Por que a zona ‘no-fly’ não decolará Por: Pepe Escobar, no Asia Times Online, Tradução: Vila Vudu 11/3/2011
Ninguém sobrevive 41 anos no poder, sem aprender um ou dois truquezinhos de geopolítica. Raposa velha e sabida, o rei dos reis africanos Muammar Gaddafi parece ter estudado atentamente o tabuleiro de xadrez. E chegou a conclusão absolutamente definitiva: a tal zona no-fly [zona aérea de exclusão] não decola – invadirem a Líbia, então, é nunca! – do Conselho de Segurança da ONU.
Como se leu ontem no Asia Times Online (em português, “Brasil-Índia-África do Sul já viram que a revolta árabe obriga a remodelar a ordem mundial”), três países do grupo BRICS de emergentes – Brasil, Índia e África do Sul – já trataram de torpedear totalmente a opção “zona aérea de exclusão”. Os três são membros não permanentes do Conselho de Segurança. E os outros dois BRICSs – Rússia e China – são membros permanentes. Já há algum tempo, os BRICS têm coordenado suas decisões cruciais. No plano do ministério de Relações Exteriores, a Rússia, semana passada, já detonara a ideia da no-fly zone; e a China fez o mesmo, essa semana. Não bastasse, há também o Líbano – mais um membro não permanente do Conselho de Segurança. Com isso, são seis votos “não”. Que ninguém se engane: Gaddafi tem pedras na manga.
De fato, nem o governo do presidente Barack Obama está explicitamente apoiando a opção “zona aérea de exclusão”. O chefe do Pentágono Robert Gates – mesmo contando com dois porta-aviões e 175 aviões da 6ª Frota dos EUA atracada em Nápoles, Itália – já disse, claramente, que o assunto é sério e que significa guerra, quer dizer, todos os riscos imagináveis de escalada plus todas as consequências não desejadas (lembrem da Bósnia).
Os que apoiam a zona aérea de exclusão formam catálogo bem pouco confiável: as ex-potências coloniais africanas França e Grã-Bretanha; os neoconservadores nos EUA; e os seis países membros do Conselho de Cooperação do Golfo [orig. Gulf Cooperation Council (GCC)] – entre os quais o Bahrain (que já usou repressão letal contra manifestantes de oposição), a Arábia Saudita (que provavelmente fará a mesma coisa amanhã, nas manifestações marcadas pra o “Dia de Fúria” também por lá), Omã (que também provavelmente também fará, se os protestos continuarem) e o Qatar (cujas manifestações não estão sendo adequadamente divulgadas pela rede Al-Jazeera, mas cujo povo tem as mesmas aspirações democráticas que se veem nas ruas dos demais países membros do GCC).
Ekmeleddin Ihsanoglu, secretário-geral da Organização da Conferência Islâmica [orig. Organization of the Islamic Conference (OIC)], que reúne 57 países, também apoia a zona aérea de exclusão (mas a OIC ainda não tem posição oficial). O mesmo vale para a desfibrada e desdentada Liga Árabe; o GCC convocou reunião para discutir o tema. Quanto à União Europeia [orig. European Union (EU)], até o final da semana talvez tenham alguma posição firmada, mas não aposte nisso o seu filé & fritas.
Até os movimentos da parte leste, libertada, da Líbia, estão confusos. Uns líderes do governo provisório em Benghazi querem, outros não (e boa massa de rebeldes). Não há qualquer indício de que o governo de Obama esteja sequer tentando, pelo menos, informalmente que seja, pesquisar as opiniões dos que estão lutando (e morrendo) nos combates, nem em inglês nem em árabe.
Fale com a cadeira (o homem é surdo)
Enquanto isso, Gaddafi joga competentemente com o coringa al-Qaeda – do tipo “sem mim, o ocidente logo enfrentará a linha de montagem do califato islâmico, fazendo jorrar milhares de jihadistas para o outro lado do Mediterrâneo”. O pessoal que compra a retórica que Gaddafi vende é, claro, a extrema-direita e os fanáticos criptofascistas nos EUA e também em Israel. Dos islamófobos na Alemanha e Escandinávia, à nova queridinha da política francesa Marine Le Pen – filha que faz o gênero “comigo-é-sem-conversa-mole” do fundador da Frente Nacional, Jean Marie Le Pen –, todos, em silêncio, festejarão a brilhante esperteza geoestratégica do Bom Coronel Gaddafi.
