Egito: O começo de nova luta Syed Saleem Shahzad, Asia Times Online Tradução: Vila Vudu 13/2/2011
ISLAMABAD. Os 30 anos de governo do agora derrubado presidente Hosni Mubarak acabaram numa declaração de 56 palavras lida na 6ª-feira pelo porta-voz e ex-chefe da polícia secreta de Mubarak Omar Sulieman. O fim de Mubarak dá nova vida à antes adormecida Fraternidade Muçulmana, mas não implica mudança no regime. A ditadura permanece viva, como, antes, já acontecera na Tunísia.
Suleiman leu a seguinte declaração: “Em nome de Deus, o misericordioso, o compassivo. Cidadãos. Nessas circunstâncias muito difíceis pelas quais passa o Egito, o presidente Hosni Mubarak decidiu deixar o cargo de presidente da República e encarregou o Alto Conselho das Forças Armadas de administrar os negócios do país. Que Deus ajude todos.”
Essa declaração é indicação de que os militares lideram o golpe vitorioso, comandado pelo ministro da Defesa marechal-de-campo Mohammed Hussein Tantawi, depois de mais de duas semanas de protestos de rua.
O fim da ditadura de Mubarak, 83 anos, quebrou a paralisia da inteligência coletiva no mundo muçulmano e há nova percepção de que a mobilização de massas é poder decisivo. Mesmo assim, na ausência de movimentos verdadeiramente democráticos, o mais provável é que o Oriente Médio venha a se converter em novo campo de batalha entre o Irã xiita e a Fraternidade Muçulmana predominantemente sunita.
O Irã entende que se vive um estágio de transição no Egito, e que a mudança de todos os paradigmas – como a Revolução Islâmica no Irã em 1979 que derrubou o Xá – é ainda sonho distante; mas que, já nesse estágio inicial, começa a ser diluído o controle que exercem na Região regimes predominantemente sunitas, como na Arábia Saudita, no Egito, na Jordânia e na Tunísia.
Esse quadro agravará ainda mais o confronto na rua árabe, e pode auxiliar o crescimento do Islã xiita no Oriente Médio – o que criará profundidade estratégica para o Irã e pode levar a um renascimento do califado fatimida, que existiu, com centro na Tunísia e no Egito, de 909 a 1171.
Quando era já iminente queda do regime de Mubarak e a mobilização política na rua árabe não dava sinais de que arrefeceria, pela primeira vez em sete meses o próprio Supremo Líder do Irã, aiatolá Ali Khamenei, fez o sermão da 6ª-feira em Teerã, dia 4 de fevereiro.
“No momento da Revolução Islâmica da grande nação iraniana [em 1979], falava-se precisamente do que hoje se ouve, sobre um despertar islâmico. É o que hoje está aí” – disse ele.
“Nossa revolução serviu como inspiração e modelo pela perseverança, estabilidade e insistência nos princípios” – disse Khamenei.
“Hoje no Egito ouve-se o eco de nossa voz. O presidente que estava no poder nos EUA [Jimmy Carter] durante a revolução [iraniana] disse, em entrevista, que o que se ouve no Egito é familiar. O que se ouve hoje no Egito ouvia-se em Teerã naqueles dias” – disse Khamenei. Disse também que os desenvolvimentos no norte da África são resultado de “um despertar islâmico que se viu cada vez mais evidente depois da grande revolução islâmica da nação iraniana”.
Kamal al-Halbavi, líder da Fraternidade Muçulmana, saudou as palavras de Khomenei, em entrevista à BBC em Teerã [em persa]. Disse que queria que seu país se desenvolvesse em todos os campos, como o Irã, que alcançasse sucessos nos campos tecnológico e científico e que se convertesse em potência regional.
Jim Lobe, do Inter Press Service escreve: “Considerada pela maioria a mais bem organizada e mais disciplinada agremiação política existente no Egito, a Fraternidade Muçulmana, cuja popularidade explica-se pela ampla rede que mantém de serviços médicos e assistência social para as populações mais pobres, além da longa história de oposição ao e perseguição pelo regime de Mubarak, parece contar com a lealdade de cerca de 30% da população.
