Pepe Escobar: Como o Ocidente ocupou a Líbia - permita- me bombardeá-los para protegê-los

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Como o ocidente ocupou a Líbia

Pepe Escobar, Asia Times Online

21/10/2011

Que os olhos reapareçam Como a estrela perpétua Rosa multifoliada Do reino em sombras da morte A única esperança De homens vazios. T.S. Eliot, “Os homens ocos” (Nota 5) (Epígrafe acrescentada pelos tradutores)

Estão disputando as carcaças, como abutres. O ministro francês da Defesa disse que um avião Rafale atirou contra o comboio. O Pentágono disse que o pegaram com um avião-robô comandado à distância, um drone Predator, que lançou um míssil Hellfire. Ferido, o comandante Muammar Gaddafi tentou abrigar-se num cano sujo, debaixo de uma rodovia – eco fantasmagórico da “toca” de Saddam Hussein. E foi encontrado pelos “rebeldes” do Conselho Nacional de Transição. E foi executado.

Abdel-Jalil Abdel-Aziz, médico líbio que acompanhou o cadáver de Gaddafi numa ambulância e o examinou, disse que havia dois tiros, um no peito, um na cabeça.

O Conselho Nacional de Transição – que há meses aplica mentiras, mentiras e mais mentiras – jura que ele morreu sob “fogo cruzado”. Pode ter sido uma gangue. Pode ter sido Mohammad al-Bibi, de 20 anos, com um boné de beisebol dos New York Yankees que posou para o mundo exibindo a pistola dourada de Gaddafi, talvez tentando receber a gorda recompensa de $20 milhões por Gaddafi “vivo ou morto”.

A coisa vai ficando cada vez mais intrigante, se se recorda que aconteceu exatamente o que a secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton anunciara durante visita relâmpago a Trípoli, menos de 48 horas antes: Gaddafi seria “capturado ou morto”. A Rainha das Fadinhas satisfez o pedido de Clinton, que recebeu a notícia pela tela de um telefone BlackBerry – e respondeu com o terremoto semântico: “Uau!”

Ao vencedor, os restos. Foi obra de todos: da OTAN, do Pentágono e do Conselho Nacional de Transição. Desde o instante em que uma Resolução da ONU para implantar zona aérea de exclusão sobre a Líbia tornou-se autorização para “mudar o regime”, o Plano A sempre foi capturá-lo e matá-lo. Targeted assassination: assassinato predefinido, assassinato premeditado – essa é a política oficial do governo Barack Obama. Nunca houve Plano B.

Permita-me bombardeá-lo, para protegê-lo

Sobre a “responsabilidade de proteger” (R2P) civis, cabem todas as dúvidas a respeito da explicação oferecida pelo secretário-geral da OTAN Anders Fogh Rasmussen: “a OTAN e nossos parceiros cumprimos com sucesso o mandado histórico a nós atribuído pela ONU, para proteger o povo da Líbia”.[1] Quem queira constatar o quanto a OTAN bem protegeu a população civis, meta-se num caminhão e vá a Sirte – a nova Fallujah.

As reações foram muito instrutivas. O burocrata do Conselho Nacional de Transição Abdel Ghoga foi ao Coliseu do Império Romano e disse ao povo que “Os revolucionários ganharam a cabeça do tirano.”

O presidente dos EUA Barack Obama disse que a morte de Gaddafi significa que “estamos vendo a força da liderança dos EUA em todo o mundo”. É como “pegamos ele”, como todos teriam mesmo de esperar que pegassem, também considerando que Washington pagou nada menos que 80% dos custos de operação dos cabeça-fraca da OTAN (mais de $1 bilhão – que, como Occupy Wall Street poderia bem denunciar, muito mais úteis seriam para ajudar a criar empregos nos EUA). Esquisito, a Casa Branca dizer que “nós fizemos tudo”, porque a Casa Branca sempre disse que não era guerra, era não-sei-o-quê “cinético”. E que não estavam no comando.

