.

E quanto ao novo comandante militar do INC Khalifa Hifter – ex-coronel do exército líbio que passou quase 20 anos em Vienna, Virginia, não distante da CIA em Langley? Os progressistas adorarão saber que seus românticos “rebeldes” são agora comandados diretamente por homem da CIA.

Na conferência de Londres, o INC lançou em grande estilo seu muito atenta e profissionalmente redigido manifesto político – “Uma visão da Líbia democrática” [ing. A vision of democratic Líbia, 29/3/2011, Guardian]" – no qual juntaram todas as frases certas e acertados ruídos: liberdade de expressão, eleições presidenciais e parlamentares e, crucialmente importante, a promessa de “um estado que recebe força e energia de nossas mais fortes crenças religiosas na paz, verdade, justiça e igualdade”.

É linguagem em código – extremamente polida – para fazer referência ao islã na Líbia pós-Gaddafi (sem fazer arrepiar as penas seculares ocidentais). Além da redação em inglês impecável, a coisa toda grita o que de fato é “peça vil de propaganda preparada por redatores profissionais de Relações Públicas ocidentais”. O Conselho jura que a plataforma foi redigida originalmente em árabe. Mas, não. Definitivamente não é trabalho do Google Translator.

Portanto, o INC declara que o oriente entregará ao ocidente, como paga pelos Tomahawks, Tornados e Rafales, uma democracia secular. Outro poderia dizer que uma coalizão de oportunistas e militares desertores surfou a onda da radicalização de massas no norte da África, lucrou com a falta de lideranças políticas na classe média e entre os trabalhadores e conseguiu montar uma aliança militar com o imperialismo ocidental. Qual das duas versões é mais plausível?

No momento, o INC está sendo exibido em todo o planeta, para ser visto como fantoche do ocidente – totalmente dependente de apoio político e militar. Bem vindos à Líbia convertida em mais uma base de operação avançada ao estilo do Pentágono – para vantagem do próprio Pentágono (via AFRICOM), das majors ocidentais do petróleo, e de todos os tipos imagináveis de negócios escusos anglo-franco-norte-americanos (ver “Não há business como o guerra-business”, Asia Times Online, 30/3/2011, em português aqui). Bem vindos à nova Líbia que abrigará uma base militar dos EUA e acolherá exercícios da OTAN e não gastará dinheiro do petróleo em projetos de desenvolvimento na África subsaariana.

Como importantes atores internacionais – os países BRICSs e a Alemanha – já alertaram, a resolução n. 1.973 do CSONU está sendo mais torcida que um biscoito pretzel. A rainha hilária já diz abertamente que é legal armar os “rebeldes”. Outra soldada da brigada feminina de combate da rainha hilária, a embaixadora dos EUA na ONU Susan Rice, disse que os EUA “não descartaram” armar os rebeldes – repetindo exatamente as palavras do presidente Barack Obama. Impressionadíssimo, o ministro de Relações Exteriores da Grã-Bretanha William Hague macaqueou as anteriores. Idem, o Qatar.

Enquanto isso, a OTAN assumiu. Literalmente. A partir da 3ª-feira, os ataques aéreos da OTAN serão comandados do Centro de Operações Aéreas Combinadas da base de Poggio Renatico na Itália, 40 quilômetros ao norte de Bologna. Mas isso é só o começo.

O almirante James Stavridis, comandante supremo aliado da OTAN para a Europa disse em audiência no Senado em Washington que a OTAN não considera usar forças terrestres na Líbia post-Gaddafi – não, pelo menos, por hora. Mas como a OTAN instalou forças de paz nos Bálcãs, Stavridis acrescentou, "a possibilidade de um regime de estabilização existe”.

E eis aí, então, o pacote completo: um regime-fantoche do ocidente; coturnos ocidentais de ocupação “no solo”; um raquítico protetorado ocidental. Adeus à soberania da Líbia. E, isso, só umas poucas horas depois de Obama ter apaixonadamente declarado ao mundo que se tratava de missão humanitária.

É preciso uma completa suspensão da capacidade de duvidar, para conseguir acreditar que um governo Obama que continua a disparar aviões-robôs armados contra civis no Afeganistão, no Paquistão, no Iêmen e – agora e então – também na Somália, estaria muito gravemente preocupado com proteger civis líbios.

A ‘democrática’ Israel pode bombardear 1.500 civis libaneses em 2006 ou assassinar quase 1.500 civis no inverno de 2008/2009  em Gaza – e a ninguém ocorreu arrancar resoluções da ONU nem disparar Tomahawks dos céus, nem se ouviram arrogantes imperialistas humanitários a invocar, em massa, qualquer R2P (“responsabilidade de proteger”).