Nas eleições parlamentares de 2005, candidatos associados à Fraternidade Muçulmana – o partido não concorre oficialmente a eleições, desde que foi banido em 1954 – conquistou 20% dos assentos no Parlamento egípcio. Nas eleições de novembro último receberam pouquíssimos votos, em eleições que, segundo observadores locais e internacionais, foram acintosamente manipuladas a favor do Partido Nacional Democrático de Mubarak no poder e cujo futuro é hoje considerado incerto.”[1]
A Fraternidade Muçulmana e sua ideologia têm raízes profundas na luta dos islâmicos predominantemente xiitas do Irã entre meados dos anos 1960s até os anos 1970s, refletida nos escritos do Dr. Ali Shariati[2], ideólogo da Revolução Islâmica do Irã, que citava frequentemente Syed Qutb, da Fraternidade Muçulmana do Egito.
Depois da Revolução Islâmica, o Irã converteu-se em força por trás de todos os movimentos islamistas[3] no mundo. Khalid Islambouli, oficial do exército egípcio que matou o presidente Anwar Sadat no atentado de 1981, era ligado à Jihad Islâmica do representante da Al-Qaeda Dr. Ayman al-Zahawari. O governo do Irã, em resposta ao tratado de paz que Sadat assinou com Israel e ao asilo que o Egito ofereceu ao Xá deposto do Irã, rompeu relações diplomáticas com o Egito. Em Teerã, há uma rua com o nome de Islambouli. Depois da execução de Islambouli, o Líder Supremo do Irã declarou-o mártir. E o Irã ofereceu asilo a membros da família de Islambouli.
Entre os anos 1980s e 1990s, o pior período da perseguição que o governo egípcio sempre moveu contra a Fraternidade Muçulmana, o Irã converteu-se em segundo lar de muitos líderes da Fraternidade Muçulmana. Depois dos ataques aos EUA em 11/9/2001, o Irã ofereceu santuário aos principais líderes da al-Qaeda. (Ver “How Iran and al-Qaeda made a deal”, Asia Times Online, 30/4/2010, e “Broadside fired at al-Qaeda leaders” Asia Times Online, 10/12/2010).
O Irã continuou como principal força de apoio das duas principais organizações da Fraternidade Muçulmana na Palestina – o Hamás e a Jihad Islâmica.
Para os movimentos islâmicos, o apoio que recebem da revolução iraniana e o apoio que o Irã dá a organizações predominantemente sunitas-salafitas explica-se como uma espécie de “dever histórico”.
A Fraternidade Muçulmana apoiada pela Arábia Saudita apoiou a revolução no Irã, numa aposta para por fim à dinastia xiita do Xá, que se misturara profundamente com um viés paroquial contra árabes e turcos e à continuação do império safavida cujos ancestrais converteram-se ao Islã xiita em 1501 para criar um pretexto para não aceitarem os turcos otomanos como parte do califado. Ideólogo da revolução do Irã, o Dr. Ali Shariati chamaria depois o xiismo do Xá e dos safavidas de “Xiismo Negro”, que teria vícios anti-islâmicos e traços anti-islamistas.
A Fraternidade Muçulmana investiria suas esperanças no “Xiismo Vermelho” de Shariati, que tem raízes no Corão, na vida do Profeta Maomé e na vida de descendentes do Profeta Maomé (Bani Fatima). Assim se pôde manter que a Revolução Islâmica do Irã seria aliada de todas as nações árabes. Mas foi aliança estratégica, que interessava aos dois lados, aos xiitas e aos sunitas, para benefício de ambos. Os xiitas também visavam a ampliar seu papel no mundo muçulmano.
O recente apoio do Irã aos islâmicos de todo o Oriente Médio é também movimento estratégico, na medida em que grupos sunitas não têm condições de promover qualquer revolução islâmica, embora possam, sem dúvida, contribuir para o caos político. O presidente do Iêmen Ali Abdallah Saleh e o rei Abdullah da Jordânia têm enfrentado movimentos de desestabilização nas últimas semanas, mas nem depois da derrubada de Mubarak há nesses países grupos políticos com força suficiente para catalisar qualquer mudança significativa.
