O espelho da desigualdade Marcelo Neri No Valor Econômico, via Clipping do Ministério do Planejamento 22/03/2011
Em diversos artigos que escrevi neste espaço ao longo dos últimos 11 anos, me referi aos anos 2000 como a década da queda da desigualdade de renda. Acompanhar a desigualdade brasileira até 2001 era um tanto monótono, era como se ela fosse uma constante da natureza. Depois disso, a desigualdade medida pelo índice de Gini, por exemplo, cai entre cada Pesquisa Nacional de Amostras a Domicílio (PNAD). Agora, finda a década no sentido gregoriano da palavra, o que podemos dizer da desigualdade nesse período?
Seguimos aqui o conceito de renda domiciliar per capita medido pela PNAD, que referencia a maior parte das discussões brasileiras acerca do trinômio bem estar-social, pobreza e desigualdade. Se ordenarmos a população por renda per capita e dividi-la em dez pedaços iguais, entre a primeira e a última PNAD da década passada, a renda dos 10% mais pobres subiu 69,08% real per capita acumulado no período. Esse ganho vai caindo paulatinamente à medida que nos aproximamos do topo da distribuição, atingindo 12,58% entre os 10% mais ricos.
A fim de sintetizar melhor as mudanças observadas, restringimos a análise que se segue aos 50% mais pobres e aos 10% mais ricos. Os primeiros detém por definição a metade mais pobre da população enquanto os segundos no auge da desigualdade, detinham quase metade do bolo de renda tupiniquim. As respectivas taxas acumuladas de crescimento da renda real per capita foram de 12,58% e 52,59%. Isso indica que o bolo da metade mais pobre da população brasileira cresceu a uma taxa 318% mais alta que a dos 10% mais ricos entre 2001 e 2009. Essa é uma medida intuitiva da evolução da desigualdade.
Tecnicamente, a década passada, se iniciou na virada de 2000 para 2001 e terminou na mudança de calendário de 2010 para 2011. Infelizmente, a PNAD não vai a campo em anos de Censo Demográfico que delimitam as décadas, como 2000 e 2010. Logo só poderemos saber pelos dados da PNAD apenas o que aconteceu em 8 dos 10 anos que nos interessam.
Optamos aqui por completar as séries da PNAD pelas da Pesquisa Mensal de Emprego (PME) que só pesquisa a renda do trabalho nas seis principais regiões metropolitanas brasileiras. Tenho a consciência que pelas diferenças de cobertura geográfica e de conceito de renda, a comparação direta entre PNAD e PME é inviabilizada. Seria o equivalente a comparar laranjas com bananas.
Aqui comparamos PME com PME nos mesmos meses do ano. Pois mesmo bananas do mesmo tipo possuem diferentes qualidades em diferentes meses em função de sazonalidades.
Posteriormente, essas variações serão incorporadas às séries da PNAD com as devidas ressalvas - as PMEs captam apenas a renda domiciliar per capita do trabalho, que corresponde a ¾ da renda das pessoas, de forma mais ou menos uniforme ao longo da distribuição de renda.
Nessa analogia, os censos são espécies de abacaxis, muito raros e saborosos mas cheios de espinhos, função das mutações metodológicas sofridas ao longo de cada década. De forma que preferimos não comparar abacaxis do tipo A com abacaxis do tipo B. Até por que os últimos ainda não foram nem descascados, muito menos processados. A longa defasagem incorrida entre a coleta de campo e a disponibilização das séries de microdados do novo censo indica que só poderemos calcular os mutantes números censitários da desigualdade no final de 2012.
Segundo a PME, as taxas de crescimento da renda dos pobres foram sempre superiores à dos ricos entre dezembro de 2000 e setembro de 2001 e de setembro de 2009 a dezembro de 2010. Isso indica que a desigualdade caiu não só entre cada PNAD mas sugere que também caiu nos extremos das décadas gregorianas. A diferença é que no começo da década passada a renda caia menos para os mais pobres e no final crescia mais para os mais pobres.
Ao completarmos as séries pela taxa de variação da PME observadas nas extremidades da década, chegamos a uma taxa acumulada de crescimento na década passada de 10,03% para os 10% mais ricos e 67,93% para os 50% mais pobres. Ou seja, a taxa de crescimento da metade inferior foi 577% mais alta que a dos 10% mais ricos. Isso faz com que a razões de rendas médias nos dois estratos populacionais que é uma medida de desigualdade, caia quase à metade dos valores iniciais: de 18,12 em dezembro de 2000 para 9,76 em dezembro de 2010.
Agora dado o cenário para a década de 2000 como um todo precisamos compará-lo com as demais décadas. O estudo da desigualdade de renda brasileira completa agora meio século, começando no Censo de 1960, a primeira das pesquisas domiciliares representativas do país a perguntar diretamente a renda da população. O espetacular aumento da desigualdade entre 1960 e 1970 foi seguido de uma longa monotonia estatística. Alguns chegaram a comparar a dinâmica dessas séries à do eletrocardiograma de um morto.
A comparação que nos interessa portanto é a da década de 2000 com a de 1960. O problema do Censo de 1960 é que a renda individual não era passível de ser agregada em termos de renda per capita de cada domicílio. Em função dessas limitações comparamos mudanças de medidas distintas. O conceito usado na obra seminal de Carlos Langoni 1973, reeditada pela Editora da Fundação Getulio Vargas, era renda individual. O trabalho de Langoni continua surpreendentemente atual na metodologia e nas conclusões, se as últimas forem invertidas. O resumo da ópera é uma revolução de 360°. Acabamos de voltar ao menor nível de desigualdade de nossas séries históricas observado em 1960.
Senão vejamos: a renda dos 10% mais ricos sobe 66,87% entre os censos de 1960 e 1970. Se restringimos a análise apenas aos 5% mais ricos o aumento foi ainda maior 75,42%. Os 50% mais pobres obtiveram um aumento de 15,26% no mesmo período. Ou seja, a renda da metade mais pobre cresceu 81,22% menos que a dos 10% mais ricos.
Incidentalmente quando comparamos as décadas de 1960 e a de 2000, as taxas acumuladas de crescimento dos estratos extremos da distribuição são similares. A renda dos 10% mais ricos nos anos 60 sobe 66,87% quase o aumento de renda dos 50% mais pobres na década passada. É o que podemos chamar de imagem no espelho da desigualdade.
Marcelo Côrtes Neri, economista-chefe do Centro de Políticas Sociais e professor da EPGE, Fundação Getulio Vargas. Autor dos livros "Ensaios Sociais", "Cobertura Previdenciária: Diagnóstico e Propostas" e "Microcrédito, o Mistério Nordestino e o Grammen brasileiro".
Marcelo Neri: O espelho da desigualdade
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