Em 1999, a OTAN quase destruiu Belgrado para “proteger civis” no Kosovo. Imediatamente depois, o Kosovo converteu-se em protetorado infinitamente corrupto governado por uma máfia das drogas. Legiões de neoconservadores diziam que a razão real pela qual os EUA invadiram o Iraque foi “proteger” iraquianos contra o ditador do mal Saddam e criar democracia (mediante choque e pavor).

Fato indiscutível é que Washington – dessa vez com ajuda anglo-francesa – está bombardeando mais uma capital árabe e muçulmana. E por milagre – se alguém ainda acredita no que diga o Pentágono – com zero de “danos colaterais”.

E quanto à Costa do Marfim?

Na Costa do Marfim, está-se a um passo de verdadeiro genocídio. Já há quase um milhão de refugiados internos. A “comunidade internacional” – que atualmente parece ser formada só de EUA, França, Grã-Bretanha, alguns poucos países da OTAN e umas poucas ditaduras árabes, com o Qatar como a superstar – não deu um pio.

Laurent Gbagbo perdeu as eleições presidenciais na Costa do Marfim, mas não reconheceu a derrota. Controla gigantesca milícia armada até os dentes – e vão usar todas as armas que têm contra eleitos e intelectuais da oposição e líderes da sociedade civil. Todos os que tenham apoiado o candidato eleito, Alassane Ouattara, são alvos declarados.

Alguém ouve aí ecos de Gaddafi? Melhor que isso: aí se ouvem ecos de Rwanda em 1994, de Uganda em 2008 e do Congo durante os anos 1990s. Não algumas centenas de civis mortos, mas centenas de milhares de civis mortos (no caso do Congo, provavelmente quase quatro milhões). Nem um cacarejo sobre alguma “responsabilidade de proteger”, emitido pela “comunidade internacional”.

Se o consórcio EUA-franco-inglês estivesse realmente interessado no fim da violência na Líbia, a única solução sensível teria sido despachar para lá uma comissão de investigação da ONU para conhecer os fatos em campo. Hoje, ninguém sabe com precisão quantos civis foram mortos pelas forças de Gaddafi nem quantos ataques aéreos foram disparados por seu exército. E ninguém tampouco sabe quantos negros africanos foram estuprados e assassinados pelos “rebeldes” que identificam todos os negros como mercenários de Gaddafi.

Gaddafi já aceitara a inspeção por uma comissão independente da ONU. A primeira medida de quem deseja exercer a “responsabilidade de proteger” não é bombardear cidades com Tomahawks. É buscar mediadores, exigir um cessar-fogo e iniciar negociações.

O primeiro-ministro turco Recep Tayyip Erdogan está correto, quando diz que essa guerra “humanitária” vai-se rapidamente convertendo num “segundo Iraque” ou em “mais um Afeganistão”. Também disse que a Turquia está conversando com Gaddafi e com o INC. Faz todo o sentido que – como membro da OTAN – a Turquia tenha exigido para si o controle do porto e do aeroporto de Benghazi, para acelerar a distribuição de ajuda humanitária. Se algum cessar-fogo houver, terá sido por exclusivo mérito da Turquia – que continua a trabalhar incansavelmente para estabelecer um corredor humanitário, com apoio dos italianos. O neonapoleônico presidente francês libertador de árabes Nicolas Sarkozy sentir-se-á pessoalmente ofendido com qualquer tipo de paz.

A Turquia é também importante ponte com a União Africana – que foi absolutamente marginalizada pelo consórcio EUA-França-Grã-Bretanha. França e Grã-Bretanha, já absolutamente paranóicas com as ondas de migrantes da África e, agora, também da Líbia – não têm condições para fazer qualquer trabalho de mediação. A Itália – que já enfrenta ondas e ondas de novos migrantes na ilha de Lampedusa – está, pelo menos, tentando trabalhar no front humanitário com a Turquia.

Nada garante que os esforços de mediação da Turquia tenham qualquer resultado positivo. A intervenção militar estrangeira movida por Pentágono/AFRICOM/OTAN contra a Líbia – “legitimada” por um muito duvidoso mandato-cobertura da ONU – está-se revelando um golpe-de-mestre contrarrevolucionário.

Que ninguém se engane sobre o alvo de tudo isso: esmagar a Grande Revolta Árabe de 2011, quebrar-lhe o impulso de avançada, mostrar quem manda, apresentar um neocolonialismo siliconado. Para saber como está planejado e desenvolve-se, basta prestar atenção ao discurso da Rainha Hilária.


[1] Ver Source Watch [em inglês] (NTs).