De um modo ou de outro, o ambiente politicamente carregado do Oriente Médio pode gerar algum efeito dominó no Iraque, Bahrain, Kuwait e Arábia Saudita.
A inesperada aparição do Líder Supremo do Irã depois de longo afastamento das manifestações públicas e sua conclamação para um despertar islâmico no Oriente Médio não recebeu qualquer apoio material dos sunitas do mundo árabe, mas não há dúvidas de que o Irã financiará algum “despertar islâmico” nos círculos xiitas do Iraque, Iêmen, Bahrain, Kuwait e Arábia Saudita, como já fez quando a Arábia Saudita e o Iêmen uniram-se para reprimir as revoltas xiitas apoiadas pelo Irã em 2009. O Bahrain sempre dependeu dos Guardas Nacionais Sauditas para controlar qualquer agitação apoiada pelos xiitas iranianos.
Ideologicamente, o Islã sunita e o Islã xiita sempre foram rivais políticos, desde o começo. Historicamente, só houve uma aliança entre as duas ideologias, quando Bani Fatima (os descendentes do Profeta Maomé) e Bani Abbas (os descendentes do tio do Profeta Maomé) uniram-se para derrubar a dinastia Umayyad e pôr no poder a dinastia Abbasid em 750 dC. E essa aliança durou apenas os quatro anos do reinado de al-Saffah Abbasi.
Shariati cunhou a expressão Willayat-e-Faqih (guardiões da jurisprudência islâmica até a reemergência de al-Mahdi), reviveu leis islâmicas na religião xiita e criou espaço para uma revolução islâmica. A doutrina novamente apostava numa aliança entre Islã sunita e Islã xiita – dessa vez, com o Irã xiita no comando de uma revolução e os islâmicos sunitas como aderentes. Mesmo assim, sempre foi aliança incômoda, apesar de o Irã garantir proteção aos líderes da Fraternidade Muçulmana e à al-Qaeda e apoiar a resistência islâmica palestina.
Com a al-Qaeda construindo um teatro de guerra do Afeganistão à Ásia Central e do Iraque à Somália, e com a Fraternidade Muçulmana liderando um levante no Oriente Médio e no Norte da África, ambos, o Islã sunita e o Islã xiita entram em fase nova e decisiva da luta.
Seja como for, os conceitos de Imamat (liderança xiita) e de Califado (liderança sunita) inevitavelmente baterão de frente, e nenhum tipo de coexistência será possível.
Se houver insurgências de xiitas no Oriente Médio, para as quais o Líder Supremo do Irã repentinamente apresentou-se como líder e campeão, haverá confrontos mortais entre esses dois principais segmentos do mundo muçulmano.
NOTAS
[1] Jim Lobe, “The Brotherhood Bogeyman”, 12/2/2011, [em tradução]. [2] 1933-1977. Mais, sobre ele, aqui [3] A palavra “islamista” não aparece ainda nos dicionários brasileiros, mas já é usada em todo o mundo, em várias línguas, sempre que é preciso demarcar a diferença que há entre “apoiar movimentos políticos inspirados na religião islâmica” e “praticar ou seguir ou pregar a própria religião islâmica”. Em inglês, diz-se “islamist”, no primeiro caso; e “islamic”, no segundo. Em francês, diz-se “islamiste” e “islamique”, na mesma oposição. O fato de a palavra “islamista” não estar ainda dicionarizada em português do Brasil não tem importância alguma para nenhum efeito de ‘correção’ ou de revisão; a palavra deve ser mantida quando for usada nas nossas traduções, mesmo sem estar ‘oficializada’ nos dicionários. Edição nova que se faça dos dicionários de língua portuguesa do Brasil, das duas uma: ou incluirá a nova palavra, ou repetirá os erros de repetição conservadora dos dicionaristas e gramáticos conservadores autoritários [NTs].