PF e MPF em guerra por controle externo da polícia

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Controle externo leva PF e MPF a guerra judicial

POR MARCELO AULER, no Consultor Jurídico

18/03/2011

Em mais uma batalha da verdadeira guerra que está sendo travada entre a Superintendência Regional do Departamento de Polícia Federal do Rio (SR-DPF/RJ) e a Procuradoria da República (PR-RJ) no estado, as duas instituições travam na Justiça uma disputa em torno do que o Ministério Público Federal chama de "caixa-preta dentro do aparato policial". Os procuradores encarregados do controle externo da Polícia querem ter acesso aos Relatórios de Inteligências (Relint) avulsos, produzidos de 2008 a 2010. São documentos do Setor de Inteligência Policial (SIP) da Superintendência que não foram anexados a qualquer inquérito ou procedimento judicial. O superintendente da PF no Rio e seu substituto, delegados Ângelo Fernandes Gioia e Nivaldo Farias de Almeida, se recusaram a atender ao pedido. Alegaram que os Relints não estão subordinados ao controle externo do Ministério Público por não serem peças voltadas para a persecução penal. Eles estariam relacionados ao trabalho de inteligência que é subordinado ao Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin), sujeito apenas ao controle externo do Congresso Nacional. Buscando respaldo judicial nesta briga, as duas instituições impetraram Mandados de Segurança com pedidos de liminar. A PF foi a primeira a recorrer ao Judiciário, em dezembro (MS 2010.51.01.022833-3, 18ª Vara Federal). Os procuradores só protocolaram o deles (MS 2011.51.01.002453-7, 22ª Vara Federal) em janeiro, sem saber que já existia o da PF, o que fará a 18ª Vara preventa para os dois casos. Nenhum dos dois juízes concedeu a liminar pedida pelas partes. Mas ambos, ao negarem as medidas, deram sinais de que a Polícia Federal tende a perder mais esta batalha. Em 2009, o mesmo grupo de controle externo das atividades policiais requisitou à Superintendência da Polícia Federal no Rio os Processos Administrativos Disciplinares (PADs) então em curso. Os procuradores também queriam verificar se tinham sido abertos inquéritos policiais para os fatos tipificados como ilícitos penais que tivessem sido descobertos no bojo destes PADs. Mais uma vez a Superintendência da PF no Rio negou-se a atender o pedido, alegando que o MP queria interferir em assuntos administrativos e internos da Polícia Federal. Os procuradores recorreram à Justiça e a juíza da 19ª Vara Federal, Cleyde Muniz da Silva Carvalho, lhes garantiu o acesso. Para ela, "pretender excluir o MPF do exame de procedimentos administrativos disciplinares e sindicâncias realizadas na Corregedoria da Polícia Federal constitui ilegalidade, uma vez que cria óbice ao exercício de suas funções institucionais". Logo em seguida, em novembro de 2009, o MPF, para desagrado da cúpula da Polícia Federal no Rio, instaurou um Inquérito Civil Público (137/2009) para investigar a possível omissão da Polícia Federal no combate ao tráfico de drogas, de armas e ao crime organizado, depois que o secretário de Segurança do estado, o também delegado federal José Mariano Beltrame, declarou à imprensa que "a Polícia Civil do estado do Rio estaria se ocupando de afazeres de responsabilidade do Governo Federal". Como policiais federais, inclusive delegados, que prestaram depoimento neste inquérito teriam sido perseguidos internamente, os procuradores da República Marcelo Freire e Fábio Seghese denunciaram o superintendente Gioia, o corregedor da superintendência, Luiz Sérgio de Souza Góes, e o chefe do núcleo de Disciplina da Corregedoria, Robson Papini Mota, pelos crimes de denunciação caluniosa, coação no curso do processo e abuso de autoridade. A denúncia foi acatada pela juíza Valeria Caldi Magalhães, da 8ª Vara Federal Criminal. Paralelamente, pelo mesmo motivo, o MPF move também uma Ação de Improbidade Administrativa (2010.51.01.022641-5, na 18ª Vara Federal) contra os mesmos réus. Nela, o juiz substituto Dario Ribeiro Machado Junior mandou suspender um Processo Administrativo contra um delegado em regime probatório, aberto após o mesmo prestar depoimento no Inquérito 137/2009. Nos dois processos — denúncia criminal e ação de improbidade — os procuradores pediram o afastamento dos três réus, mas não foram atendidos pelos juízes. Gioia, na época, explicou que instaurou o processo administrativo contra o delegado em regime probatório por conta das acusações sem nenhuma prova feitas no Inquérito Civil Público. "Este delegado teria que apresentar provas ou se justificar do que ele falou nestas acusações", comentou. Para o