Coube a esse prodígio da estratégia política universal, o vice-presidente Joe Biden, ser ainda mais iluminador que Obama: “Os EUA gastaram nesse caso $2 bilhões e não perderam uma única vida. É muito melhor fórmula de como negociar com o mundo, sempre andando adiante, do que a que usávamos no passado.”[2]

Mundo, fique avisado: doravante, com você, o império negociará assim.

Conheçam o meu amor humanitário

Assim sendo, parabéns à “comunidade internacional” – a qual, como todos sabem, é formada de Washington, uns gatos-pingados estados-membros da OTAN e as potências democráticas do Golfo Persa, a saber: Qatar e os Emirados Árabes Unidos (EAU). Essa “comunidade internacional”, pelo menos, adorou o resultado. A União Europeia saudou “o fim de uma era de despotismo” – apesar de, praticamente todas as quintas-feiras, lá estarem, beijando a fímbria das túnicas de Gaddafi: hoje, caíram em si, em editoriais sobre os 42 anos do reinado do “bufão”.

Gaddafi seria o mais inconveniente dos convidados à Corte Criminal de Haia, porque se deliciaria relembrando todos os detalhes dos beija-mãos, abraços cálidos e os excelentes negócios que o ocidente passou a viver de suplicar-lhe, depois que o promoveu, de “cachorro louco” (Ronald Reagan) a “nosso filho da puta”. Também teria grande prazer ao relembrar, com detalhes, o passado sombrio desses oportunistas que hoje posam como “revolucionários” e “democratas”.

Quanto à lei internacional, lá ficou num buraco tão imundo quanto aquele em que Gaddafi foi capturado vivo. Saddam, ditador do Iraque, mereceu pelo menos um julgamento falso, em corte falsificada, antes de enfrentar o carrasco. Osama bin Laden foi simplesmente morto, assassinato simples, depois de os EUA invadirem território do Paquistão. Gaddafi foi queimado, numa mistura de assassinato e guerra aérea.

Abutres congestionam o espaço aéreo. Mohammed El Senussi, em sua base londrina, herdeiro do trono líbio (o rei Ídris foi derrubado em 1969) está pronto para chegar, já se tendo apresentado como “servidor do povo líbio que decidirá o que deseja”.[3] Tradução: quero o trono. Obviamente, é o candidato favorito da Casa de Saud, contrarrevolucionária.

E o que dizer das mulas daqueles think-tanks de Washington, para os quais esse seria “o momento Ceausescu da Primavera Árabe”?[4] Se pelo menos o ditador romeno tivesse melhorado o padrão de vida dos cidadãos – os líbios tinham saúde pública gratuita, educação pública gratuita, incentivos para os recém-casado e mais, e mais – uma fração, que fosse, do que Gaddafi fez na Líbia. Além do quê, Nicolae Ceausescu não foi deposto com bombardeio “humanitário” pela OTAN. Só cérebros embalsamados engoliriam a propaganda do bombardeio “humanitário” da OTAN (mais de 40 mil bombas, e continuando...) – que destruiu a infraestrutura da Líbia devolvendo-a à Idade da Pedra (“Choque e Pavor” em câmera lenta. Alguém aposta?).

Nada disso teve algo a ver com “responsabilidade de proteger”, R2P – o incansável bombardeio da população civil em Sirte é prova.

Como os quatro principais membros dos BRIC sabiam desde antes da votação na ONU da Resolução 1973, sempre se tratou de impor a OTAN como senhora do Mediterrâneo – Mediterrâneo, lago da OTAN; sempre se tratou de guerra do comando dos EUA na África, Africom, contra a China; sempre se tratou de criar uma base estratégica chave; sempre se tratou de franceses e britânicos porem as mãos nos ricos contratos para explorar, em proveito deles, os recursos naturais da Líbia. E sempre se tratou de o Ocidente retomar o controle da narrativa da Primavera Árabe, depois de o Ocidente ter sido apanhado de calças curtas na Tunísia e no Egito.