Gaddafi jogou outra jogada esperta: mandou um enviado conversar com o Conselho Supremo do Exército Egípcio. A mensagem é clara: a tribo Awlad Ali – que controla a cidade de Salloum, no lado egípcio da fronteira com a Líbia – está fornecendo de tudo, comida e armas, aos rebeldes do leste liberado da Líbia. Gaddafi quer que suspendam o fornecimento. Gaddafi jogou. Não sabe, mas logo saberá, o que pensam os egípcios do exército-da-transição – e Omar “al-Tortura” Suleiman desapareceu das telas de televisão.
Quem assista à cobertura pela rede al-Jazeera já sabe que os rebeldes são jovens esfarrapados e desorganizados e desempregados, todos comprometidos e engajados com muita paixão e coragem mas nenhum planejamento tático/estratégico, no que o Guardian de Londres bem descreveu como “drive-in war” [aproximadamente, “venha-e-entre-na-guerra” (NTs)]. Muitos desses jovens são da tribo Zintan.
Por tudo isso, não surpreende que a fala de Gaddafi pela televisão, na madrugada da 4ª-feira, tenha sido dirigida a um público jovem de Zintan (nem havia muitos, nem pareciam muito interessados). O núcleo da retórica de Gaddafi é que todas as notícias que chegam da Líbia libertada trazem marcas da terminologia típica da al-Qaeda; e falou longamente sobre um Líbia unida e o povo, que deseja democracia.
Argumento-chave dos que defendem a implantação na Líbia de uma zona aérea de exclusão, é que se “nós” – o ocidente civilizado – não interviermos na Líbia, o país decairá até o caos que se vê na Somália. Portanto, é útil sabem o que de fato está acontecendo na Somália.
A Somália é crucialmente estratégica, em frente ao Iêmen, no Golfo de Aden, praticamente vizinho de porta dos países do GCC. Todos e mais alguém intervêm na Somália – da al-Qaeda à Etiópia, do Sudão às ‘organizações de caridade’ com base nos países do GCC.
A União Africana [ing. African Union (AU)] assustou-se de verdade ante o perigo de Líbia e Egito suspenderem o financiamento de suas operações: por isso, os 8 mil ditos ‘pacificadores’ da AU (do Burungi e de Uganda) atacaram a al-Shabaab, uma coalizão somaliana apoiada por uma ala de jihadistas ligados a Osama bin Laden que controla boa parte do centro e sul da Somália, inclusive áreas chaves da capital Mogadishu.
Ninguém sabe como acabará esse negócio de soldados ‘de paz’ apoiados pela ONU atacarem uma milícia islâmica. Mas Gaddafi com certeza usará qualquer coisa que aconteça como moeda para barganhar com a AU: alguma coisa como “se querem ver a cor do meu dinheiro e da minha ajuda, nem pensem em apoiar alguma zona no-fly”.
Eis como o rei dos reis da África interpreta o que se lê nas paredes da ONU: a zona aérea de exclusão, mesmo que venha a ser aprovada, será inócua – porque Gaddafi tem helicópteros armados com metralhadoras, tanques e poder de fogo superior. Gaddafi sabe que contingentes que venham para implantar a zona de exclusão aérea não podem invadir a Líbia – porque, se invadirem, o próprio Gaddafi se encarregará de demonstrar que, depois do Afeganistão e do Iraque, é a vez da Líbia ser destruída pela cruzada do homem branco que quer destruir o Islã (e roubar o petróleo local).
Se a Arábia Saudita armar os rebeldes – como armou, nos anos 1980s, os “combatentes da liberdade” afegãos –, as armas podem ser capturadas pelo pessoal da al-Qaeda infiltrado em todos os grupos, e Gaddafi vence a guerra pela opinião pública. A CIA sempre pode subornar um dos generais de Gaddafi – ou, mesmo, um dos filhos dele. Afinal, o filho Mutassim já tentou um golpe para derrubar o pai. E alguém sempre pode recorrer à proverbial bala na nuca. Em todos esses casos, só Alá, para saber que tipo de doido substituirá Gaddafi.
Não surpreende que o rei dos reis mostre-se tão relaxado e à vontade em suas vestes reais castanho-douradas. No que lhe diga respeito, é só questão de tempo e o jogo (encharcado em sangue) está ganho.