superintendente, os procuradores da República estariam usando o inquérito "para criar constrangimentos à minha administração", um dos motivos pelo qual ele representou contra os procuradores Freire, Seghese e Orlando Cunha. Na mesma ocasião, Freire rebateu: "Não queremos interferir em nada que seja da alçada do poder do gestor. O que não podemos compactuar é com ilegalidades na condução do processo". No caso atual, dos Relatórios de Inteligência, em 10 de fevereiro, ao negar a liminar para a a Superitêncência da PF, o juiz substituto Marcelo Ennes Figueira entendeu que "não pode ficar a cargo da Polícia, órgão que é constitucionalmente sujeito ao controle externo do Ministério Público, indicar para este, órgão controlador, quais procedimentos podem ou não ser examinados. Tal equivaleria, com efeito, a amputar a competência constitucional do Ministério Público, fragilizando extremamente o controle da atividade policial". Depois de negar a liminar, abriu prazo para os procuradores se manifestarem e somente agora, procurado pela revista Consultor Jurídico, soube da existência do Mandado de Segurança do Ministério Público. A juíza da 22ª Vara Federal, Andrea Cunha Esmeraldo, também não concedeu a liminar: "tendo em vista a ausência de periculum in mora concretamente demonstrado, não se vislumbra risco de lesão irreparável que não possa aguardar a apreciação por sentença de mérito, ante o rito célere do mandado de segurança". Mas, expôs que "o Ministério Público Federal, no exercício de suas funções institucionais, inclusive no tocante ao controle externo da atividade policial, tem a prerrogativa de requisitar informações e documentos. Outrossim, não subsiste a razão para a negativa da autoridade impetrada atender às requisições do Parquet Federal, fundada na alegada distinção entre a atividade de inteligência e a atividade de persecução penal, que não se verifica de forma clara e absoluta". No Mandado de Segurança que impetrou em nome da SR-DPF/RJ, o procurador regional da União, Daniel Levy de Alvarenga, e a advogada da União Viviane Alfradique Martins de Mendes sustentam que a difusão dos Relatórios de Inteligência "mesmo a outros órgãos públicos de extremada relevância, como é o caso do Ministério Público Federal, pode constituir em violação do sigilo profissional imposto ao profissional de inteligência". Eles classificam o pedido do MP como genérico e dizem que, segundo o Decreto 4.553/2002, que regulamenta a difusão de documentos sigilosos, "o acesso a documentos de inteligência passa pela chamada "necessidade de conhecer", que varia de destinatário e da especificidade do assunto a ser informado. Contudo, não existe necessidade genérica de conhecimento, tal como pretende fazer crer o impetrado (grifo do original). Garantem ainda que o mesmo decreto "impossibilita que (os Relatórios de Inteligência) sejam usados com fins processuais". Por fim, os procuradores da União, em nome da SR-DPF/RJ, criticam a Resolução 88, e a Resolução 19/2007, ambas do Conselho Superior do Ministério Público (que regulam as funções do Ministério Público, em especial o exercício do controle externo da atividade policial) alegando que elas "contém determinações que se revelam como verdadeiro controle interno da atividade policial". No Mandado de Segurança dos procuradores da República, Seghese e Freire, que atuam no grupo de controle externo da Polícia Federal, eles esclarecem que "o objetivo do MPF restringe-se a averiguar quantos foram os relatórios de inteligência avulsos produzidos no período de tempo já referido, quantos foram devidamente comunicados ao Parquet, e, ainda, se foram ou não instaurados os inquéritos policiais correspondentes aos mesmos para os casos de fatos tipificados como ilícito penal, o que, caso não tenha ocorrido, se revela em desobediência flagrante à fiscalização do Poder Judiciário e do próprio Ministério Público sobre questões tipicamente afetas à atividade de persecução criminal". Levantam, ainda, suspeitas sobre investigações que possam estar sendo feitas sem qualquer controle ao afirmarem que "a postura manifestada pela Polícia Federal permite que a atividade de investigação seja exercida sem controle, o que se constitui em grave ameaça aos direitos e garantias individuais. Não é concebível em um Estado Democrático de Direito que dentro do aparato policial existam verdadeiros nichos de atividade de investigação sem controle por parte dos órgãos legitimados a fazê-lo de acordo com a Constituição Federal". Ao classificarem os relatórios como verdadeiras "caixas-pretas", abordam a hipótese de a Polícia Federal do Rio querer esconder algo. "Ora, não é razoável permitir