Ouçam os suspiros dos bárbaros

Bem-vindos à nova Líbia. Milícias islâmicas intolerantes converterão em inferno a vida das mulheres líbias. Centenas de milhares de africanos subsaarianos – os que não conseguiram escapar – serão perseguidos com crueldade máxima. A riqueza natural da Líbia será saqueada. Aquela coleção de armamento antiaéreo de que os islâmicos se apropriaram serão razão excepcionalmente convincente para alimentar a “guerra ao terror”. A “guerra ao terror” será eterna. Muito sangue correrá – sangue de guerra civil, porque a Tripolitania jamais aceitará ser governada pela atrasada Cirenaica.

Quanto aos ditadores que sobrevivem pelo mundo, ganharam um seguro de vida, presente da Empresa OTAN Inc.: Hosni Mubarak do Egito, Zine al-Abidine Ben Ali da Tunísia, e Abdullah Saleh do Iêmen foram espertos e já aceitaram. Todos sabemos que nunca haverá “responsabilidade para proteger tibetanos e uigures, ou o povo de Myanmar, aquele gulag mostro, ou o povo do Uzbequistão, ou os curdos da Turquia, ou os pashtuns dos dois lados da Linha Durand, imperialmente marcada.

Todos sabemos que a única mudança em que o mundo acreditará, só acontecerá no dia em que a OTAN implantar uma zona aérea de exclusão sobre a Arábia Saudita, para proteger os xiitas na província do leste, com o Pentágono despejando um tapete de mísseis Hellfire sobre aqueles milhares de príncipes medievais, corruptos, da Casa de Saud. Nunca acontecerá.

Mas é assim que o ocidente expira: com uma explosão da OTAN e milhares de suspiros[5] bárbaros, sem lei. Não gostaram? Metam na cara uma máscara de Guy Fawkes[6] e saiam às ruas[7], para agitar, do jeito que o diabo gosta. Muito.

[1] Na página da OTAN.

[2] ABC News.

[3] Al-Arabiya.

[4] Middle East Institute, Washington.

[5] Aí se ouve eco de um verso de T.S.Eliot: Assim expira o mundo / Assim expira o mundo / Assim expira o mundo / Não com uma explosão, mas com um suspiro (“Os homens ocos”, trad. de Ivan Junqueira).

[6] Guy Fawkes (1570-1606), também conhecido como Guido Fawkes, foi um soldado inglês católico que teve participação na "Conspiração da pólvora" (Gunpowder Plot) na qual se pretendia assassinar o rei protestante Jaime I da Inglaterra e todos os membros do parlamento durante uma sessão em 1605, objetivando o início de um levante popular católico. Guy Fawkes era o responsável por guardar os barris de pólvora que seriam utilizados para explodir o Parlamento do Reino Unido durante a sessão. A conspiração foi desarmada e, depois de torturado, (São) Guy Fawkes foi executado na forca por traição e tentativa de assassinato. Outros participantes da conspiração acabaram tendo o mesmo destino. Sua captura é celebrada até hoje, dia 5 de novembro, na "Noite das Fogueiras" (Bonfire Night). Guy Fawkes por ser simpatizante dos espanhóis católicos, adotou também a versão espanhola de seu nome francês: Guido. Uma máscara de Guido Fawkes aparece no filme V, de Vingança (2006), copiada de uma história em quadrinhos escrita por Alan Moore e ilustrada por David Lloyd, que se passa num Reino Unido futuro, suposto entre os anos 1980s e 1990. Um revolucionário anarquista, que usa uma máscara de Guy Fawkes, sob o codinome “V”, trabalha para destruir o governo totalitário e inicia uma campanha intencionalmente teatral para destruir os que o capturaram, derruba o governo e convence o povo a se autogovernar. [NTs].

[7] A máscara tem sido vista em praticamente todos os movimentos Ocupai (ing. Occupy) Rua Mundo. Sobre “Occupy Rua Mundo”, ver Pepe Escobar, 18/10/2011 [NTs].

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