a existência de verdadeiras “caixas-pretas” dentro do aparato policial, onde informações relevantes para os demais agentes da atividade de persecução criminal, o próprio Poder Judiciário e o Ministério Público, sejam mantidas em segredo, o que não condiz com o Estado Democrático de Direito. Tal tipo de comportamento que afronta a lei e a Constituição Federal permite, inclusive, formar a percepção de que se deseja ocultar algum fato que leve uma série de procedimentos relevantes ao arquivamento". Ao reproduzirem diversos depoimentos de policiais federais que trabalharam no SIP e produziram estes relatórios, os procuradores tentam provar que eles são documentos sobre investigações de fatos criminosos, sujeitos ao controle externo do MPF. Acabam, porém, revelando parte da disputa existente na SR-DPF/RJ, que envolve até a relação de amizade entre o superintendente atual e um dos seus antecessores, o delegado federal e ex-deputado federal Marcelo Itagiba. Os procuradores questionam o fato de a quebra do sigilo destes relatórios ficarem a cargo do superintendente do DPF no Rio e do chefe do Setor de Inteligência. Neste ponto, citam um caso em que a divulgação do relatório só foi feita ao Ministério Público depois que o superintendente se indispôs com o delegado Paulo Roberto Falcão, então corregedor, quando este se recusou a arquivar um procedimento como lhe fora pedido pelo superior, da mesma forma que não abriu investigação solicitada pelo superintendente. Após o desentendimento entre os dois, em 2010, houve a desclassificação (retirada do sigilo) do Relatório de Inteligência 499/2008, que tem data de 8 de outubro de 2008, relatando possíveis crimes de contrabando dentro do Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro, na época em que Falcão ocupava a chefia da Delegacia da Polícia Federal ali instalada. Na SR-DPF/RJ muitos suspeitam da data real do relatório, até porque após sair da delegacia do AIRJ, Falcão ocupou a Corregedoria da Superintendência, cargo de confiança que jamais ocuparia caso houvesse acusação formal contra ele. Procuradores também consideram o caso suspeito, ao descreverem-no: "A desclassificação do Relint em questão somente foi efetuada após a ocorrência de divergências no âmbito da SR/DPF/RJ entre o atual Superintendente Dr. Angelo Gioia e o então Corregedor Regional Dr. Paulo Roberto Falcão; divergências estas relativas ao fato de o Dr. Paulo Roberto Falcão ter atuado contrariamente aos interesses do Superintendente em procedimentos em curso na Corregedoria, o que levou a sua exoneração do cargo. Além da exoneração, houve a desclassificação do RELINT já referido e seu encaminhamento ao MPF". Procurado pela ConJur por ser formalmente citado no Mandado de Segurança, o delegado Falcão garantiu só saber deste Relatório por meio de boatos. Por conta deles — dos boatos — entrou com um pedido de certidão para confirmar se existe algo contra si. Ele não descarta a possibilidade de o relatório ter sido "plantado por alguém contrariado ou desafeto que não sei quem é". Lembra que seu período no aeroporto, quando instalou máquinas de Raio X para fiscalizar também a bagagem de quem desembarcava — aparelhos que depois teriam sido desativados — foi um dos mais produtivos naquela unidade da Superintendência. É desta época a apreensão de 64 mil comprimidos de ecstasy, assim como de 17 mil pontos de LSD e a prisão de um delegado federal ao tentar receber uma mala contendo R$ 1 milhão em jóias contrabandeadas. Até hoje, nenhum procedimento foi instaurado contra o delegado Falcão, o que faz aumentar as suspeitas sobre o Relatório de Inteligência. Ele foi um dos delegados que prestaram depoimentos no Inquérito Civil Público, mas sua presença diante dos procuradores foi bem antes da divulgação do documento. No Mandado de Segurança impetrado pelo MPF, o fato serve de exemplo para a forma como estes relatórios são tratados dentro da Polícia Federal. Os procuradores batem na tecla de que a difusão de relatórios de inteligência "não deve estar submetida a um ecossistema de conveniências e oportunidades do gestor do SIP/SR/DPF/RJ e do Superintendente Regional. A discricionariedade na difusão do Relint ofende de forma cabal o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública e os princípios da moralidade e impessoalidade que devem conduzir toda a ação de um agente público". Eles, por fim, insistem que "a existência de "caixas-pretas" dentro do aparato estatal cria um ambiente propício à corrupção e ao desvio funcional em sentido amplo, razão pela qual o MPF insiste na imperiosa necessidade de exercer sua função de controle externo da atividade policial".